Sábado, 15 de abril de 2017 - 06h50
Por Dante Ribeiro da Fonseca
Certas pessoas têm o hábito de anotar em diário suas impressões sobre os fatos cotidianos. E as cidades? Têm elas também um instrumento semelhante de registro? As cidades também têm os seus diários, são os jornais, onde ficam impressos os fatos do seu dia a dia. Neles estão registradas muitas facetas da vida social. Mais da vida urbana e menos da vida rural. É instrumento citadino por natureza. Enquanto o diário cobre o registro de uma vida, o jornal pode cobrir o percurso de várias gerações. Além disso, ao contrário do diário, onde impera a subjetividade individual, no jornal expõe-se um conjunto de subjetividades subjacentes aos artigos, notícias e aos anúncios nele expostos.
Esse conjunto de individualidades agregados em um mesmo meio de comunicação colabora, por sua vez, para a formação das impressões coletivas sobre a urbe. Abrindo um de seus exemplares sabemos o que ocorreu naqueles dias, ou ao menos o que foi selecionado para ser registrado. Sabemos o fato, ou ao menos como o jornalista o interpretou ou o informou. Sabemos como era seu comércio, ou pelo menos como os comerciantes o apresentavam e, assim, seus produtos. Mesmo assim, apesar dessa dificuldade de concluir pela cidade real que nos apresenta a epistemologia, expõe o jornal um pouco da sua paisagem na época em que foi publicado. No limite, podemos vê-la através daquilo que Adam Shaff chamou de “fatos duros” ou do aspecto mais factual que é exibido nele: seus moradores mais ilustres, e também os indesejados, seu comércio, suas associações, suas brigas e acertos. Da alta política à desavença entre vizinhos, da “alta sociedade” às “notícias populares”. Tudo cabe no jornal, o que não significa que tudo é nele registrado. E assim é também se analisarmos a notícia sob seu aspecto subjetivo. Com todos esses senões, se considerado individualmente, é o jornal o veículo onde a cidade mostra de forma condensada o maior número de seus intermináveis aspectos.
O “Alto Madeira” noticiou milimetricamente a cidade de Porto Velho ao longo de 100 anos. Não é para menos, o jornal e a povoação são contemporâneos. Em suas páginas podemos aventurar o encontro do fixo e do transitório. Os movimentos humanos e espaciais de uma cidade em constante mutação, mas que manteve, sob a capa de novas manifestações, as contradições da vida social. Afirmou o historiador francês Marc Bloch que uma das tarefas da História é explicar a mudança, e acrescentou que também é sua tarefa explicar a permanência. Mas, para proceder a essa operação explicativa temos que discernir primeiramente o que mudou do que permaneceu. Essa tarefa de discernimento que antecede à tarefa explicativa é de dificílima operação. Mas é possível? “O essencial é invisível aos olhos.”, disse Saint-Exupery, fazendo-nos caminhar para sua quase impossibilidade. Karl Marx, porém, declara que essa invisibilidade pode ser superada pois, a ciência é o instrumento de discernimento da essência, oculta pela aparência. Passado e presente se nos apresentam de forma inextrincável, como se um fossem. Se já é difícil declarar a permanência do passado, mais difícil ainda é nominar seus elementos. Se já é difícil declarar a mudança no presente, mais difícil ainda é apontar o que mudou. Do Mocambo ao Marcos Freire, bairros populares de nossa cidade, muita coisa mudou, sabemos. O primeiro já existia em 1917 e o segundo surgiria coisa de 70 anos depois, mas a disparidade entre as áreas residenciais da cidade se manteve em razão da manutenção de uma brutal distância social que separa ainda hoje os seus munícipes. O que mais mudou e o que mais permaneceu? Às vezes, a aparência das coisas faz-nos ver mudança de conteúdo (essência) onde há apenas mudança na forma (aparência).
