Segunda-feira, 29 de novembro de 2021 - 10h25
Bagé, 29.11.2021
Cidade
do Rio, n° 64 ‒ Rio de Janeiro, RJ
Sexta-feira,
10.12.1897
VI
Os versos citados nos artigos precedentes falam mais alto que os mais
retumbantes adjetivos do meu sincero entusiasmo pelo vigoroso talento de
Francisco Mangabeira. Este admirável rapaz está destinado a ostentar sobre os
ombros dragonas de comando, na fileira dos mais galhardos Capitães da nossa
moderna legião literária. É original e é fecundo, como já ficou demonstrado.
Além disso, é espontâneo e musical, correto e emancipado.
A sua estreia vai ser um verdadeiro sucesso: ele surgiu inesperadamente,
de capacete de plumagens e armadura de aço, arrastando bizarramente as suas
esporas d’oiro de cavaleiro valente e enamorado, com ares do paladino medieval,
que vibra a guzla ([1]) dentro
dos castelos, depois de haver terçado armas vitoriosas em prol e na ausência da
castelã bem amada.
É um poeta de pura raça, com força bastante no pulso para vibrar em alto
diapasão todas as cordas da grande lira de Castro Alves; o qual, por singular
coincidência, morreu na mesma rua onde nasceu este futuro continuador das suas
glórias. Francisco Mangabeira é também um prosador distinto, caprichoso na
forma, obedecendo rigorosamente às imposições filológicas, timbrando por moldar
os diamantes brutos da inesgotável jazida dos clássicos vernáculos, com o buril
dos modernos artistas da palavra cinzelada.
Não conheço o seu último trabalho em prosa, escrito durante, os cinco
meses que passou o poeta nos hospitais de sangue de Canudos, a trágica cidadela
do recôncavo baiano. Mas, ainda saturado da intensa poesia do seu outro livro
em prosa ‒ “Santa Thereza de Jesus”, não trepido em antecipar-lhe
o meu juízo favorável.
O volume “Santa Thereza” é
talhado pelos mesmos moldes da “Be Kiss”,
do vigoroso chefe do simbolismo em Portugal, Eugênio de Castro, e que acaba de
ser vertida em castelhano pelo argentino Berisso. Nele refletem-se os êxtases
da Poetisa Santa, que amava ao seu doce Jesus com misticismo de freira e
volúpias de espanhola.
O perfil da sublime apaixonada das claustros tem um quê da encantadora
imagem de “Be Kiss” “a que ao trepar ao monte adormecera sobre
uma almofada de anacampsero ([2]), flores do sortilégio, que despertam paixões
mais violentas que o Mar e mais volúveis que o vento”; a “Be Kiss”, a desdenhosa bem amada do
velho e opulentíssimo Nadar, – que procurava aquela que o deixaria pálido como
uma opala.
Essa rainha de Sabá, que fazia lembrar a Sulamita do “Cântico dos Cânticos”, a namorada virgem
do pastor, que resistiu ao Rei Poeta, o sábio voluptuoso, e em cujo coração se
escondeu, toda vestida do medo, enquanto seus desejos morriam de frio... como
leõezinhos sobre a neve, parecendo em sua melancolia que sobre o seu coração
caiam folhas secas. Que ostentação de pedraria! Estranha flora e rara fauna de
pompa viridente e luxuriante. Antes, porém, de por aqui o ponto final, não
resisto à tentação de oferecer aos leitores da “Cidade do Rio” uma das mais recentes poesias do meu jovem amigo e
confrade. As seguintes estrofes foram quase improvisadas, isto é, escritas no
meu gabinete, pouco antes do jantar, no dia em que um do meus queridos
filhinhos completava três anos de idade. Ei-las:
Choro e Riso
(Francisco
Mangabeira)
Ao Menino Manuel Lopes Teixeira
Quero umas rimas sonoras,
Iluminadas, sutis,
Como os teus olhos, se choras,
Como os teus lábios, se ris.
Tenho certeza que moras
Num encantado País,
Metade do dia – choras,
Na outra metade – ris.
Já me disseram que adoras
Esses tesouros gentis,
E eis a razão porque choras...
E eis a razão porque ris...
De quando em vez te alcandoras ([3])
Aos celestes alcantis ([4]).
Sorris... e eu penso que choras.
Choras... e eu penso que ris.
Se calado te demoras,
Meu peito ansioso te diz:
– Estrela, porque não choras?
– Criança, porque não ris?
Serafim, tu revigoras
Os teus pais, a quem Deus quis
Abençoar – porque choras.
Santificar – porque ris!
O teu choro sabe a ([5])
amoras
Teus lábios são bogaris ([6]);
Tua mãe vê o céu choras...
Teu pai vê Sol – se ris.
E Eles, que não têm auroras
Dos corações infantis,
Choraram – como tu choras,
Sorriram – como tu ris.
