Quinta-feira, 22 de abril de 2021 - 10h21
Bagé, 22.04.2021
Navegando o Tapajós ‒ Parte XIV
Cerâmica Santarena I
Cerâmica, Cultura na Ponta
dos Dedos
Havia nesse povoado uma casa de reuniões, dentro da
qual encontramos louças dos mais variados feitios: havia vasos, cântaros
enormes, de mais de 25 arrobas e outras vasilhas pequenas, como pratos, tigelas
e castiçais, de uma louça melhor que já se viu no mundo; mesmo a de Málaga não
se iguala a ela, porque é toda vitrificada e esmaltada com todas as cores, tão
vivas que espantavam, apresentando, além disso, desenhos e figuras tão
compassadas, que naturalmente eles trabalhavam e desenhavam
como os romanos. (CARVAJAL)
A
primeira notícia a respeito de artefatos de Cerâmica na Bacia do Rio Amazonas
foi transmitida pelo Frei Gaspar de Carvajal, em maio de 1542, no seu “Relatório do Novo Descobrimento do Famoso
Rio Grande Descoberto pelo Capitão Francisco de Orellana”, quando o clérigo
espanhol comparou o grau de perfeição das figuras e desenhos encontrados nas
louças do Rio da Trindade ([1])
a dos romanos. A Bacia do Rio-Mar foi, em tempos pretéritos, um caminho natural
utilizado por diversos agrupamentos humanos que deixaram, nas suas margens,
sinais definitivos de sua passagem, de sua história, crenças, costumes e grau
de desenvolvimento através da Cerâmica.
Os
estudos destes sítios arqueológicos vêm permitindo que sejam reconstituídas
algumas dessas rotas migratórias bem como as relações que estes povos mantinham
entre si. Tenho procurado, sistematicamente, encontrar vestígios de antigas
culturas materializados na arte da Cerâmica nos museus e coleções particulares
e considero, dentre todas, a mais criativa, mais elaborada e mais intrigante a
dos Tapajó. As peças mais sofisticadas desta cultura eram empregadas em
complexos cerimoniais religiosos e funerários. Cada peça moldada a mão era
única, decorada com maestria e cuja riqueza de detalhes antropomorfos e
zoomorfos me levaram a apelidá-la de “Cerâmica
Barroca Tupiniquim”.
A Arte da Cerâmica
Qualquer que seja o seu nome – Mãe-Terra, Avó da
Argila, Senhora da Argila e dos Potes de Barro, etc. –, a padroeira da Cerâmica
é uma benfeitora, já que os homens lhe devem, dependendo da versão, a preciosa
matéria-prima, as técnicas cerâmicas ou a arte de decorar os potes. Mas, ao
mesmo tempo, os mitos considerados mostram que ela tem um temperamento ciumento
e rabugento. Em um mito Jivaro [povos aborígenes peruanos e equatorianos], ela
é a causa do ciúme conjugal. Em outro mito, também dos Jivaro, cobra caro o seu
auxílio. Mostra-se carinhosa e ciumenta em relação às suas alunas, prendendo-as
sob a terra para mantê-las ao seu lado, ou então impõe numerosas restrições
quanto ao período do ano, o momento do mês ou do dia em que lhes é permitido
extrair argila.
(LÉVI–STRAUSS)
A
arte do barro imerge o ceramista no âmago da mãe terra, uma torrente telúrica
migra das terras e das águas para suas hábeis mãos, as energias planetárias
inspiram-no, seduzem-no, e ele abandona o casulo da criatura, ganha asas e se
transforma no criador, por breves momentos ele tem a oportunidade de se sentir
um pequeno deus. O ceramista inicia seu labor, impregnado dessas forças
mágicas, concentra-se e parte para a confecção de sua obra com segurança graças
ao conhecimento dos materiais e das técnicas a serem empregadas, herdadas dos
seus ancestrais.