Pretendia falar da fundação do Jornal “Alto Madeira”, em 15 de abril de 1917, o mais antigo jornal de Rondônia. Mas, temi ser repetitivo. Outros já anteciparam essa tarefa. Eu mesmo já historiei brevemente o assunto em outra ocasião. Assim, decidi tomar aleatoriamente um dos antigos exemplares desse jornal, para tentar captar o cotidiano dessa vila de Porto Velho na primeira metade do século passado. Apresenta esse número tomado ao acaso, àqueles leitores do século XXI que se dispõem a folheá-lo, a infância de um século XX recém-nascido do século XIX e, portanto, ainda muito parecido com ele. Talvez como extemporâneo leitor encontre algo em comum com aquele contemporâneo dessa edição, pois sou leitor da infância do século XXI recém-saído do século XX e a vida não muda com as viradas dos séculos na folhinha, mas ao longo dos seus transcursos.
No domingo, dia 08 de julho de 1917, ano 1 do “Alto Madeira”, circulou sua edição de número 15 em Porto Velho, então Estado do Amazonas. Caracterizava-se como um jornal independente, dedicado aos interesses regionais e tinha como divisa a frase latina Labor Omnia Vincit Improbus, que significa: o trabalho tudo vence. Circulava de duas em duas semanas. Talvez pela pequenez da vila não houvesse notícias suficientes para uma circulação mais amiudada. Talvez faltassem leitores por ser grande parte da população à época analfabeta. Seu gerente, João Soares Braga, e seu administrador e proprietário, Cincinato Elias Ferreira, davam plantão na redação e oficina do jornal, que se situava na avenida Sete de Setembro.
Naquele dia, como em outros daquela primeira parte do século, estava anunciada a partida ou chegada dos vapores e seus passageiros, pois era o rio a única via de transporte de Porto Velho então. Cabe a exceção da ferrovia Madeira-Mamoré, que conduzia seus passageiros do Amazonas ao município vizinho pertencente ao Mato Grosso, fronteira com a Bolívia. Os vapores que estavam anunciados naquele dia? “Madeira-Mamoré”, “Índio do Brasil”, “Recife”, “Sobralense”, “Rio Curuçá”, “Rio Machado”.
O nome dessas embarcações nos reporta a uma parte da História ou da Geografia do Amazonas e do rio Madeira. O “Madeira-Mamoré”, pertencente à empresa de navegação da ferrovia de mesmo nome que cobria o roteiro Belém/Manaus/Porto Velho. A ferrovia ligava os rios Madeira (Porto Velho, Amazonas) ao Mamoré (Guajará Mirim, Mato Grosso), ambos os pontos situados hoje em Rondônia. Após esse percurso ferroviário até o rio Mamoré, ainda transportava cargas em embarcações até Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Isso sem mencionar os portos intermediários, no Brasil e na Bolívia. O “Índio do Brasil”, ao contrário do que muitos pensam, não homenageia nosso nativo. É o nome de um engenheiro que faleceu no rio Madeira a serviço da comissão Morsing/Pinkas nos anos de 1880. Essa comissão foi uma daquelas que veio a serviço do governo imperial estudar o trecho encachoeirado do rio Madeira em razão da construção da ferrovia Madeira-Mamoré, que foi concluída entre 1907 e 1912. O “Rio Machado”, homenageia o principal afluente do rio Madeira, também conhecido como rio “Ji-Paraná”. O “rápido e luxuoso paquete Rio Curuçá”, tomava o nome de um rio do estado do Amazonas que deságua no rio Javarí, cuja nascente marcava nossa fronteira com a Bolívia. O desconhecimento da nascente do rio Javari foi uma das causas da Guerra Acreana, fenômeno do primeiro surto gumífero.
Os nomes das duas embarcações que deixamos por último pode fazer aquele que acompanha esse passeio estranhar. Como explicar os nomes “Recife” e Sobral dado às embarcações? Qual a relação desses nomes com a Amazônia? Ocorre que a partir do final dos anos de 1870 enorme quantidade de migrantes nordestinos veio trabalhar nos seringais da região. Foram enxotados de suas terras pelo fenômeno da seca, que agravou o quadro de desigualdade social naquela terra. É a enorme “[...] transumância amazônica [...] de que nos fala Celso Furtado. Daí o nome “Recife” capital do estado nordestino de Pernambuco. Dentre esses migrantes nordestinos, a grande maioria era composta pessoas oriundas do Ceará, onde a estiagem foi particularmente severa naqueles anos e nos anos seguintes. Daí o nome “Sobralense”, gentílico de Sobral, cidade daquele estado.