Se eu visse as aves canoras
Pipilando no matiz
Dos prados, quando choras,
Voando, quando ris; [...]
As flores murchas – coloras,
Fazem – que voem répteis...
Quando, criança, tu – choras,
Criança, quando tu – ris.
Conversas com Deus... namoras
Princesas, fadas, huris....
O mundo ri – quando choras
E eu canto – quando tu ris.
Só peço nestas sonoras
Rimas que sejas feliz:
Que chores – como hoje choras...
E rias – como hoje ris!
Nada mais direi a respeito, do belo talento de Mangabeira. Num dos
próximos números da “Revista Brasileira”
publicarei. Alguns fragmentos do poema “Hostiário”,
que considero a sua obra prima; e por aí o público julgará das aptidões do novo
poeta.
Chamo, porém, desde já, para este nome a mais pronunciada atenção dos
meus ilustres amigos, J. Veríssimo, Araripe Júnior, Sylvio Romero e Eunápio
Deiró, os grandes mestres da crítica nacional, para a cada um deles sobra
competência para dizer se eu tenho razão em prever no aparecimento do
Mangabeira o despontar de um astro de primeira grandeza no vasto azul do nosso
armamento literário. (CDR, n° 64)
Correio
da Manhã, n° 966‒ Rio de Janeiro, RJ
Quarta-feira,
03.02.1904
Francisco
Mangabeira
Uma lutuosa notícia publicamos hoje no serviço telegráfico desta folha.
Vindo do Acre para onde em março do ano passado seguira arrastado pelo
indomável entusiasmo da sua alma de poeta e de moço, daquela região maldita
onde a todo barracão de seringueiro faz contraste o tosco cemitério em que
repousam as vítimas de sonhos ingênuos e de cobiças irrefreadas, Francisco
Mangabeira sucumbiu ao impaludismo que é o apanágio inevitável e o companheiro
inseparável de todos os que se arremessam para aquela terra amaldiçoada de
desolação e de morte.
Vítima desse mesmo sonho e dessa mesma moléstia implacável há quatro anos
a morte feria em plena mocidade um outro poeta de musa galharda, Frederico
Rhossard. A Francisco Mangabeira, ao Tyrtheu ([7])
da Guerra de Canudos, ao lírico suave, penetrante, sugestivo do “Hostiário” o destino reservou a mesma
sorte de outro grande poeta brasileiro. Como Gonçalves dias ao aportar à terra
saudosa e dileta, ao Maranhão glorioso que lhe dera o berço, ‒ Francisco
Mangabeira sorriu pela última vez ao céu do nosso Brasil, pela última vez
iluminou-o o raio fugitivo que Goethe agonizando invocou, em vista da pátria
doce e gentil de tantos nobres espíritos, da terra que inspirou a lírica do
autor do “I-Juca-Pirama” e cuja
história João Lisboa imorredouramente contou. Shelley e Nievo, dois grandes
poetas, morreram assim, tragicamente, em pleno mar, também!
Mangabeira morre jovem como o seu adorado Castro Alves e si o seu nome
não desperta os mesmos entusiasmos do cantor das “Espumas Flutuantes”, a morte que arrebata o autor do “Hostiário” priva o Brasil de uma
individualidade literária, de um temperamento poético cuja floração madurecida
e completa teria assegurado à sua obra uma glória nunca menor da do seu ilustre
patrício.
Era médico e logo depois de formado fora para o Amazonas exercer a sua
profissão. O governo de Manaus confiou-lhe várias missões especiais de que deu
conta brilhante e satisfatoriamente. Em dezembro de 1902, regressara à sua
Bahia, onde permanecera até março de 1903. Não tinha mais de vinte e quatro
anos e o seu inesperado e dramático desaparecimento da cena do mundo enche-nos
de profunda tristeza e de dolorosíssima estupefação. (CDM, n° 966)
O
Paiz, n° 7.071‒ Rio de Janeiro, RJ
Quarta-feira,
17.02.1904
Norte
do Brazil
[Do
Maranhão Janeiro 1904]
A
Morte de um Poeta que Deixa Nome
Faleceu a bordo do vapor do Lloyd “S.
Salvador”, ao entrar no nosso porto, vindo do Amazonas, o Dr. Francisco
Mangabeira, autor dos valiosos livros “Hostiário”
e “Tragédia Épica”.
Francisco Mangabeira veio ao Maranhão, há três anos atrás e, durante
meses, serviu como médico num dos vapores da flotilha da Companhia Maranhão,
tendo-se mudado depois para o Amazonas, onde clinicava. Atacado de forte
impaludismo dirigia-se à sua gloriosa Pátria, a Bahia, a procura de melhoras no
seio da sua estremecida família.
