Quarta-feira, 25 de janeiro de 2017 - 15h21
Dante Ribeiro da Fonseca.
Ah, a nossa velha e boa História, que peças nos tem pregado. A ponto de leigos no assunto exigirem que os historiadores se entendam. A pretensão não é pouca. Pretende-se conseguir o que ninguém até hoje, desde Heródoto, conseguiu, a saber, a unanimidade entre os historiadores. Não deveria estar mencionando isso tudo. Afinal, já que sugeri a grande dificuldade, impossibilidade mesmo, de uma história unânime, corro o risco de sugerir, aos olhos de algum douto leigo no assunto, a inutilidade desse saber. Logo, extirpem-no dos currículos. Logo, recusem em utilizar os livros de História, porque os historiadores não se entendem. Daí, podemos passar, incontinenti, à recusa do próprio saber histórico.
Não, a história não é inviável como disciplina, inviável é aquilo que parece ser o desejo de certos metafísicos contemporâneos, pois apenas admitem uma dimensão do saber. A unanimidade em história não é necessária, sequer é recomendável, muito menos desejável, isso porque não devemos desejar, ou recomendar, o impossível. Além do que desejaríamos, simultaneamente, um saber parcial. Além disso, mais grave ainda, um saber isento de toda a crítica, que é a razão do desentendimento mas também condição da ciência. Mas como, perguntaria o ingênuo doutor, vocês não podem se pôr de acordo a respeito sequer dessa coisa tão simples que é o tempo? A resposta é que, na maioria das vezes, não. Entre outras razões porque o tempo pode ser tudo, menos simples. Aliás, cabe aqui perguntar: o que é o tempo?
O objeto da história é o homem, vivendo em sociedade ao longo do tempo. O que seja o homem, a sociedade e o tempo é artigo de difícil acordo. Se optarmos pelo pensamento metafísico, poderemos acreditar que o homem foi, é (e será) o mesmo. Mas, estudando a história fica difícil acreditar que o homem moderno é o mesmo que o homem pré-histórico, pelo menos em seu aspecto social. Isso em razão de que cada um desses homens participa de tempos históricos diferenciados. Assim também a sociedade. Logo, homem e sociedade modificam no tempo. Não são os mesmos, como de resto a mesmice não sobrevive ao tempo. Esse é o princípio dialético, tal como formulado por Heráclito de Efeso alguns séculos antes de Cristo: “No mesmo rio entramos e não entramos, somos e não somos.”
Se assim é para o homem e a sociedade, o que falar do tempo, extremamente multifacético, cambiável, enfim, complexo. Mais complexo do que sonha vossa vã filosofia da história, querido questionador, que parece pretender uma exatidão através do entendimento do acordo. Talvez isso tenha uma explicação. Ocorre-me aqui o pressuposto que da ignorância somente pode surgir a ignorância, qualquer dúvida razoável somente pode ser posta pelo conhecimento. Em outras palavras a dúvida real somente pode ser derivada da ciência. Mas entremos em um acordo, em tal data aconteceu isso, em outra data aconteceu aquilo, foi fulano que fez isso ou aquilo e, pronto, e teremos a verdadeira história, exata, inquestionável. Será? A partir daí vamos empanturrar nosso estudante de “fatos” muito bem “entendidos”, que não explicam nem fazem compreender nada se considerados em si mesmos. O Brasil foi descoberto em 1500. Sim, e daí? Que entendimento devo tirar dessa informação? O que a informação ajuda na compreensão desse fenômeno chamado Brasil? A essas questões a mais alta ciência ignorante não poderá responder.
