Segunda-feira, 17 de janeiro de 2022 - 13h51
Bagé, 17.01.2022
No exercício da profissão de agrimensor, munido da indispensável
provisão, me achava eu no “Território de
Colônias”, da Bolívia, em junho de 1902, demarcando o Seringal “Vitória”, de propriedade de José
Galdino. Os bolivianos, senhores da região que lhe havia sido entregue pelo
Governo Brasileiro, tinham elevado à categoria de Vila o povoado de “Xapuri”, com o nome de Antônio Antunes
de Alencar, que ali gozava de algum prestígio e que envidara esforços para
conciliar os brasileiros com os bolivianos, em parte o conseguindo, tanto que
se fez eleger intendente conjuntamente com o Dr. Magalhães.
Continuava, entretanto, o desgosto dos brasileiros, sobretudo devido aos
rumores que lá chegaram do arrendamento do Acre a uma companhia estrangeira. Em
23 de Junho chegaram-me às mãos alguns jornais que noticiavam como definitivo o
arrendamento do território acreano e estampavam o teor do contrato, então
firmado entre a Bolívia e o “Bolivian
Syndicate”. Era uma completa
espoliação feita aos acreanos. Veio-me à mente a ideia cruel de que a Pátria
brasileira se ia desmembrar; pois, a meu ver, aquilo não
era mais do que o caminho que os Estados Unidos abriam para futuros planos,
forçando-nos desde então a lhes franquear à navegação os nossos Rios, inclusive
o Acre.
Qualquer
resistência por parte do Brasil ensejaria aos poderosos Estados Unidos o emprego da força e a nossa desgraça em breve estaria consumada. Guardei,
apressado, a bússola de Casella ([2]),
de que me estava servindo, abandonei as balizas e demais utensílios e sai no
mesmo dia para a margem do Acre. Há muito, prevendo esse resultado, havia
falado a vários proprietários na possibilidade de uma resistência,
consultando-os se com eles poderia contar. O Sr. José Galdino,
incontestavelmente foi de todos quem demonstrou melhores disposições de
auxiliar-me. Com ele acordei em que a Revolução se faria: eu desceria até “Caquetá”, concitando à luta os proprietários,
devendo romper o movimento em “Bom Destino”,
Seringal de propriedade de Joaquim Victor da Silva, que era um grande
entusiasta da Revolução e a pessoa de maior prestígio no Baixo-Acre. Nessa
conformidade desci a 25 do mesmo mês em uma canoa de José Galdino, passei a 29
em “Bagaço”, e a 30 cheguei a “Bom Destino”.
Depois de entender-me com o Coronel Joaquim Victor, que foi sem dúvida o
acreano que maiores sacrifícios pecuniários fez pela Revolução, ficou acordado
descermos até “Caquetá”, onde se
achava o Diretor da Mesa de Rendas ([3])
do Estado do Amazonas, que proclamava lhe haver remetido o Governador deste
estado grande cópia de armamentos com destino à Revolução. Se não me falha a
memória, no dia 2 de julho, em “Caquetá”,
nos reunimos: eu; o Coronel Joaquim Victor da Silva, proprietário deste
Seringal e de “Bom Destino” e
ex-Vice-Governador do Acre em uma das malogradas revoluções, Domingos Leitão:
homem de prestígio, residente no Seringal “Esperança”;
Domingos Carneiro, residente em “Floresta”
e ex-Vice-Cônsul do Brasil em “Porto Acre”;
Rodrigo de Carvalho, Diretor da Mesa de Rendas do Estado do Amazonas em “Caquetá”; e o Tenente Antônio de
Carvalho.
Tratamos tão somente da Revolução e, por proposta minha, assentamos em
que se formaria uma junta revolucionaria, que se comporia dos Coronéis Joaquim
Victor da Silva, José Galdino de Assis Marinho e Rodrigo de Carvalho.
Não consegui, porém, que a Revolução rompesse, como eu desejava, no
Baixo-Acre, pelo que assentamos que o movimento romperia no “Xapuri”. Tendo ficado assentado que seria
eu o Comandante em chefe, acordou-se também que, em rompendo as hostilidades,
ficaria extinta a junta revolucionaria, para que só ficasse em ação uma única
autoridade – o Comandante-em-Chefe – a quem todos se deveriam submeter.
Voltei para “Xapuri” incerto do
êxito da Revolução, pois todos declaravam que empenhariam o melhor da vida, mas
ninguém queria ser o primeiro. A 4 de agosto era a primeira segunda-feira deste
mês e dia que os acreanos consideram aziago, como aziagos seriam para eles os
365 do ano se a fome os não ameaçasse. Um dos meus remadores, um velho ébrio,
disse-me pela manhã, no momento em que o mandei puxar a sirga:
– Patrão, eu hoje não trabalho; é a primeira
segunda-feira de agosto e pode haver algum desastre.
Não havendo meio de convencê-lo contrário por outra forma, puxei do meu
revólver e disse-lhe:
– Se trabalhares, pode ser que te aconteça algum
desastre, mas se não trabalhares é certo que morreras já.
