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Hiram Reis e Silva

A Terceira Margem – Parte CCCLXXXVI - Inimigos na Trincheira! – I


A Terceira Margem – Parte CCCLXXXVI - Inimigos na Trincheira! – I - Gente de Opinião

Bagé, 26.01.2022

 


Na Roça

(Alípio Bandeira [1])

 

Oh, que paz encontrei neste recanto!

Como agora os pulmões respiram bem

esta vida campestre cujo encanto

A cidade não tem! [...]

 

Depois, fechada a noite, a sericoia ([2])

Salta de vez em quando a voz loquaz,

Armo no alpendre, então, minha tipoia

Eis o silêncio e a paz.

 

Tenho em casa a borracha de água pura

Pederneira e farnel no matolão ([3])

Lá fora, a livre aragem da planura

E o cheiro do sertão

(Folha do Norte, 31.01.1915)

 

Comenta Genesco de Oliveira Castro, irmão de José Plácido de Castro:

 

A ocupação do Acre Setentrional, Pelas Forças Federais ao mando do General Antônio Olympio da Silveira, foi feita de assalto, da mesma forma que a do Acre Meridional se fez um pouco mais tarde, por iniciativa do mesmo General.

 

Os principais chefes do Exército de Ocupação, ao que parece, estavam convencidos de que o Acre era “ultraboliviano” e que o seu dever era submeter à soberania daquele país ([4]) o paisano que se arrogara ao papel de Bolívar, naquela inóspita região. (CASTRO)

 

O Governo Federal, em toda Questão Acreana, mostrou-se omisso e fraco. Ruy Barbosa cobrava, na oportunidade, uma atitude mais enérgica da sociedade frente à alienação de seus governantes:

 

[...] se este país não se estremecer, se não sentir roxas as faces, se não obrigar os seus governantes a um movimento eficaz, não é só a Constituição que é um trapo: também esta nacionalidade será um resto [...] (OLIVEIRA)

 

Ruy afirmava que nunca na História das Nações houve um caso de neutralidade governamental tão execrável frente à luta de uma de suas províncias contra a dominação estrangeira:

 

Temos ali uma Revolução de novo gênero. Até agora o nome se aplicava exclusivamente aos movimentos tumultuários e criminosos contra o Governo Nacional. Ali é a guerra organizada contra a invasão estrangeira. (OLIVEIRA)

 

Ruy, no dia 04.09.1900, sob o título “Traços Característicos”, denunciava a postura submissa assumida pelo Governo na “Questão acreana”:

 

Nossa situação diante da Bolívia: é a de vencidos confessos e resignados. (OLIVEIRA)

 

No dia 14.09.1903, Ruy chegou a afirmar, em arrebatada carta, que:

 

Se a insistência da Bolívia fosse irredutível, seria melhor abrirmos mão das negociações, deixando-a entregue à sua fraqueza contra os insurgentes do Acre, mais capazes de resolver a Questão do que o Governo brasileiro, na situação a que o condena, por um lado, a debilidade lastimável dos nossos meios de ação militar, por outro a repugnância invencível da nossa gente em ceder ao estrangeiro um palmo de terra, ainda recebendo em retorno a vastidão territorial de um novo Estado. (OLIVEIRA)

 

Ocupação do Acre pelas Forças Federais

 

Conta-nos Cláudio de Araújo Lima na sua obra “Plácido de Castro, um caudilho contra o imperialismo”:

 

A certa altura do mês de fevereiro [1903], uma carta particular, escrita de Manaus, comunica ao chefe do Governo revolucionário que o Governo Federal ordenara a ocupação do Acre, ao Norte do Paralelo 10°20’ ‒ a parte do território chamada Acre Setentrional.

 

Essa grande “Expedição ao Norte”, aguardada na capital do Amazonas aos primeiros dias de março, é constituída por uma Divisão Naval composta do couraçado “Floriano”, cruzador-torpedeiro “Tupi”, caça-torpedeiros “Gustavo Sampaio” e outros barcos de menor importância, sob o comando do Contra-Almirante Alexandrino de Alencar.

 

E uma Divisão do Exército integrada pelas forças de artilharia e de infantaria aquarteladas em Recife, Manaus e Belém.

 

O comando supremo dos 3.000 expedicionários vem confiado a um chefe militar do mais alto conceito entre as classes armadas ‒ o General de Divisão Antônio Olympio da Silveira.

