Quarta-feira, 1 de dezembro de 2021 - 06h02
Bagé, 01.12.2021
Ao seu tempo, quando o artista tinha olhos para ver e sentimento para
compreender o desabrochamento da alma naquele corpo de mulher, em que ainda
nascia “a flor dos seios inflamados”,
a física médica, matéria tormentosa do primeiro ano do respectivo curso,
atravessava-se na sua passagem, atrasando a marcha progressiva de sua carreira,
pois sofrendo os famosos rigores do grande professor Anselmo da Fonseca, não
tinha Francisco Mangabeira coragem para investir...
Contudo, foi além... E, quando, no decurso do ano de 1897,
os sertões do Norte baiano se assolaram com o flagelo da luta fratricida,
conhecida por “Guerra de Canudos”,
cursava o poeta o 3° ano de medicina. Assim, a 27.07.1897, partiu, com a
primeira turma de acadêmicos, que seguiram para o campo da luta ingratíssima.
Naquele incidente, que tanto se prolongou cancerosamente, porque, mercenários
da dignidade do Exército Nacional, erigiram em viveiro de enriquecimento as
trincheiras e as colunas das forças legais, os serviços gratuitos da mocidade
contaram com o apoio e a iniciativa de Francisco Mangabeira.
E lá esteve ele, onde compôs quase todo aquele grandioso poema, cujas
estrofes mais belas, pejadas sempre de bizarra originalidade, se “escrinizaram” no volume da “Tragédia Épica”, como já se adiantou,
trazida a lume em 1900.
É deveras ([1]) original o
poemeto “Os Três Oficiais”, de data
muito anterior à “Ceia dos Cardeais”,
de Júlio Dantas, onde, em colóquio, três moços, não contam os seus amores, mas
relatam os seus valores de família. Ei-lo:
(Mangabeira, 1900)
Noite... No acampamento
rumoroso
Conversam descuidados
Três moços oficiais. Um diz:
– Meu berço
É o mais maravilhoso,
Que pode haver! Nasci nos
descampados
Que a ventania agita
Em montanhas de pó no azul
disperso...
Doce terra bendita,
Coberta de planícies
assombradas,
Que são atravessadas
Pelos fortes gaúchos em
cavalos
De patas vigorosas.
Oh regiões amadas
Onde passei tranquilo e sem
abalos
A infância, que saudades
Profundas sinto agora
Dos teus pampas, teus Rios e
cidades
Onde é mais frio o vento
E as mulheres mais lindas!
Onde a aurora
No inverno limpa o céu todo
nevoento
E no verão colora
De oiro e luz o radioso
firmamento!
Contigo eu aprendi, desde
criança,
A arrostar toda a sorte de
perigo
E a enterrar uma lança
No peito do inimigo.
Salve, terra dos Pampas,
onde a vida
Corre agitada e boa,
E o gaúcho viaja
alegremente,
Sem pesares e à toa,
Num animal valente,
Com o lenço no pescoço
E um enorme chapéu de aba
caída,
Resguardando-lhe o rosto.
Passa a vida sem sobra de
desgosto:
De manhã, muito cedo,
Depois dum leve almoço
De mate ou charque, monta e
vai sem medo
Desbravando as savanas...
Descansa em casas pobres,
onde moram
Honestos lavradores
E morenas serranas
Que, sem mágoas e dores,
Vivem placidamente e nunca
choram.
Quer no inverno sem tréguas,
Quer no verão ardente,
Ele viaja assim léguas e
léguas,
Partindo duma estância
E pernoitando noutra. Seus
cuidados
Cifram-se unicamente
No cavalo fogoso que ergue
as patas,
Numa indomável ânsia,
Levando-o por planícies e
por matas
A uma grande distância...
Terra santa e querida, onde
os soldados
Passam a vida inteira
Viajando nas cidades e
povoados
Que existem na fronteira...
Minha terra natal, eu te
saúdo
Com os olhos lacrimosos
Porque em ti deixei tudo
Quanto amei nos meus dias
venturosos...
Em ti ficou aquela
Que há de ser minha, o anjo
Em cuja face bela
O firmamento abranjo...
A minha pobre noiva! tão
formosa,
Tão inocente, angélica e
morena
Que tem na face o aroma duma
rosa
E o candor duma pálida
açucena...
Tão linda que semelha
Uma linda espanhola
Em cuja boca trêmula e
vermelha
Desabrocha a corola
Do beijo... Minha noiva e
meu tesouro!
Consolar-me quem há de
Nas horas em que choro
De mágoa e de saudade
Por essa criatura a quem
adoro
Como uma divindade?
Ai! o que me alivia
É a certeza que tenho
De que ela pensa em mim
muito medrosa
Por saber que me empenho
Nas lutas sem temor como
fazia
Na fratricida guerra
Que há pouco se acabou,
manchando o solo
De minha nobre terra...
Ela receia ainda
[E é este o meu consolo]
Da intrepidez infinda
Com que às negras batalhas
me atirava,
Enfrentando o inimigo nas
guerrilhas
Ou nos grandes combates
pavorosos...