Na Cerâmica, essencialmente combinamos: terra,
água, ar e fogo, mas não somos alquimistas. Somos empiristas. Ombreamos uma
picareta e saímos por aí, à procura de barro. Um buraco aqui, outro ali e vamos
enchendo a carroça deste, daquele e do outro tipo. Arregaçamos as mangas e
vamos preparando a massa até chegar a uma certa maneabilidade. Aí começa a
fecundação: formas vão se criando. Orgasmos se prolongam entre uma e outra
relação e o espaço vai se adornando de princípios intuitivos, forma-se uma
coletividade que pacientemente aguarda o fogo do forno. O forno é a grande mãe,
ora aborta, ora dá filhos sadios e bonitos. O fogo é a eternidade, é o êxtase
da comemoração, é lá que se rompe a casca do ovo, que se transpira o sangue e
reflete o poder das forças da natureza em expansão latente. A chama incute a
vida às formas na cor do Sol mais quente, no movimento que vibra e irradia
emoção intensa. Terminada a queima, resfriado o forno, abrem-se as portas das
câmaras e visualiza-se o estonteante milagre da transformação dos materiais,
que morre para viver outra vez. A verdadeira arte, entre outros alimentos, é um
alívio para a fatigada humanidade, essa imensidão de seres palpitantes que
rolam pelos ermos da esfacelada Terra. A Cerâmica já não é mais Cerâmica ou
arte: é cabeça, corpo e coração que se envolvem numa ânsia elástica. (BITAR)
O
seu envolvimento, porém, inicia-se muito antes do trabalho nas oficinas com a
escolha da jazida, da argila adequada e da seleção dos elementos de liga. A
coleta da argila é realizada nas barrancas, margens ou leito de Rios ou
Igarapés no período da vazante.
São
retiradas três camadas do solo: a primeira orgânica, rica em detritos de origem
vegetal e a segunda camada, um pouco mais limpa, são descartadas; a escavação
continua até se chegar à terceira camada onde se encontra o “barro bom”.
Normalmente
os artífices só exploram as jazidas uma única vez para não perturbar as
entidades do barro. Esta fase demanda grande esforço físico e, por isso mesmo,
é, normalmente, atribuída aos homens. A verificação da qualidade do material é
feita na própria mina através do tato, moldando pequenos roletes de argila, ou
pelo paladar.
Depois
de transportado para as “oficinas”, o
produto é minuciosamente examinado para que se retirem fragmentos de origem
orgânica ou mineral e, depois disso é, habitualmente, deixado em repouso por
alguns dias em cestos ou folhas de palmeira, em locais frescos para evitar seu
ressecamento.
Liga
Para
que a Cerâmica possa ser levada ao fogo, sem o risco de sofrer deformações e
rupturas, são misturados a ela substâncias:
– orgânicas: fibras vegetais, raízes, conchas, ossos, estrume;
– inorgânicas: areia, terra, mica, pedras calcárias, grãos de
quartzo, feldspato;
– biominerais: cascas de árvores ricas em sílica [caripé],
cauxi;
– cacos de Cerâmica
triturados.
Caripé (Licania Octandra)
As
cinzas de sua casca, misturadas à argila, aumentam a resistência da peça
confeccionada. A árvore é cortada e sua casca retirada e levada ao fogo. As
cinzas são piladas e coadas, resultando num pó fino de coloração cinza escuro.
Cauxi (Porifera, Demospongiae)
As
esponjas de água doce pertencem à classe Demospongiae (Tubella reticulata e
Parmula batesii), têm como característica básica a produção de um esqueleto de
espículas de Óxido de Sílica. As espículas possuem um aspecto de agulhas
transparentes ou opacas, com extremidades ligeiramente curvas. Essas espículas,
devido à sua constituição mineral, após a morte e putrefação das esponjas, são
liberadas da matriz de colágeno, que as mantém unidas em feixes estruturais e,
assim permanecem nos sedimentos, disponíveis até que os banzeiros as propaguem
no meio líquido.
Dr.
Alfredo da Matta (DA MATTA) faz a seguinte consideração a respeito do
espongiário:
Ora, por que o sagaz e astuto caboclo, ou o nordestino observador já
identificado com o meio amazonense, não entra em Rio que tenha cauxi, nele não
se banha e não bebe a água daí retirada?
Porque o silvícola, através gerações, ensinou a cada qual que “i cai tara”, isto é, ele se queima
n’água ou a água lhe queima! E com propriedade tão irritante para a epiderme,
mais pronunciada ainda ela se torna quando a água é ingerida, porque a
inflamação da mucosa gastrointestinal poderá por vezes apresentar sintomas
alarmantes. Por tal motivo o silvícola dizia: – “cai igaure”, isto é, queima, bebedor d’água.
A
Cerâmica dos Tapajó, no longínquo pretérito, usava como elemento antiplástico
mais importante o cauxi, que era empregado como único elemento de liga ou
associado a pequenas porções de pedras calcárias, areia e, raramente, a cacos
de Cerâmica triturados. Em virtude dos problemas causados pelo contato do corpo
humano com as finas espículas, a utilização do cauxi foi, com o passar dos
anos, abandonada.
