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Dante Fonseca

Trabalhadores Cearenses retirantes da seca de 1877/1878 na ferrovia Madeira-Mamoré


O naufrágio do navio Metropolis no litoral norte-americano, episódio ligado a tentativa de construção da E.F.M.M. em 1878, revela uma faceta da ganância e do desrespeito pela vida humana que também teve consequências sobre os trabalhadores brasileiros flagelados pela seca de 1877-1878. Esses homens, buscando trabalho para fugir dessa catástrofe social, enredaram-se em outra tragédia na qual todos sofreram e muitos morreram.

Para a P. & T. Collins a tragédia do Metropolis representou o prejuízo considerável tanto pela carga como pelos trabalhadores perdidos, tão necessários para a construção da ferrovia. Ao desfalque dos trabalhadores do Metropolis somou-se outro, ocasionado pela rebelião dos trabalhadores italianos em Santo Antônio, após a chegada de Collins em 29 de março. Todos esses contratempos somados à diminuição dos trabalhadores abatidos pelas doenças tropicais tornou mais urgente a necessidade de novos recrutamentos.

As primeiras tentativas foram realizadas nos E.U.A., mas elas não resultaram em recrutamento de trabalhadores na quantidade pretendida pela ferrovia. A razão desse insucesso foi anunciada (Afraidto go toBrazil) no jornal “New York Tribune” de 10 de maio de 1878. Havia por parte dos trabalhadores norte-americanos o medo de vir para o Brasil. A notícia nos dá conta de que apesar dos esforços de um agente da P. & T. Collins em Washington e na Virgínia para contratar trabalhadores negros não conseguiram atrair mais de 125 interessados. A tarefa poderia ser mais bem-sucedida, dado o grande número desses trabalhadores desempregados naquelas áreas. Contudo, pesava na decisão de recusar a oferta de trabalho o fato de que ainda existia a escravidão negra no Brasil. Temiam que aqui fossem escravizados (apud BARBOZA, 2013, p. 179).

Para reforçar o quadro de trabalhadores foi encomendado ao sr. José Paulino von Hoonholtz a contratação de mais 600 indivíduos (GALVÃO, 1878, p. 57). Esse empresário havia residido no Ceará e possuía interesses comerciais vinculados à empresa que fornecia água potável para a capital daquela província (FIGUEIREDO JÚNIOR, 1863, p. 19). Assim, os trabalhadores foram recrutados no Ceará e partiram de Fortaleza ainda em 1878 a bordo do Purus, vapor da Marinha de Guerra Brasileira. Vinham alguns de diversas localidades do interior do Ceará e outros das províncias vizinhas. Todos fugiam de uma das enormes secas que assolaram o nordeste brasileiro nos anos de 1870. Ficavam arranchados no subúrbio da capital, aguardando uma solução para seus problemas, onde foram recrutados. O recrutador receberia US$ 1,30 por dia de trabalho dos recrutados e o transporte desses trabalhadores para o norte seria pago com verbas dos “Socorros Públicos”.

Embora a maioria dos trabalhadores fosse solteira, seguiam junto quarenta esposas dos operários, que serviriam como cozinheiras, além de quarenta crianças dessas famílias. Alguns trabalhadores seguiam sem as esposas, mas acompanhados de outros parentes, filhos adultos e irmãos. Além dos braçais iam também vinte apontadores de turmas. Apesar de ser combinado que a empresa ferroviária proveria o crédito em Belém para a obtenção de alimentos para os recrutados, tal não ocorreu. A recusa dos comerciantes paraenses em fornecer esses víveres gerou a revolta dos recrutados. A demora em sair de Belém para Santo Antônio aumentava a exasperação dos trabalhadores. Em setembro de 1878 o Purus ainda estava no porto de Belém sem poder prosseguir em razão da vazante do rio Amazonas (CÂNDIDO, 2014, pp. 47-48).