O brio que eu mostrava
Se acaso uma cidade sitiava
Ou defendia-a em ímpetos
raivosos,
Fazendo maravilhas
De bravura. Somente no
passado
É que fulge e se encerra
Meu extinto prazer que foi
gozado
Nas paragens sem fim da
minha terra.
Calou-se o oficial e olhou,
com mágoa,
O céu, talvez que vendo
novamente
O passado. E seus olhos de
repente
Ficaram rasos de água.
O companheiro diz-lhe:
– Meu amigo,
Que é isso? Está chorando?
Console-se comigo
Que também vou saudades
suportando.
Sou das bandas do Norte,
Daquelas vastas zonas
Onde pompeia ([2]) caudaloso e forte
Um Rio enorme e túrbido ([3]): O Amazonas.
Palavra! tenho inveja desse
Rio,
Despótico senhor daquela
plaga
Por onde rola rápido e
bravio
Inundando paragens
Que, impetuoso, alaga.
Nasce lá no Peru, vê
paisagens
Que parecem quimeras:
Florestas colossais onde os
fulgores
Do Sol ao chão ainda não
chegaram,
E onde vagam indômitos
selvagens,
Enraivecidas feras
E cobras multicores.
Que em suas margens,
sequiosos, param.
Nele há ilhas virentes ([4])
Todas cheias de flores
E pássaros de plumas
resplendentes...
Como não é soberba a
madrugada
Às margens desse oceano
Que os homens chamam Rio:
A passarada
Em cantos sedutores
Vai despertando; as árvores
enormes,
Douradas pelo sol, tremem e
lançam
Suas sombras informes
Nas águas que de leve se
balançam;
Caem flores e frutos
No chão; as onças erguem-se;
os macacos
Pulam entre os cipós tortos
e fracos;
Insetos zumbem; rútilas
serpentes
Deslizam, rastejando
Entre folhas; e os rudes
índios brutos.
Enfeitados de penas
reluzentes,
Quedam-se, com assombro,
contemplando
O Sol que lança um fúlgido
tesouro
Sobre a copa das árvores
acesas.
Às vezes vê-se uma serpente,
um touro,
Um animal que abandonou a
toca,
A contemplar imóvel de
surpresas
Alguma pororoca.
A pororoca assombra a todo
mundo,
Tão estranha ela é. Enorme
ruga
Surge a face das águas,
incha, aumenta,
Qual uma desmedida
tartaruga,
Que, saindo do fundo
Do Rio, à tona dele se
apresenta...
Ruge, desliza, corre, voa e
toma
Um volume espantoso; já
parece
Estranho mastodonte
Que, pouco a pouco, assoma
No Rio; desenvolve-se,
escurece
Tudo em torno, doudeja, e
qual um monte
Que rápido se racha, e
treme, e tomba,
Ela desaba num rumor de
fragoas ([5]).
Dir-se-ia que se arromba
A terra; as naus afundam-se
nas águas,
Que voltam logo à calma
acostumada.
Pois bem, nessa região
maravilhosa
E privilegiada
Nasci... Ah minha mãe! com
que amargura
Revejo a minha vida desditosa
E sinto que a ventura,
Por ser-nos boa, é falsa e
mentirosa.
Minha mãe é uma santa
De cujo olhar na doce
transparência
Radioso se levanta
Um astro que me leva
Em meio à negra e carregada
treva
Da noite da existência!
O mel de seu sorriso
Embriagou a minha
adolescência,
Que foi um paraíso
Repleto de prazeres.
É a melhor das mulheres,
Tem a alma pura como os
jasmineiros,
Que derramam no espaço
Deliciosos cheiros.
Lembra-me ainda quando, à
noite, unidos
Num apertado abraço,
Olhávamos no Rio refletidos
Os brilhos do luar que
irradiava...
A forte correnteza
Parecia que aos poucos se
abrandava
Numa ignorada e mórbida
tristeza,
Que nos arrebatava...
Como que andavam almas
De crianças, de monges e
poetas
Por sobre as águas calmas,
Onde o luar batia recordando
Um enxame de argênteas ([6]) borboletas.
Ainda eu sinto no meu rosto
o pranto
Que ela derramou, quando
A abracei entre lágrimas...
Ah! quanto
A ausência martiriza
O coração que sofre e que
precisa
Dum consolo qualquer às suas
penas...
Ontem eu tinha tudo que
queria,
Agora tenho apenas
A saudade que o peito me
crucia...
Mas... para que ressuscitar
pesares?
Sabem? Vou terminar. Nasci
no Norte
Em uma região imensa e rica
Que tem um Rio gigantesco e
forte,
Florestas seculares,
Serpentes colossais, feras
hediondas,
Lindos pássaros e índias
espantadas,
De amplas formas redondas...
Terra ardente que fica
Nas linhas do Equador
incendiadas.
Há nela seringais de onde se
tira
Toda a variedade de
borrachas.
Eu sou filho daí e é por meu
gosto
Que me acho com Vocês nesta
campanha,
Sereno e resoluto,
De espada e de bombachas.
Com o sorriso no rosto
Termina, e o seu olhar vago
acompanha
A fumaça alva e leve do
charuto.