 

Capitão ao terminar a guerra do Paraguai, a sua fé de ofício conta referências altamente consagradoras à sua “bravura e galhardia”, feitas pelo Duque de Caxias e o próprio Imperador D. Pedro II.

 

Para justificar, além de outros méritos, a sua escolha para a grande missão que conduz ao Acre, já a pena fulgurante de Euclides da Cunha burilara o seu perfil de “valente tranquilo” ([5]), nos entreveros mais terríveis da campanha de Canudos.

 

Plácido de Castro está combalido por uma grave recidiva ([6]) do seu impaludismo crônico. Mesmo assim, delibera medidas imediatas, consentâneas com a situação criada. Decide com rapidez sobre o que tem a fazer.

 

Manda toda a tropa revolucionária para o Alto Acre, sob o comando de um oficial de sua confiança, o Tenente-Coronel José Brandão, a bordo do transporte “Independência”, com ordem de aguardá-lo em “Xapuri”, para onde seguirá tão depressa quanto seu estado de saúde o permitir. De fato, aos primeiros dias de março, ele se junta ao grosso de suas tropas, que imagina ter de mobilizar de um momento para outro. Correm rumores de que forças bolivianas insistem em se encaminhar para o Acre, através do Tauamanu. Rumores que se acentuam dia a dia.

 

E tudo indica a probabilidade de serem verdadeiras as informações. Tanto que o caudilho já se dispunha a marchar em direção ao ponto onde, segundo notícias insistentes, estaria aquartelado o contingente boliviano, quando foi anunciada a chegada da Expedição sob o comando do General Olympio da Silveira para daí a uma semana. Plácido de Castro entrega a guarnição de “Xapuri”, e toda a tropa ali acampada, ao mesmo Coronel José Brandão. E parte apressadamente para o Baixo Acre.

 

Em “Porto Acre”, Plácido irá aguardar o Gen brasileiro. Não lhe poderá tributar as homenagens que lhe mar­caram a recepção na capital amazonense, com ruas decoradas de bandeiras, chuva de flores e de palmas sobre o cabeça da Divisão Expedicionária. Mas haverá de recebê-lo com a mais respeitosa simpatia, que jus­tificam o seu nome de militar ilustre e a honrosíssima investidura que lhe acaba de confiar o Chefe da Nação. E só não lhe prestará as honras de estilo, porque, antecipando-se na obediência ao que fora deliberado na capital do país, queria que o chefe da Expedição já encontrasse inteiramente desocupado de revolucioná­rios o chamado Acre Setentrional, cujo Governo ‒ segundo as cartas particulares recebidas pelo caudilho ‒ vinha assumir com os mais amplos poderes.

 

E Plácido não queria criar um conflito com os governantes de seu próprio país. Por isso mesmo, sua atitude no primeiro encontro com o comandante da Expedição, a 3 de abril, em “Porto Acre”, caracteriza-se pela mais rigorosa serenidade. O General mostra-se lacônico, cheio de reserva, indisfarçavelmente preocupado em demorar pouco em “Porto Acre”. Fala sempre de modo vago.

 

Não entra a fundo no assunto, como seria lógico, visto que Plácido de Castro encarnava a própria Revolução. E a Revolução era o único motivo de se encontrar por aquelas paragens, nesse momento, tão alta patente militar. Com alguns minutos de palestra, sempre acastelado na quase ostensiva discrição, o itinerante prepara-se para continuar viagem. A despedida, fiel ao propósito das frases de pura cortesia e destituídas de conteúdo explícito, limita-se a deixar nas mãos do chefe revolucionário um pacote de jornais da metrópole, como simples gesto de gentileza, que qualquer forasteiro faz a alguém que se sabe, há longo tempo, isolado dos seus semelhantes civilizados. Partindo o General, Plácido precipita-se à leitura dos jornais a ele oferecidos tão displicentemente. Neles comprova o fato de que, a despeito do silêncio guardado durante o encontro, o General Olympio da Silveira vinha, de fato, assumir a governança do Acre. Do Acre que os acreanos haviam conquistado com os mais cruciantes sacrifícios de seus legionários. Do Acre, reintegrado na Pátria, sem – ou melhor – contra o próprio Governo Federal, que o considerara em protocolo diplomático firmado cerca de dez anos antes, como “incontestavelmente boliviano”.