Voltemos ao nosso jornal. Por esse número do “Alto Madeira” fomos informados que o coronel Paulo Saldanha havia partido para Manaus pelo vapor “Recife”, de onde seguiria para Belém com a intenção de tratar de problemas de saúde. O coronel, que no futuro seria empresário da navegação do rio Guaporé, era naquele momento gerente da Guaporé Rubber Company naquele rio, pertencente à Madeira-Mamoré. Que o editor anterior do “Alto Madeira”, sr. Francisco R. de Queiroz, que era também um dos proprietários do jornal, estava de partida também para Manaus. Que o médico Jayme Pereira havia chegado “ante-hontem” pelo vapor “Rio Machado” e, juntamente com sua esposa, estava hospedado na residência do sr. Vivaldo Tosta. Que a comissão encarregada da construção da igreja matriz da vila havia recebido importantes doações de pessoas e do comércio local, a saber: padre Raymundo de Oliveira, Dr. Joaquim Tanajura, Fidel Claure Bacca, José Z. Camargo, Fernandes Lemos e Companhia, Rosas, Irmão e Cia.
Sabemos ainda que contatos com a Bolívia eram, como hoje, constantes. O cônsul boliviano no Abunã havia reclamado contra a invasão do território daquele país pelas autoridades policiais brasileiras que lá foram efetuar diligência. O vice-cônsul da Inglaterra em Riberalta, sr. George Liall, chegara no vapor “índio do Brazil”, de passagem para a Bolívia onde tomaria posse do cargo. Nos vapores chegados ao porto uma quantidade de volumes pequena, mas sempre presente, seguiria para a Bolívia nos vagões da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré e depois em suas embarcações. Finalmente, que para a construção da matriz colaborou um residente da vila o qual, pelo nome, distinguimos ser boliviano, o sr. Fidel Claure Bacca.
Na coluna “Vida Social” eram informados os aniversariantes, evidentemente pessoas gradas, e suas festas. Também a festa que seria realizada na Associação Instructiva, Recreativa e Beneficente. Havia ainda uma seção telegráfica, mas naqueles dias não estava sendo publicada porque o telégrafo estava danificado. Interessante observar também que pela entrada de produtos no Mercado Municipal sabemos que a cidade não era tão mal abastecida assim: hortifrutigranjeiros, ovos, carnes de boi, carneiro, galinhas, porcos, peixes, farinhas. Enfim, havia de tudo, para quem tivesse posses para adquirir, mas não sabemos se em quantidade suficiente para servir a todos.
Também a Maçonaria se organizava, pois, um pequeno anúncio informa que: “Haverá hoje na casa Pai da Pátria uma reunião de diversos maçons para tratar da fundação de uma loja maçônica em Porto Velho.” O que era a casa Pai da Pátria? Uma casa comercial? O exame de outros números do jornal certamente nos responderia a essas e outras dúvidas. Mas sabemos que a reunião trataria da fundação da Augusta e Respeitável Loja Maçônica União e Perseverança, ainda hoje existente na esquina da rua Pedro II com a rua José Bonifácio, que também completará cem anos no próximo ano.
Uma notícia surpreendente para os nossos contemporâneos é que, em razão da crise da borracha, e da falta de dinheiro na praça, o Superintendente (prefeito) anunciou a prorrogação do prazo para o pagamento do imposto predial e do aforamento dos terrenos.
Do porto e das atividades tributárias, familiares e associativas continuamos nosso passeio pela vila através das páginas do “Alto Madeira”. Agora observando os anúncios de produtos e serviços. Como o anuncio do dr. M. A. Santos Junior que se apresenta como advogado e discente da universidade. Qual universidade? Talvez a Universidade Federal do Amazonas, fundada em 17 de janeiro de 1909. O ilustre advogado informava residir na redação do mesmo jornal no qual anunciava. Do Cal de Santarém, “[...] de óptima qualidade [...]” vendido pela I. & Jones e Cia., instalada nessa povoação. Dos cigarros paraenses Therezita, que segundo a propaganda eram os melhores da Amazônia. A prova dessa superioridade residia no fato que sua fábrica era a maior da região, a que mais produzia e a que mais vendia.
