Segunda-feira, 20 de setembro de 2021 - 06h00
Bagé, 20.09.2021
O
Cruzeiro, n° 03 – Rio de Janeiro, RJ
Quarta-feira, 19.01.1972
N Cinta-Larga
‒ A Pacificação Fracassada N
[Fotos
Hélio Jorge Bucker]
"Às
vezes, é mais difícil pacificar um civilizado”.
João Américo Peret, autor desta reportagem, é um sertanista tarimbado, profundo
conhecedor dos índios Cinta-Larga e das selvas,
onde trabalhou 23 anos
“O |
s índios estão atacando na estrada perto de Marco Rondon” ‒ repetia Chico
Torres, chefe dos garimpeiros no Rio Barão de Melgaço.
Ele chegara em companhia do Sargento Pinheiro, comandante da Base Aérea
de Vilhena e que um ano antes, salvara de possível extermínio os moradores da
velha estação telegráfica construída pelo Marechal Rondon, onde estávamos. O
garimpeiro, que mudou completamente de atitude depois que conseguiu apaziguar
os ânimos em Marco Rondon, falava de olhos abertos, contando estórias que mais
pareciam fruto de sua imaginação:
Os selvagens, completamente nus, estavam saqueando um caminhão enguiçado
perto da gleba Colambra, do sr. Elias Rachid; passei com meu carro a toda
velocidade e eles ainda correram atrás, tentando me alcançar. Estão indo para
Marco Rondon e a população está em pé do guerra... vai ser uma catástrofe!
Isso ocorria no dia 30 de julho de 1968, às 23 horas. Nesse dia, eu
passara separando o material destinado às duas frentes do pacificação da “Operação Cinta-Larga”, programada pela
FUNAI: uma, chefiada por mim, saindo de Vilhena [Mato Grosso] e a outra,
chefiada por Francisco Meirelles, que sairia de Pimenta Bueno, em Rondônia.
Nosso objetivo era a “Cidade de Palha”,
composta de 21 aldeias dos Cinta-Larga, a qual havíamos localizado de um avião
do Ministério do Interior, na região dos Rios Roosevelt o Capitão Cardoso. Com
a notícia trazida por Chico Torres, a empreitada ficaria mais simples para mim.
Assim pensava eu, por julgar que entraria em contato com os índios. Meu pessoal
auxiliar chegaria somente no dia imediato, mas eu havia separado algum material
destinado a brindes para os índios. Então, aceitei a carona oferecida pelo
garimpeiro e, já alta madrugada, percorremos os 130 quilômetros que nos
separava de Marco Rondon.
FRENTE A FRENTE COM OS ÍNDIOS
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dia amanhecia, quando consegui convencer os moradores de Marco Rondon de
que teria condições de resolver o problema, estabelecendo contatos amistosos
com os índios. A tarefa não foi fácil, pois estavam todos assustados e
dispostos a emboscar os Cinta-Larga. Nada conheciam de Índios e por isso
poderiam provocar sério conflito, mesmo que os índios viessem em missão de paz.
A serviço da FUNAI, a finalidade do meu trabalho era pacificar...
E como foi difícil abrandar os ânimos, daqueles “civilizados”!
Consegui uma carona num caminhão gradeado, destinado ao transporte de
gado. O chofer, apavorado com a notícia que corria sobre os Cinta-Larga, não
quis prolongar por mais tempo sua permanência ali: fechou-se na boleia o só
parou quando lhe dei o sinal. O homem baixou um pouco o vidro e perguntou:
‒ Que devo fazer? Estou
com um medo danado!
Parecia uma criança assustada. Pedi-lhe que esperasse que eu
desembarcasse a minha carga, aconselhando-o, dado o seu visível pavor, a fechar
o vidro e seguir em frente.