 

A 10 de abril, uma semana após o encontro de “Porto Acre”, chega às mãos de Plácido de Castro um ofício do General, que vinha confirmar tudo que insinuara, sem caráter oficial, em seu conhecimento:

 

Governo Militar do Território Setentrional do Acre.

 

Quartel-General, 6 de abril de 1908.

 

Sr. Cel. Dr. J. Plácido de Castro,

 

Tendo, por determinação do Governo da União, dirigido em 3 do corrente uma proclamação aos habitantes do Território Setentrional do Acre, anunciado tê-lo ocupado militarmente e assumido o seu Governo, remeto-vos, inclusa, uma cópia da referida proclamação.

 

Saúde e fraternidade, Gen Olympio da Silveira.

 

E anexa ao ofício a cópia da proclamação do chefe das forças de ocupação:

 

Governo Militar Provisório do Território Setentrional do Acre.

 

Quartel-General na Empresa, 3 de abril de 1903.

 

Proclamação.

 

Em nome do Governo dos Estados Unidos do Brasil, eu, o General Antônio Olympio da Silveira, Comandante das Forças Expedicionárias do Acre, obedecendo às ordens recebidas, Proclamo: o Território Setentrional do Acre, compreendido entre a linha geodésica que do marco do Madeira vai à suposta nascente do Rio Javari, o Paralelo de dez graus e vinte minutos e o Rio Iaco, é ocupado militarmente pela República Brasileira, até que seja resolvido o litígio sobre os limites com a Bolívia. Assumo nesta data o Governo do dito território que fica sob o regime das leis militares.

 

Antônio Olympio da Silveira.

 

Plácido contém-se. Ninguém o excede na capacidade de dominar, em certas contingências, mesmo os mais calorosos impulsos. Simula não compreender a “capitis diminutio” ([7]) que lhe resulta do gesto do General. O caudilho é reprimido para um canto por alguns instantes. E o homem de envergadura política flutua dominadoramente, permitindo-lhe agir com prudência e habilidade, a ver o que ainda pode salvar da grande Revolução libertadora. Nesse mesmo dia, baixa o:

 

DECRETO N° 7

 

O Coronel José Plácido de Castro, Governador do Estado Independente do Acre e Comandante em Chefe do Exército Acreano:

 

Considerando:

 

Que o Governo Brasileiro mandou ocupar militarmente a zona compreendida entre a linha “Cunha Gomes” e o Paralelo 10°20';

 

Considerando: que é dever de patriotismo não embaraçar as negociações do Ministério do Exterior em virtude das quais se fez a referida ocupação;

 

E tendo em vista: que para reivindicação de nossos direitos conspurcados pelo Governo Boliviano a luta tem de continuar como até aqui.

 

Decreta:

 

Art.   Fica transferida para a cidade de “Xapuri” a sede do Governo do Estado Independente do Acre.

 

Art.   Fica transferida provisoriamente a Alfândega do Estado para o lugar “Capatará”, até que seja determinado o ponto onde o Paralelo 10°20’ corta o Rio Acre.

 

Porto Acre, 10 de abril de 1903.

 

J. Plácido do Castro.

 

Transferida a sede do Governo revolucionário para “Xapuri”, com esse destino parte Plácido de Castro poucos dias depois, a fim de reassumir seu posto de Comandante e Governador do Acre Meridional, onde não deveria chegar a influência das tropas de ocupação mandadas pelo Governo da República.

 

De passagem pela “Empresa” – que se tornara a sede do Governo Militar empossado pela proclamação de 3 de abril – conferencia com o General, que lhe havia mandado pedir informações acerca dos boatos que davam como próxima a chegada de uma monumental Expedição Boliviana ao Acre. Realmente, a notificação oficial, feita do Rio de Janeiro ao General Olympio da Silveira, era segura e minuciosa.

 

Malgrado a nota diplomática do Barão do Rio Branco, datada de 27 de janeiro, o Ministro brasileiro acreditado junto ao Governo Boliviano informara à chancelaria brasileira o movimento de clamor público – quase de pronunciamento popular – a que dera lugar a notícia da capitulação de Porto Acre. Para aplacar a fúria do orgulho nacional melindrado, o Governo fora obrigado a concretizar uma Expedição Monstro, destinada a vingar a Pátria ofendida.