Quanto aos estabelecimentos comerciais, a Casa Phenix, pertencente a Rosa, Irmão & Cia, promovia concertos musicais durante a semana, inclusive aos domingos, e vendia estivas em geral.
A Pharmacia e Drogaria Madeira situava-se à rua Sete de Setembro. Nela o médico Joaquim Tanajura, prefeito da vila, atendia todos os dias das 8 às 10 da manhã. A Mercearia Villar de Laureano Villar & Irmão, situada à rua da Palha (atual Natanael de Albuquerque) aviava, ou seja, adiantava mercadorias aos estabelecimentos rurais para pagamento futuro com a própria produção. Quem sabe vendia ou aviava também para o pequeno comércio do interior? A Pharmacia Americana, na avenida Floriano Peixoto, que anunciava preços sem concorrência, em franco desafio à Pharmacia e Drogaria Madeira. A Casa Formosa Syria de Elias Gorayeb, certamente uma homenagem à formosa terra de seu proprietário ou a alguma formosa conterrânea sua. Era especializada em artigos de vestuário. Aliás, outra formosa homenageada nas páginas do jornal era a Therezita, dos cigarros paraenses.
Braga, Vieira & Cia. “Grande armazém de estivas nacionaes e estrangeiras”. O Café e Restaurante Rivas, situado à rua Floriano Peixoto em cujo anúncio dizia: “Fornece pensões para casas particulares, com esmero prontidão e asseio.” A empresa Quadros, Pessôa & Cia., à rua Quintino Bocayuva, era proprietária do vapor “Rio Curuçá”. Anunciava receber “[...] gêneros de produção do Estado que colloca aos melhores preços da praça.” Ou seja, os gêneros da produção principalmente extrativa do município de Porto Velho e adjacências, como Santo Antônio, pertencente ao vizinho município homônimo do Mato Grosso. Essa produção, segundo o anúncio era comercializada por: “Commissões, consignações e conta própria”. Mas, não somente recebia produtos extrativos para comercializar, também aviava, pois anunciava “Importação directa da Europa e do Sul do Paiz”. Lembro ao leitor que, naquele tempo, o Norte compunha-se de todos os estados das atuais regiões Norte e Nordeste e o Sul, de todos os estados das atuais regiões Sul e Sudeste. Assim, a importação do Sul deveria se compor de produtos industrializados, principalmente provenientes dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Ainda, é importante lembrar que esse anúncio é prova que em 1917 já se fora o tempo em que se aviava os produtores quase que exclusivamente em Manaus e Belém.
Bem, nossas pernas (ou vistas, que nessa turnê fazem as suas vezes) já estão cansadas e devemos parar. Bom que cansaram justamente quando o jornal acabou, afinal de contas a vila é pequena. Por aqui terminamos o passeio pela vila de Porto Velho nesse domingo de 1917. O passeio foi útil e suscitou algumas considerações da parte desse peripatético escrevinhador. Voltando ao presente, vê-se então que muita coisa desapareceu, outras coisas mudaram ... ou inverteram seus rumos. Como o coronel Paulo Saldanha, ainda hoje muitos dos nossos munícipes se socorrem de centros mais avançados na ciência médica, apesar do grande desenvolvimento da medicina no estado. Talvez não houvesse ainda, como hoje há até com exagero, hotéis na cidade onde o médico dr. Jayme Pereira pudesse se hospedar com sua esposa, ou caso existisse não ofereciam condições razoáveis para hospedar tão distinta pessoa. Lembro que também o nosso advogado e professor universitário dr. M. A. Santos Junior não residia em hotel, mas na redação do “Alto Madeira”. Como antes os templos continuam a ser erguidos com a doação dos fiéis. Só que agora são em maior número, pois há muitos templos evangélicos quando antes quase que somente havia os católicos. Esses templos se reproduzem em quantidade e com a velocidade de nossa modernidade (sim, nossa, pois há outras).