E com um tiro indiquei-lhe o caminho a seguir com a sirga. O homem, que
parecia se achar firmemente resolvido a não andar, rompeu imediatamente em
marcha, com grande espanto meu, que ainda não conhecia bem aquele meio em que
ia agir.
Às dez horas da noite desse dia, em meio de profunda escuridão, passei
junto à povoação do “Xapuri” sem ser
percebido, pois tive o cuidado de advertir aos remadores de que não fizessem
barulho com os remos na borda da canoa. O velho ébrio ainda aí portou-se mal,
vendo-me obrigado a fazê-lo compreender que, se fossemos descobertos, ele
perderia a vida no mesmo momento. Ao passar pela povoação mandei por terra um
homem a “Vitória” comunicar ao
Coronel José Galdino que eu ia por água e que ele deveria reunir imediatamente
todo o seu pessoal, pois, conforme ficara assentado, a essa hora todo o Baixo
Acre deveria estar conflagrado.
O próprio ([4]) chegou à noite
mesmo, eu porém, só cheguei às nove horas da manhã do dia seguinte, aparentando
uma alegria, que ainda não tinha e dizendo que a Revolução quando muito duraria
vinte dias, pois o entusiasmo no Baixo Acre era indescritível [não devia falar
de outro modo]. O Coronel Galdino mandou efetivamente reunir o seu pessoal que
estava muito espalhado, conseguindo o comparecimento de 33 homens, inclusive o
seu filho Mattoso. Com estes 33 homens, ao cerrar da noite, seguimos em canoas
para “Xapuri”, onde chegamos às cinco
horas da manhã do dia seguinte.
Sem que soubéssemos, era 6 de agosto, dia de festa nacional na Bolívia;
era o dia da sua Independência, pelo que estava preparada uma grande festa.
Na véspera haviam as autoridades dormido muito tarde, depois de
abundantes libações e dos cânticos patrióticos de costume, pelo que àquela hora
da manhã dormiam ainda a sono solto. As autoridades bolivianas eram poucas e
estavam alojadas em três casas – na de Alfredo Pires, na de Augusto Nunes,
português, instrumento delas e também autoridade, e na intendência, onde
residia o próprio Intendente, D. Juan de Dias Bulientes, que não gostava de
beber...
Ao saltar em terra, dividi a pequena força em três partes, para atacar
simultaneamente as três casas, reservando para mim a do centro que era a
Intendência, a do Sr. Alfredo Pires para o Sr. José Galdino e a de Augusto
Nunes, na outra margem, para Antônio Moreira de Souza. Tudo correu como eu
havia determinado. Penetrando na Intendência, de lá retiramos umas carabinas e
dois cunhetes de balas; em seguida chamei-os em voz alta. O intendente, mal
acordado ainda, respondeu:
‒ Es temprano para la fiesta.
Ao que lhe retorqui:
‒ Não é festa, Sr. Intendente, é Revolução.
Levantaram-se então o intendente e os demais, sobressaltados. Deixei-os
sob guarda e fui à casa do Sr. Nunes, onde Moreira nada havia feito. Prendi-os
todos.
O Coronel José Galdino já vinha da casa de Alfredo Pires com muitos
presos.
Assim começou a Revolução. Neste mesmo dia continuamos
a reunir gente; os proprietários tudo prometiam, mas em verdade mostravam-se
receosos: José Galdino era quem agia com mais desassombro.
Convoquei uma reunião para as duas horas do dia seguinte, que se realizou
como eu desejava. Nela expus as razões que determinaram a Revolução, e,
aparecendo o desejado entusiasmo, falaram com brilho maior os Srs. Dr. Albino
dos Santos Pereira, Gastão de Oliveira e Manfredo Álvares Affonso. Em seguida
convidei-os a proclamarmos a Independência do Acre, com o nome de “Estado Independente do Acre”, e, no ato
de ser erguida a bandeira ao som da marcha batida, pois havia já um corneteiro
entre nós, todos se descobriram respeitosamente.
Foi lavrada uma ata, de que mandei extrair umas vinte cópias, que mandei
distribuir Rio abaixo, imediatamente, enviando uma ao Governador boliviano em
Porto Acre, afim de que [pensei eu] com esta medida, se alguém fraquejasse, não
pudesse recuar, visto se haver comprometido com a assinatura na ata.
Os prisioneiros foram expulsos do território, via Iaco, e eu desci à
frente de 64 homens, ficando o Coronel Galdino no comando da guarnição do “Xapuri” que se compunha de 150 homens,
mais ou menos, com ordem de recrutar os que pudesse.
Um Sr. Falk [judeu francês], que no povoado gozava de alguma influência,
começou a fazer reuniões ocultas com o fim de abafar a Revolução pois, não
acreditava que o movimento triunfasse. Ao embarcar com a força tive ciência
desse fato, pelo que mandei, ato contínuo, prender “esse chefe”, levando-o em minha companhia, na minha própria canoa.
Todo o pessoal era de recrutas roubados ao serviço da seringa, um só não
entendia de coisas militares, muito menos de guerra.