Moldagem
Primeiramente
é moldado o fundo do vaso, obtido pela compressão da massa sobre uma superfície
plana e lisa (tábua, esteira ou casco de quelônio), até formar uma base achatada,
homogênea e circular. Concluída esta etapa, partia-se para a preparação dos
roletes de argila que, de acordo com o tamanho, eram comprimidos entre as mãos,
sobre a coxa, ou uma tábua e sobrepostos de forma circular um sobre o outro a
partir de uma base, em forma de anéis ou espirais para a elevação da parede do
recipiente. A cada rolete acrescentado, as peças recebiam um acabamento interna
e externamente para eliminar os vestígios deixados pela técnica do acordelado ([2]),
tornando as paredes mais lisas e finas.
Depois
de devidamente modelada, a peça era levada para secar em local fresco e arejado
à sombra; dependendo da espessura das paredes, este processo podia levar vários
dias. A secagem à sombra era uma fase importante, pois uma exposição direta ao Sol
ou ao forno ocasionaria danos à peça. Depois de parcialmente seca, tem início a
raspagem, quando se procura eliminar as asperezas com o auxílio de sementes,
conchas, pedaços de cabaça, seixos rolados, cocos (palmeira inajá – Maximiliana
Maripa Aublet Drude), ou outros materiais disponíveis.
Depois
de raspada, ela é lixada com a folha áspera de algum arbusto (Dileniacea sp.).
Procede-se, então, à decoração da peça: são feitas incisões geralmente com
motivos geométricos e, somente agora, são aplicados os apêndices tais como
alças, asas, figuras zoomorfas e antropomorfas. É necessária, então, uma
segunda secagem para enrijecer a Cerâmica dos apliques, antes de se partir para
a queima.
Queima
Uma diferença insignificante na escolha das argilas,
das coberturas, dos pigmentos ou das temperaturas de cozimento podem reduzir a
nada a obra de uma semana ou até mesmo de um mês. Desse modo, a preocupação com
a segurança induz o ceramista a reproduzir fielmente os materiais e os modos de
fabricação que ele sabe por experiência que são os mais apropriados para evitar
um desastre. Tudo leva o artesão a seguir um caminho direto e definido.
Afastar-se dele para um lado ou para o outro pode trazer consequências trágicas
no plano econômico... Daí um espírito profundamente conservador, uma
desconfiança em relação a todas as inovações que repercute na visão global do
mundo e da vida. (LÉVI–STRAUSS)
A
queima geralmente antecede à decoração pintada. Para queima, arma-se uma
fogueira, cujo tamanho varia em função da peça a ser queimada, em geral usa-se
lenha e casca de árvores em arranjo cônico envolvendo o artefato; isto garante
uma queima mais uniforme. As peças grandes são queimadas individualmente e as
pequenas em grupo, emborcadas no interior da fogueira, apoiadas em três pedras
onde são totalmente envolvidas pelo fogo durante uma ou duas horas.
Eventualmente os vasos são reposicionados de modo a queimar por igual.
A
queima é realizada ao ar livre e a impermeabilização da superfície é feita com
a seiva da entrecasca de árvores (Ingá spp.). Os grafismos são pintados com
pigmentos orgânicos e inorgânicos através de variadas técnicas, como a incisão,
a marcação com malha, a inserção de apliques, entre outros. O tom vermelho pode
ser obtido com o uso do urucum, o branco com o caulim, o preto com o jenipapo,
o carvão ou fuligem. A vitrificação do vasilhame era obtida com a aplicação de
resinas vegetais como o breu de jutaí, a resina de jatobá ou o leite de sorva ([3]).
Arqueologia e Cerâmica
Os Índios Pueblo acreditam que todas as suas peças
de Cerâmica possuem alma; também as consideram como seres personalizados. Os
potes passam a ter essa essência espiritual assim que são modelados e antes de
serem cozidos, e por isso dentro do forno são colocadas oferendas ao lado do
pote a ser cozido. Quando o pote quebra devido ao calor, emite um ruído que
provém do ser vivo que escapa. (LÉVI–STRAUSS)
Bibliografia
BITAR, Rosana. Arte e Transcendência a Obra de Ruy Meira
‒ Brasil ‒ Belém, PA ‒ Estacon Engenharia, 1991.
CARVAJAL, Gaspar de. Relatório do Novo Descobrimento do Famoso
Rio Grande Descoberto pelo Capitão Francisco de Orellana – Brasil – São Paulo, SP – Consejería
de Educación – Embajada de España – Editorial Scritta, 1992.
DA MATTA, Alfredo. Cai e Cauxi – Brasil – Manaus, AM – Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, 1934.
LÉVI–STRAUSS, Claude. A Oleira Ciumenta – Brasil
– São Paulo, SP – Editora Brasiliense, 1986.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H