O Maranhão abriu sete palmos da sua terra para receber os despojos
sagrados do poeta baiano que, segundo nos informou um passageiro do mesmo
vapor, agonizou recitando versos. Ainda havia poucos meses que Mangabeira, de
volta a uma visita que fizera à sua terra querida, estivera entre nós a
expor-nos planos de suas obras futuras.
Mal ele sabia que a sua volta o Amazonas, onde se ofereceu a prestar os
seus serviços médicos às tropas mobilizadas no Acre, era o término da sua
existência! Mangabeira tinha 24 anos de idade. Morreu, como viveu, cantando
como um passarinho... Entre os médicos e literatos desta capital vai ser aberta
uma subscrição com o meritório fim de erigir-se no cemitério municipal um
mausoléu para ser recolhido os restos do infortunado poeta conterrâneo de
Castro Alves. (O Paiz, n° 7.071)
(Mangabeira, 1906)
De onde vem esta voz frenética e atroante
Que parece escapar do peito de um gigante,
E, rasgando do espaço o ilimitado véu,
Espalha-se a gritar por todo o vasto céu,
Após ter abalado a mata, a costa, a serra,
Como se acaso fosse o desabar da terra?
De onde vem ela? Agora é branda, a recordar
Um segredo de amor, nos campos, ao luar;
O gorjeio sutil de um pássaro encantado
Que, contemplando o azul, fica maravilhado,
Entreabre o bico de ouro e, quase sem querer,
Solta um canto que faz a gente estremecer.
Por acaso será de algum gênio escondido
Cujo palácio escuro, amplo e desconhecido,
Inda o não viu ninguém ‒ esta esquisita voz,
Tão rude e tão sutil, tão meiga e tão feroz?
Porque anseia, curvado e tremulo, o arvoredo,
A maneira de leões a tiritar de medo?
Assim pergunta a brisa, ouvindo com terror
Um grito que se muda em cântico de amor.
Não achando resposta o vento em ânsia estranha,
Cresce, incha, rodopia, as árvores assanha,
Ergue nuvens de pó, torna-se furacão,
E é um doido a sacudir os ferros da prisão.
O espaço é um antro azul, imenso, esplendoroso,
E por ele o tufão agita-se furioso,
Raiva, fugindo à voz que entre explosões e ais
O acompanha, e é maior, e o aterroriza mais.
É o Rio que, a rolar, canta e ruge, violento,
Respondendo talvez às perguntas do vento,
Que se amedronta, ouvindo-o.
O Rio é como um rei
Que nas árvores tem uma formosa grei
De pajens triunfais e olímpicas escravas,
A que o Sol dá broquéis ([8]), capacetes e aljavas ([9]).
Inda há pouco rolava, estourando em cachões,
Na queda... A luz do dia arrancava clarões,
Incêndios imortais, estrelas, pedrarias
Do tesouro real de suas águas frias...
A cachoeira gloriosa era o espelho do Sol,
Refletindo-se nela, às horas do arrebol.
Das águas a cair uns trêmulos salpicos
Ficam a rutilar ([10]) como adereços ricos
Nas folhas de esmeralda, apresentando assim
Pérolas e corais em cofres de cetim,
A modo de brilhante e esplendido debuxo ([11])
O mato a revestir de um espantoso luxo.
Depois ‒ era uma encosta ‒ e ele, tonto, desceu,
Desviando um filete incendiado, que deu
Um gemido tão vago, um suspiro tão doce
Que uma ave se ocultou humilhada... e calou-se.
É que o gigante, sempre indômito e revel ([12]),
Mandava um fio de água a trêmulo dossel
De flores, e ela então, louca, ficou pingando,
Como um pranto a rolar das flores soluçando... [...]
Bibliografia
CDM, n° 966. Francisco Mangabeira – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Correio da
Manhã, n° 966, 03.02.1904.
CDR, n° 64. Um Novo Poeta Baiano – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Cidade do Rio,
n° 64, 10.12.1897.
O PAIZ, n° 7.071. Norte do Brazil ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ O Paiz, n° 7.071,
17.02.1904.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com
[1] Guzla: instrumento
musical semelhante ao violão, de apenas uma corda, típico dos povos eslavos dos
Balcãs.
[2] Anacampsero: gênero
de plantas da família das portulacáceas.
[3] Alcandoras:
guindas, alças.
[4] Alcantis:
píncaros, cumes.
[5] Sabe a: tem
gosto de.
[6] Bogaris: jasmins.
[7] Tyrtheu: poeta
lírico grego do século VII a.C.. Seus cânticos de guerra, incentivavam a
coragem espartana, conduzindo-os à vitória por ocasião da Segunda Guerra
Messênia.
[8] Broquéis:
escudos redondos e pequenos.
[9] Aljavas:
estojos onde se guarda e transporta as flechas.
[10] Rutilar:
brilhar.
[11] Debuxo:
primeiros traços de uma pintura.
[12] Revel: rebelde.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
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Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
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