Também o comércio, ainda que em estilo de propaganda mais atual, continua a gabar suas qualidades e dos seus produtos. Já o aviamento não mais existe, mas muitos de nossos conterrâneos interioranos vêm à capital para abastecer seus comércios em grandes atacadistas. Voltando aos médicos. Muito oportuno era o costume do Dr. Tanajura realizar consultas em uma das farmácias da vila. Esse era um costume generalizado na época, pois as farmácias fabricavam os medicamentos a partir das receitas dos médicos, e não apenas os vendiam já prontos, como hoje. Além dessa comodidade, havia outra, pois o consulente também poderia aproveitar a ocasião e fazer suas reclamações de munícipe com o médico. E certamente as fazia, privilégio esse que não temos atualmente. Depois do dr. Tanajura tivemos outros prefeitos médicos que, apesar das inúmeras farmácias que surgiram desde então, não davam plantão em nenhuma delas, até onde sabemos. Enfim, as farmácias não fabricam mais remédios, razão pela qual os médicos as abandonaram. Assim, ficamos sem a possibilidade de aproveitar a consulta médica para reclamar com o prefeito nas farmácias. É o sinal dos tempos, o médico prefeito de 1917 foi substituído pelos prefeitos médicos posteriores.
Aproveitando a menção aos discípulos de Hipócrates, informamos que naquele início do século XX fumar ainda não fazia mal à saúde, sendo o uso do cigarro às vezes mesmo prescrito pelos médicos para certos males. É por isso que a melindrosa Therezita aparece no maço de cigarros despudoradamente mostrando o ombro nú, com uma flor adornando seus cabelos e pitando despreocupadamente. Ontem o erro, hoje também, mas com conteúdo diferente. Hoje os maços de cigarro são obrigados a divulgar campanhas que aterrorizam os fumantes. Às voltas com os males que o hábito pode causar, os fumantes ainda têm que ver cenas pavorosas de doentes, cujas mazelas foram causadas pelo uso do fumo, estampadas em seus maços de cigarro. O prazer causado pela visão da bela Therezita foi substituído pelo horror dessas imagens. Constituem-se em sádico assédio moral, em uma campanha absurda e cruel. Isso é um claro exemplo de que a crueldade não é monopólio do passado, mudou, porém, de forma e conteúdo.
Aproveitando a menção aos políticos dizemos que naquele ano de 1917 frequentavam eles as notícias das altas esferas sociais nos jornais. Já ao povo restava quase sempre as notícias populares, estas últimas sempre confundidas com as páginas policiais. Também nesse aspecto a coisa mudou. Hoje, com mais frequência do que seria de desejar o equilíbrio das finanças públicas nacionais, vemos os políticos aparecendo com brilhantismo nas colunas policiais. Nisso acompanharam seus antigos colegas da “high society”, parte dos grandes empresários, que não somente estão frequentando esse ambiente inóspito como também estão se acostumando a fazer turismo no mundo carcerário. Sinal dos tempos, antigamente somente pobre ia para a cadeia. Será que a moda chega aqui? Será que o “Alto Madeira” terá oportunidade de anunciar essa “modernidade” nas terras dos caripunas? De outro modo, a questão social naquela Primeira República brasileira era, como já disseram os historiadores, tratada como um “caso de polícia”. Hoje, já absorvida a função social do Estado, “caso de polícia” é a política.
Continuemos, porém. Porto Velho já não pertence mais ao estado do Amazonas, mas é a capital do estado de Rondônia desde 1981. Hoje são as autoridades brasileiras na fronteira que reclamam das investidas da polícia boliviana em território nacional. Por oportuno, declaramos quanto à formosa síria que caso se tratasse de uma moça, certamente essa qualidade já teria desaparecido hoje pelo efeito do tempo. Já a Síria, que supomos terra do sr. Elias Gorayeb, também ela hoje não mais possui a propalada formosura que exibia no nome do seu comércio. É terra devastada por guerra sangrenta. Dividida entre o fundamentalismo islâmico, a oposição ao regime autoritário e o poder de um cruel ditador. Esse ditador, apoiado por parte do seu povo e por duas potências, a Rússia e a China, apenas faz aumentar o rastro da destruição. A Síria encontra-se em um impasse, um empate como se diria no Acre. Tal como a Europa, naquele domingo de 1917, que estava devastada por uma guerra fratricida, a I Guerra Mundial. A causa de tudo isso? Podemos aventar várias. Tomemos duas: o impulso que Thomaz Hobbes afirma humano e primordial de honra e riqueza e o poder, objeto essencial da política, segundo Maquiavel, o último fornece a ferramenta para a satisfação dos dois primeiros.