Seguiram no vapor Canuman e, segundo Craig, chegaram a Santo Antônio apenas 300 ou 400, bastante debilitados em razão de uma epidemia de varíola (1947, p. 367). Note-se que 115 cearenses desembarcaram em Belém, desligados da expedição por Hoonholtz em razão de uma rebelião dentro do navio promovida pelos trabalhadores insatisfeitos quanto ao tratamento recebido, especialmente a alimentação (CÂNDIDO, 2014, p. 45).

Ao chegar o vapor Canuman a Santo Antônio trazendo os trabalhadores cearenses o desastre do empreendimento já estava selado. Em novembro de 1878 o presidente da província do Amazonas visitou aquele povoado. Observou ali que os trabalhadores estavam insatisfeitos em razão no atraso dos seus pagamentos. Collins declarou não possuir recursos para honrar esses compromissos. Terminado o tempo do contrato dos trabalhadores norte-americanos e italianos que vieram com a primeira leva poderiam retornar às suas casas. Porém, muitos ali ficaram aguardando seus proventos, apesar da promessa de que ao chegar aos E.U.A. seria efetuado o pagamento.

Retirantes da seca de 1877. - Gente de Opinião
Retirantes da seca de 1877.

Desenho de PercyLau.

Fonte: Geografia da Fome, de Josué de Castro.

 

Atritos com Hoonholtz relativos ao computo das horas trabalhadas aumentavam os problemas. 76 cearenses doentes retornaram a Manaus no vapor Juruá. (GALVÃO, 1879, pp. 39-42).

A fome era uma constante, mesmo entre os trabalhadores norte-americanos. Os cearenses tiveram que adquirir do armazém da empresa ferroviária alimentos a preços bastante majorados, o que era de estranhar ao sr. José Paulino porque a empresa possuía isenção de impostos de importação. O clima de tensão em razão da revolta anterior agravava-se, pois havia sete meses que os trabalhadores não recebiam seus salários.

O Canuman navegando o rio Iça (Putumayo) em 1879.  - Gente de Opinião
O Canuman navegando o rio Iça (Putumayo) em 1879.

Desenho: ÉdouardRiou.

Fonte: CREVAUX, 1883, p. 331.

 

O temor de que também não fossem pagos fez com que os cearenses parassem de trabalhar, desistindo do intento após a intervenção do recrutador. Aumentando a penúria dos homens o próprio Collins resolveu fornecer aos trabalhadores alimentos e medicamentos. Logo depois suspendeu o fornecimento. Posteriormente o contrato com José Paulino Von Hoonholtz foi desfeito. O recrutador propôs então a esses trabalhadores contratá-los diretamente ao preço de três mil réis por diária dos quais seriam debitados dois mil réis a título de despesas com alimentação. Muitos desses cearenses ficaram doentes e, não recebendo o salário, não tinham como sair de Santo Antônio (CÂNDIDO, 2014, pp. 45-48).

A catástrofe já era visível em Santo Antônio, lutando com a falta de recursos e doenças já no final do ano, em novembro, o número de cearenses trabalhando era de 325. Os salários deixaram de ser pagos, impedindo a muitos, inclusive norte-americanos, de saírem do local. Os que conseguiram sair foram para Belém ou Manaus conforme informou o barão de Maracaju a chegada de 122 cearenses na capital do Amazonas. Aproximadamente 300 norte-americanos foram para Belém onde viveram da caridade pública até conseguirem retornar aos seus lares. Finalmente, cem desses cearenses foram contratados para trabalhar na localidade do Crato, no rio Madeira, levados por Hoonholtz para servir ao seringalista boliviano D. Santos Mercado (CÂNDIDO, 2014, pp. 48). Do destino das mulheres e crianças transportadas no Purus e no Canuman não encontramos notícias.

 

Extraído do livro Estudos de História da Amazônia. Vol. II (2ª. Ed. Porto Velho: Rondoniana 2016) de autoria de Dante Ribeiro da Fonseca.

 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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