Foi então que ouvi um tiro de espingarda, vindo da gleba Colambra. Olhei
e vi, contrastando com o verde do descampado ao lado da estrada, um grupo do
pessoas de pele acobreada, composto de homens, mulheres, crianças e
adolescentes. Eram os altivos Cinta-Larga e não traziam armas. Corriam em curto
acelerado, tranquilos, sem muita pressa e sem medo. Passaram junto a uma cabana
e um dos guerreiros, retirando o próprio cocar, atirou-o, num largo movimento,
no interior da cabana, como brinde. O grupo não parou e pouco depois
desaparecia na selva. Tudo multo rápido, mas profundamente marcante. Essa a
minha Impressão.
Joguei no chão os instrumentos de trabalho que colocara na carroceria do
caminhão e pulei... Não queria perder aquela oportunidade. O chofer acelerou a
viatura e arrancou. Vi então um homem seminu que vinha correndo no encalço dos
índios. Estava desarmado e brandia seu chapéu de palha, tentando atrair a
atenção dos silvícolas.
Quando me viu, “Baiano” ‒ como
o chamavam na região ‒ veio ao meu encontro. Não sabia que eu era funcionário
do Governo encarregado de manter contato com aqueles índios. Propôs-me ele que
saíssemos atrás do grupo para dialogar e travar amizade. Enquanto transportávamos
o material para a sua cabana, a mesma onde o índio atirara seu cocar,
expliquei-lhe o motivo de minha presença ali. E nós dois, carregando
ferramentas e utensílios de cozinha, saímos na trilha dos Cinta-Larga.
ASTÚCIA NAS MATAS
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eguimos os vestígios bem visíveis dos índios: galhos o cipós quebrados e
papéis cortados para fazer cigarros, talvez apanhados em alguma barraca de
branco. A trilha estava fácil demais para um sertanista como eu, tarimbado, com
23 anos de trabalho nas selvas. Investiguei com mais atenção e vi que os
rastros deixados eram apenas de dois guerreiros, feitos com o propósito de
confundirmos.
Voltamos e encontramos o local exato onde começara aquela farsa. O grosso
do grupo tinha seguido em outra direção. Seguindo as pegadas, agora
verdadeiras, fomos encontrando objetos que haviam apanhado nos barracos por
onde haviam passado e que, a princípio, julgaram ser alimentos: um latão de
lubrificante, uma panela com feijão mal cozido, um pouco de café moído e um
punhado de sal.
Aquele grupo não conhecia ainda ‒ e nem aceita agora ‒ sal e feijão. Tais
iguarias não fazem parte da sua mesa.
A noite já se avizinhava, quando regressamos, sem ter logrado
encontrá-los. No barracão de onde partira o tiro, eu soube depois o que
acontecera.
Os índios haviam surgido na outra margem da estrada e, tranquilamente, se
dirigiram para lá, os moradores eram duas mulheres, um homem e um menino, que
buscaram logo refúgio seguro. Os Cinta-Larga “visitaram” a cabana e foram apanhando objetos, colocando em troca
alguns adornos. Nem flechas tinham! Na cozinha, foram provando o que lhes
parecia comida e recolhiam o que lhes agradava ao paladar. Num dado momento, um
índio tentou entrar no quarto onde estavam as mulheres e uma delas,
aterrorizada, fez um disparo de espingarda. O homem, escondido na boleia de um
velho caminhão, buzinou com insistência. O disparo e o som rouco da buzina
assustaram os índios, que saíram correndo.
Um lavrador, que estava na roça, veio correndo para tentar entrar em contato
com eles. Foi assim que perdi a grande oportunidade de travar contato com os
Cinta-Larga. Mandei uma mensagem para Marco Rondon e continuei na busca pelas
imediações. Descobri um valão e ali estavam um arco, duas flechas e uma
borduna, que recolhi para facilitar os estudos sobre esses grupos.
Quando, mais tarde, cheguei a Marco Rondon, encontrei novamente a
população alvoroçada e preparada para lutar. Um chofer que por ali passara
havia dito que os Cinta-Larga estavam atacando nas Imediações, que eu tinha
sido assassinado e que os índios, em pé de guerra, haviam queimado as cabanas.
Falavam até de um grupo de mais de 200.