No terceiro dia de viagem de baixada, encontrei um próprio que me enviara
o Coronel João do Monte, comunicando-me que o Batalhão boliviano, esperado em “Capatará”, ali havia chegado com grande
efetivo. Continuei a marcha, havendo mandado um ofício ao Comandante da
guarnição do “Xapuri”,
comunicando-lhe o fato e dizendo- lhe que:
– A despeito da desproporção numérica, eu me
sentia feliz por tão cedo haver chegado a ocasião de pôr em prática o que
pregara pela palavra.
Chegado a “Itu” mandei
reconhecimentos a “Capatará”, por
água e por terra. Era falsa a notícia – ainda não se sabia nada do Batalhão
boliviano ali esperado. Isso se passava mais ou menos a 30 de agosto.
A “Capatará” chegamos pela
manhã. À nossa chegada fugiu para o mato um brasileiro de nome José Cavalcante,
que estava ao serviço dos bolivianos. Aí pousamos, continuando a viagem às dez
horas da manhã do dia seguinte, sempre Rio abaixo.
Pousamos de novo em “Benfica”,
onde soube que com a minha demora [ocasionada por moléstia grave] muitos dos
companheiros, que se achavam comprometidos, dando crédito ao boato da minha
morte, haviam desanimado e fugido para o Brasil, e outros se haviam deixado
prender em suas casas pelos bolivianos, informados da nossa situação pelo nosso
companheiro Joaquim Carneiro, que, desanimado da vitória, tudo lhes contou, o
que, como é fácil de imaginar, de grande prejuízo me foi.
Achavam-se presos os Srs. Pergentino Ferreira, proprietário de “Bagé”; Coronel Joaquim Victor da Silva,
proprietário de “Bom Destino”, e
emigrados para o Brasil os Srs. Francisco de Oliveira e Hyppólito Moreira com
os seus irmãos – todos pessoas de prestígio, e ainda muitos outros. Foi esta a
situação que encontrei no Baixo Acre e era preciso que no Alto nada se soubesse
dessas misérias. Que situação dolorosa aquela!
Os improvisados soldados começaram a se aprumar, a desobediência começou
a lavrar, de modo que a autoridade do chefe teve de ser mantida pela espada e
pelo revólver. Poucos compreenderão o quanto tem de horrível uma situação como
aquela em que me encontrei, em que cada dia que passa é um ano de existência
que se nos rouba.
A 1° de setembro acampei, à noite, no Barracão “Panorama”, de Antônio Barbosa Leite, belo coração que infelizmente
tão cedo se apagou.
Na manhã seguinte acampei em “Liberdade”,
onde me ocupei, até o dia sete do mesmo mês, em convocar os vizinhos e reunir
gente. Muitos foram agarrados, já em fuga, pelo pavor que lhes haviam causado a
prisão e a fuga dos seus chefes.
Às dez horas da noite desse dia deixei o acampamento sob o comando de um
oficial [o Ten Antônio Coelho], e desci até “Caquetá”, onde me diziam se achavam os emigrados. Parti àquela
mesma hora, em uma canoa tripulada, levando como companheiro o Sr. Augusto de
Macedo. O Governador boliviano, não tendo mais notícias da Revolução, além das
que lhe dera o nosso companheiro Joaquim Carneiro [vejam o que são os carneiros
dessa terra] soltou o Sr. Pergentino Ferreira e o Coronel Joaquim Victor da
Silva.
Andamos toda a noite e às dez horas do dia seguinte, oito, chegamos a “Bom Destino”, de onde, depois de
almoçar, segui por terra para “Caquetá”,
que alcancei no mesmo dia, á noite. Em “Caquetá”
já não encontrei os emigrados, que haviam voltado ao Acre por outro caminho.
Achava-se ali o Sr. Gentil Norberto, que havia trazido de Manaus 120
Winchesters, 100 encapados de farinha e 12 cunhetes de balas. Dizia-se
encarregado pelo Governo do Amazonas de fazer guerra no Acre.
A ignorância deste moço em assuntos de guerra era tão completa que se
presumia bem armado. Não tinha noção alguma sobre coisas militares. O Sr.
Rodrigo de Carvalho, o homem mais medroso que tenho conhecido, também ali se
achava e se dizia com a mesma incumbência do Governo do Amazonas. Passavam
ambos os dias em discussões estéreis e em troca de insultos. (CASTRO)
Bibliografia
CASTRO, Genesco de Oliveira. O Estado
Independente do Acre e J. Plácido de Castro: Excertos Históricos – Brasil – Rio
de Janeiro, RJ – Tipografia São Benedicto, 1930.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas,
Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Escritos a
pedido de Euclides da Cunha quando com ele o autor viajava, em 1906, de Manaus
para o Rio. Pretendia aquele escritor ocupar-se dos sucessos que trouxeram o
Acre para o Brasil. (CASTRO)
[2] L. Casella
& Cia.
[3] Mesas de Rendas:
criadas no período da Regência, na primeira metade do século XIX, e
destinavam-se a operar despachos aduaneiros e fiscalização em portos de escasso
movimento, cuja renda não compensasse a instalação de uma aduana completa.
[4] Próprio: mensageiro.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H