Antes que o nosso amador questione respondo que se devemos achar outro culpado, nem que seja para nos livrarmos do crime de nós, os historiadores, não nos entendermos, tenhamos coragem e apontemo-lo. A culpa é do tempo, e isso resume tudo. Mas o que é o tempo? É esse carrasco da história, que esconde-se de nós, não se apresenta claramente em nossas fontes, foge entre os nossos dedos quando tentamos agarrá-lo e ri, às gargalhadas, de nosso desespero quase impotente. Mais ainda, se traveste para nos confundir. O incauto que o vê enxerga nele a folinha, o calendário, a data finalmente. Mas ele é mais, confundindo os historiadores e impedindo-os de “se entenderem”, ele é a própria zombaria.
Quando o vemos com sua máscara de folinha, forma que mais das vezes se apresenta, começa a confusão. Porque o tempo aí aparece como fato, como a encarnação da precisão. O tempo, concebido em sua forma mais simples, como data, se confunde com o fato e torna-se então mais importante do que o fenômeno. Contudo, ele nos enganou mais uma vez, fazendo-nos confiar no rigor da data como requisito da verdade histórica. Fez-nos acreditar que a História é uma ciência exata, quando não é, produzindo com essa farsa burlesca a mais perfeita manifestação do engano, o positivismo, manifestação do século retrasado.
Vá você, amante leigo da História, acreditar nessa figura mutante e verá onde se meteu. O Brasil foi descoberto em 1500. A revolução Francesa começou em 1789 ou, mais simplesmente, estamos no ano de 2017 d.C. Tem certeza? Alguns sustentam que o Brasil foi descoberto um ano e meio antes de Cabral aportar nessas plagas pelo navegador português Duarte Pacheco[1]. A Revolução Francesa iniciou realmente com a tomada da Bastilha, ou foi com a decapitação de Maria Antonieta e Luiz XVI? Outros sustentam que não estamos em 2017, mas em 2012, pois o calendário que inicia com o nascimento de Cristo estaria errado em cinco anos.
Caro leitor não desmaie ainda, fique acordado para saborear a confusão. Somente o erro no calendário torna todas as datas da nossa história erradas, se as entendermos como necessariamente precisas, matematicamente precisas. E para aumentar a confusão do leitor alerto que a afirmação: o Brasil foi descoberto em 1500 é totalmente vaga e imprecisa. Senão, vejamos, em 1500 o Brasil não existia, e sim o território onde ele seria construído, logo não poderia ser descoberto. Como foi descoberto em 1500? Há vestígios arqueológicos que demonstram a chegada dos primeiros homens, nessa parte do continente americano onde seria construído o Brasil, a aproximadamente 11.500 anos, muito antes dos portugueses portanto. E o Duarte Pacheco? Se aceitarmos aos questionamentos acima, nem ele nem Cabral “descobriram” o Brasil. Durma-se com um barulho desses.
O tempo como expressão da folinha é apenas um marcador relativo, que nos permite as noções do “antes” e do “depois”. Contudo, quando sua determinação é regida por operações lógicas e sociais queda-se uma entidade cambiável. Enfim, nem esse tempo, que parecia tão exato, salvou-se da confusão armada pelos historiadores (que por isso mesmo não se entendem). Muitas vezes esse tempo é convencional, outras vezes é constatável como data (a data de um decreto, por exemplo). Paradoxalmente é no primeiro caso onde encontramos a essência da História enquanto atividade intelectual. Segundo afirmou um grande historiador a precisão factual não é mérito, mas obrigação do historiador. Contudo, para que nos aproximemos dessa precisão é necessário que tenhamos uma percepção mais sofisticada daquilo que é o tempo para a História. O verdadeiro “tempo” com que se defronta o estudioso é aquele indicado por Marc Bloch, ou seja, o plasma onde estão os fenômenos sociais que devemos nos esforçar para captar. O resto é data. A sabedoria popular já o percebeu com mais clareza do que sábios doutores essa essencialidade histórica do tempo: o tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça e que um fiapo do bigode garantia a palavra empenhada. Tempo imaginário, mas ainda assim tempo social.
[1] ISTO É. O verdadeiro Cabral. 26/11/1997.
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