Tudo fiz para aquietar os ânimos, mas nem a minha presença ali conseguiu
convencer os moradores de que nada de grave havia ocorrido. Tive que ir até
Pimenta Bueno e trazer o delegado Ladislau Nunes, que, com seu pessoal,
conseguiu desarmar homens e mulheres.
OS ÍNDIOS QUE EU VI
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s índios que eu vi eram bastante robustos: mediam aproximadamente 1,70 m
de altura, eram espadaúdos, tinham quadris estreitos devido ao uso constante
das cintas que lhes dão o nome, pernas finas e cabelos longos sobre os ombros.
Aqui cabe uma observação: tais grupos isolados sempre trazem os cabelos
compridos e só os cortam em sinal de luto. Isso é válido para homens, mulheres
e crianças, com exceção dos jovens no período da puberdade. Os homens traziam
no púbis uma proteção de palha nova de buriti, que se assemelha a um pequeno
chapéu e desce em tira encurvada. Nos grupos Parintintin tal proteção é chamada
de “caá”.
Alguns traziam cocares de penas curtas e braçadeiras
estrangulando o bíceps: outros usavam tornozeleiras que pareciam trançada com
fios de algodão. Em alguns, notei também que tanto homens como mulheres usavam
pinturas de jenipapo, de cor azulada, formando malhas. Alguns traziam colares
de sementes ou partículas de coco; outros substituíam a faixa larga da cintura
por várias voltas de um cinto de fibras de coco. Algumas mulheres carregavam os
filhos escarranchados nas ilhargas e apoiados em uma banda de trançado de fios
de algodão, como se fora uma faixa de pano. Todos eram de cor bronzeada.
Naturalmente, esse grupo estava em missão de paz. Os
índios de grupos isolados periodicamente abandonam suas aldeias e saem em busca
de aventuras que incluem caçadas, contato com brancos, enfim “turismo” à moda deles. Dessas surtidas,
a mais perigosa é a aproximação com o branco, que geralmente não compreende as
intenções dos índios. O grupo que eu vi não trazia armas e, certamente, todos
tinham fome, por se, encontrarem longe de suas aldeias e muito próximos das
estradas.
Pela quantidade de aldeamentos que sobrevoamos, pelo tamanho das choças
que comportam até 150 pessoas, os índios Cinta-Larga podem ser considerados
uma nação de grande densidade populacional, não sendo absurdo admitir que sejam
superiores a 5 mil, em toda a região onde habitam. Suas aldeias são construídas
no meio de uma grande lavoura e gostam de viver em áreas de densas florestas e
matas ciliares [vegetação marginal de rios, lagos e lagoas]. Localizam-se
principalmente no município de Aripuanã [MT], estendendo seus domínios desde a
margem esquerda do Rio Juruena, ultrapassando o Rio Aripuanã, até alcançar a
margem esquerda do Rio Roosevelt, já no Território de Rondônia.
A maior densidade do seus aldeamentos está situada entre os Rios
Roosevelt e Capitão Cardoso, que depois toma o nome de Tenente Marques, ao
Norte de Vilhena. É uma região do boa caça, terra fértil para a lavoura, rica
em madeira de lei e seringais, além de minérios, sobretudo cassiterita, ouro o
diamante. Seus vizinhos são: os índios Erigpacisá, Arara, Nhambiquara dos
vários grupos ‒ Nenê, Tauitê Anuzê, Tagnani e Mamaindê.
Constatamos que as características físicas e culturais dos índios com que
os Meirelles conseguiram fazer um contato eventual, os Suruí, são semelhantes
aos dos Nhambiquara, o que nos leva a acreditar que pertençam ao mesmo grupo
étnico, muito embora o costume do cobrir o sexo seja também encontrado entre os
Parintintin do baixo Madeira.
AGRESSIVIDADE VEM DO BRANCO
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ossivelmente devido aos grandes desgastes provocados pelos sucessivos
contatos com frentes pioneiras, os Cinta-Larga se mostram, às vezes,
agressivos.