Principia o terceiro assim:
Nascemos
Na mesma terra, amigos.
No entretanto que extremos,
Que diferença em nossos
inimigos!
O de um é o inverno frio,
O do outro é um grande Rio,
O meu é o Sol. Nasci nas
terras onde
Impera às vezes um verão que
abrasa,
Secando as águas das fontes.
A seca é um triste quadro:
Os horizontes
Muito azuis sem a flecha
duma asa;
No campo o gado como que se
esconde
Em busca de água, e,
sequioso, morre;
Nas árvores, despidas
De ramagens, a luz do sol
escorre
Como o pranto radioso dos
espaços.
Mulheres inanidas
Com os filhinhos nos braços
Atravessam a estrada enlouquecidas,
Comendo galhos secos e
raízes.
As pobres criancinhas
Já nem podem chorar, e as
infelizes
Mães para o firmamento
Erguem o olhar, exaustas e
mesquinhas.
Após tanto tormento
Morrem pelas estradas,
Numa atitude langue,
Enquanto os filhos sugam-lhe
as mirradas
Mamas que expelem sangue.
Sou filho do sertão!
Antigamente
Eu era um grande atirador. A
caça
Que eu visse estava morta,
certamente.
Ah! como tudo passa!
Adeus, noites de Lua que eu
amava,
E em que, ao som da viola e
do pandeiro,
A tabaroa ([7]) cândida dançava
No centro do terreiro.
Adeus, tiranas ao luar
saudoso,
Quando surgiam, frescos e
risonhos,
Em minha alma, num bando
vaporoso,
Como andorinhas – os
primeiros sonhos.
Adeus, oh matas virgens onde
tantas
Vezes o meu facão limpo e
afiado
Retalhou grandes cobras que,
pulando
Sobre mim num furor
desesperado,
Por fim às minhas plantas
Caíam rabeando,
Com os olhos a saltar e a
boca aberta.
Vendo-as mortas, eu logo
As arrastava pelo chão em
fogo
Até chegar à Vila erma e
deserta
Trazendo-as como louros de
vitória.
Enfeitava as paredes
Da minha casa com seus
lindos couros
Cheios de malhas recordando
redes
De seda, e contemplava
satisfeito
Esses troféus de glória,
Que me custavam tanto. Hoje
é desfeito
Todo o meu gozo... Adeus,
terra divina
Onde nasceu também a minha
filha,
Que é formosa, risonha e
pequenina
Como uma pequenina
maravilha.
Não é da terra, pois a sua
fala
Lembra uma língua angélica e
divina,
Que me extasia e embala
Entre as nuvens dum sonho
transparente.
Miragem sedutora!
Inda é tão inocente
Que nem sabe se é linda e
encantadora.
Foi de certo um presente
Que o Deus onipotente
Me deu, porque ela é minha,
Que me sinto feliz por ser
cativo.
Dessa pobre rainha,
Que, como um anjo buliçoso e
vivo,
Apareceu um dia em minha
vida
Para em céu transformá-la.
Minha filha querida
Quando anda parece-me que
voa
Pelo meio da sala,
Onde sorrindo entoa
Um alegre canção
desconhecida,
Se por acaso fala.
Ao vê-la, tenho orgulho e
tenho pena...
Porque ela é tão afável,
Carinhosa e pequena,
Que, ao contemplá-la, fico
A um tempo venturoso e
miserável.
Esse milagre imenso eu não
explico:
Sou pequeno e sou grande,
Desventurado e rico!
É que esse afeto dentro em
mim se expande
Por tal forma que eu temo
Perdê-la ou abandoná-la...
Oh Deus supremo,
Se um dia ela deixasse o lar
celeste
E eu ficasse sozinho
Ou então se eu morresse e
ela ficasse
Como uma ave sem ninho,
Quanto não sofreríamos por
este
Mundo! Basta de dor. Tenho
na face
Indícios de delírio
Porque falei naquela que é
meu gozo
E é todo o meu martírio.
Ah! enquanto saudoso
Sofro, ela ri talvez, porque
não sabe
Como é grandioso
O afeto que em mim cabe.
Que ria sempre... e esse
sorrir ditoso,
Meu Deus, nunca se acabe!
Aí parou, sentindo
Uma grande tristeza. E o que
primeiro
Falou, murmura: Um amargor
infindo
Nos lacerou o coração
inteiro
Só porque conversamos
Sobre a terra natal onde
deixamos
Os entes mais amados.
Diz o segundo: E que por
tanto o serem
Tanto nos lastimamos.
O terceiro acrescenta: No
entretanto,
Apesar de adorados
E de muito valerem
Para nós que os queremos,
Os deixamos porque,
Alvoroçados,
Gritam os três: Porque inda
é mais santo
O amor que à Pátria temos.
Nisto, um rumor metálico e
estridente
Perturba a noite quieta.
Eles erguem-se... e partem
prontamente
Ouvindo o toque seco da
corneta.
Bibliografia
DINIZ, Almachio. Francisco Mangabeira – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia da
Escola Profissional, 1929.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas,
Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da Academia
de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H