O telégrafo já não é mais usado. Nem o teletipo. Mesmo o telefone hoje é pouco utilizado, pois agora existe o emeio, que já está sendo abandonado em favor do zap. Carta então, nem se falar. O jornal impresso em papel, único meio de comunicação de massa existente no Brasil em 1917, passou nos anos seguintes a sofrer a constante e crescente competição do jornalismo radiofônico, depois do jornalismo televisivo. Esses dois últimos trouxeram a informação a um novo público: os analfabetos e aqueles que sentem sono com a leitura. A internet, com seus recursos modificou não somente a comunicação interpessoal, mas está ameaçando seriamente o jornal impresso. A atual modernidade também se diferencia daquela de 1917 por ser muito mais veloz em suas mudanças, pelos menos naquelas mudanças aparentes. De qualquer modo, a internet também “quebra” de vez em quando, deixando seus usuários sem notícias.
Ficamos sabendo no nosso passeio que naquele tempo a prefeitura se apiedava dos cidadãos no momento de crise, procurando facilitar as condições para o pagamento dos impostos. Estávamos já na decadência e consequente crise do chamado I Ciclo da Borracha. Hoje, em plena crise derivada do desgoverno (ao que parece maior do que nunca) a que nos submete o sistema político em conluio com aquela parte corrupta do grande empresariado, ficamos satisfeitos quando não os aumentam. E estão já ameaçando aumenta-los. Viajava-se para outros estados nos vapores de diversas empresas que partiam de Porto Velho. Hoje a navegação fluvial serve apenas às localidades ribeirinhas entre Porto Velho e Manaus. Já se foram os tempos dos vapores. Foram substituídos pelos barcos movidos pelos motores diesel, pelas estradas de rodagem, automóveis e aviões.
O comércio, os hábitos, a forma de dar notícia, tudo mudou, desapareceu ou foi substituído, pelo menos em sua forma, pois sempre se mantém algo essencial na mudança. Isso nos conduz ao fragmento daquele grego do século V a.C., Heráclito de Éfeso, que declarou: “No mesmo rio entramos e não entramos, somos e não somos”. Nesse fragmento, pioneiramente acusou o movimento dialético das coisas. Apesar de tantos séculos passados a luta entre a dialética e a metafísica continua. Tudo mudou? Ou a vida é sempre a mesma? Mudou a forma? O conteúdo? Ambos? Mudou a humanidade em sua forma de pensar o Mundo? Mudou e não mudou, diria Heráclito. Entre o século passado e o presente, não mudou naquilo que é essencial, pois, para essa mudança das mentalidades nem a modernidade produziu mais velocidade. É hora de parar por aqui, pois o repouso ao final da caminhada tornou-me mais filosófico do que é recomendável.
Para finalizar, afirmo com certeza, que se tudo desapareceu daquele tempo, duas instituições particulares permaneceram. Com o passar das décadas, entre ganhos e perdas, se mantiveram invictas, pois driblaram Cronos, aquele que, afinal, tudo devora: o “Alto Madeira” e a Loja Maçônica União e Perseverança. Mudaram para manterem-se. Se fosse esse um artigo de jornal daquele ano de 1917 manifestaríamos nossos “encômios”, utilizando aquelas palavras que hoje são julgadas antiquadas, embora pertençam à mesma língua que ainda usamos. Mas, como estamos no século XXI manifestamos nossos louvores ao “Alto Madeira” e a todos aqueles que, com seu trabalho permitiram sua existência. Com a sua existência permitiu ainda esse jornal a possibilidade de se conhecer uma parte do passado e, dessa forma, enriquecer o presente. Fez isso como o diário serve à lembrança de seu autor. Nossos preitos ao seu primeiro proprietário o médico Joaquim Tanajura; a outro proprietário Assis Chateaubriand e ao seu proprietário atual, o jornalista Euro Tourinho, que com sua equipe formam a tropa defensora dessa trincheira da imprensa e da História de Rondônia.
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