 

E, a 26 de janeiro, sob o delírio do mais frenético entusiasmo patriótico, milhares de homens armados partiram de La Paz, em direção ao Acre, sob o comando pessoal do próprio Presidente da República, General José Manuel Pando, e do seu Ministro da Guerra, Coronel Dr. Ismael Montes.

 

Cientificado minuciosamente pelo Gen Olympio da Silveira, Plácido pôde afirmar-lhe que, até aquele dia os seus elementos de observação mais distantemente colocados desmentiam que as forças do Gen Pando já houvessem atravessado o Rio Abunã.

 

Todavia, estava deliberado à assumir uma atitude, logo que chegasse a “Xapuri”.

 

  Estou decidido a invadir a Bolívia novamente, pelo Tauamanu, para levar ao inimigo a perturbação que ele nos traria se invadisse o Acre Meridional.

 

O General pondera ao caudilho que seria conveniente evitar qualquer gesto capaz de agravar a situação de litígio criada entre os dois países amigos:

 

  Coronel Plácido, por que, em vez disso, não espera uma solução do próprio Governo Federal?

 

A resposta de Plácido de Castro é pronta e sincera:

 

  Simplesmente, General, porque não tenho a certeza de que esta solução venha algum dia.

 

Encerra-se a conversa com essa frase. E era muito seu concluir as palestras com frases incisivas, que lhe enfeixavam todo o pensamento. Parte. Mas as reflexões que o acompanhavam, ao deixar o ambiente das Forças de Ocupação, eram amargas. Repassadas da desconfiança que certas atitudes das autoridades enviadas do Rio de Janeiro lhe inoculavam no espírito, as quais denunciavam a influência de insidiosas intrigas.

 

Impregnadas do azedume que já lhe invadira a alma, e que ele registrou nos “Apontamentos”, com a rudeza que usava pôr na exteriorização de seus pontos de vista. (LIMA)

 

Bibliografia

 

LIMA, Cláudio de Araújo. Plácido de Castro, um Caudilho Contra o Imperialismo – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Companhia Editora Nacional, 1952.

 

OLIVEIRA. Ruy Caetano Barbosa de. Obras Completas de Ruy Barbosa – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Ministério da Educação e Cultura – Fundação Casa de Ruy Barbosa, 1975.

 

Solicito Publicação

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

·      Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

·      Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

·      Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

·      Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

·      Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

·      Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

·      Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

·      Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

·      Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

·      Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

·      Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

·      Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

·      Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

E-mail: hiramrsilva@gmail.com.



[1]   Alípio nasceu em Mossoró (RN), em 1873. Estudou na Escola Militar do Ceará e, em 1913, foi promovido Capitão. Foi agrimensor e trabalhou como auxiliar do Coronel Rondon.

[2]   Sericoia: saracura (Aramides cajanea).

[3]   Malotão: malote ou trouxa grande.

[4]   País: Bolívia.

[5]   Antônio Olympio da Silveira: Comandou a 3ª Brigada de Infantaria composta pelo 12°, 31° e 33° Batalhões de Infantaria e uma Bateria de Artilharia. [...] Realmente, os sertanejos revelaram uma firmeza de tiro incomparável. As descargas, nutridas, rolantes e violentíssimas, deflagrando pelos cerros como ateadas por um rastilho único, depois de abrangerem a tropa desabrigada bateram, convergentes, sobre a artilharia. Dizimaram-na. Tombaram dezenas de soldados e a metade dos oficiais. Sobre o cerro, varrido em minutos, permaneceu, entretanto, firme, a guarnição rarefeita e no meio dela, atravessando entre as baterias impassível como se desse instrução num polígono de tiro, um velho de bravura serena e inamolgável, ‒ um “valente tranquilo”, o Coronel Olympio da Silveira. Foi a salvação. Em tal emergência o abandono dos canhões seria o desbarato. [...] Olympio da Silveira, o chefe da artilharia, com o seu fácies de estátua, ‒ face bronzeada vincada de linhas imóveis ‒ realizava a criação rara de um locador modesto, impassível diante da glória e diante do inimigo, seguindo retilineamente pela vida entre o tumulto das batalhas, como obediente a uma fatalidade incoercível. (CUNHA, 1905)

[6]   Recidiva: recaída.

[7]Capitis diminutio”: perda da autoridade.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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