Tem-se notícia de que esses índios tiveram seu território invadido milhares
de vezes. A ambição leva às áreas dos índios toda sorte de aventureiros:
gateiros, coletores [borracha, castanha], garimpeiros e grileiros.
As invasões mais conhecidas são as dos Rios Juína-Mirim, Camararé, lkê,
Aripuanã, este com três frentes: as do Campo 21, Serra Morena e Dardanelos,
além de Pedra Bonita, no Juruena; Roosevelt, Riozinho, Igarapé de Lourdes, os
três últimos em Rondônia. É bom relembrar que no passado mais remoto os
Cinta-Larga visitarem algumas estações telegráficas instaladas pela Comissão
Rondon. Salvo pequenos sustos, não houve atritos. Podem ser citadas as estações
de José Bonifácio, Três Buritis, Campos Novos, Barão de Melgaço, Vilhena, todas
montadas pelos idos de 1907 a 1910. Quando surgia atrito, este era sempre
provocado por pessoas irresponsáveis ou intrujões, como é o caso que
relataremos a seguir.
TRÊS BURITIS
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ormada a equipe, composta de índios Nhambiquara, saímos de Vilhena em
direção à antiga estação telegráfica de Três Buritis. Não foi preciso abrir
picadas de penetração, pois seguimos as trilhas abertas, em 1910, pela Comissão
Rondon, o que dispensou até mesmo o uso da bússola. Desde os primeiros dias da penetração,
começamos a encontrar vestígios da presença, recente, dos Cinta-Larga na
região.
Para evitar qualquer surpresa, eu viajava sempre duas horas na frente da
expedição. Nos últimos dias de viagem, já perto de Três Buritis, sentimos que
estávamos sendo seguidos.
Os índios, nunca se aproximaram, davam apenas sinais de que estavam ali
nos vigiando... Finalmente chegamos ao ponto desejado e acampamos ali, nos
escombros carbonizados da antiga estação telegráfica. Nosso companheiro
Nhambiquara Nenê conhecia tudo aquilo, pois trabalhava na estação, que foi
queimada, em 1955, pelos Cinta-Larga. Então ele contou:
Os índios costumavam visitar e estação, aonde chegavam de surpresa.
Quando chegavam, os brancos já se tinham refugiado em suas casas. Os índios brincavam,
carregavam galinhas, mas sem causar qualquer dano físico ao pessoal do Posto. Certa
vez, sua chegada foi tão rápida que não deu tempo de fecharem a estação. Os
Cinta-Larga entraram, confraternizaram com o telegrafista, visitaram as
dependências da casa e apanharam alguma ferramenta. Quando já iam embora, um
jovem índio viu um cachorro e gostou dele. O animal pertencia a um garimpeiro
que andava por aquela região. O dono maltratava o cachorro, um vira-lata manso
que já tinha o rabo e as orelhas cortados. O índio se faz amigo do cão e
resolveu leva-lo para a sua aldeia. Aí começou a tragédia: o garimpeiro de maus
bofes matou o índio com um tiro nas costas, desencadeando a guerra... Durante a
noite os índios apanhavam seus mortos e feridos e os brancos e seus auxiliares
Nhambiquaras aproveitavam para fugir. Mas três crianças não puderam escapar e
ali permaneceram escondidas. Eram meninas Nhambiquara, que viram quando os
Cinta-Larga queimaram totalmente a estação. Quando a estação não era mais que
escombros fumegantes, os índios não mais voltaram. As meninas então saíram do
seu esconderijo e, viajando sempre durante a noite, seguiram para Vilhena, onde
só chegaram duas, pois uma delas morreu de fome pelo caminho.
E aqui o nosso companheiro Nhambiquara termina seu relato.
Prosseguindo em nossa expedição, chegamos à foz do Rio Festa da Bandeira,
no Roosevelt. Ali instalamos o primeiro polo de atração. Quando saímos• depois
de ter deixado o material para os índios, ateamos fogo ao capinzal para chamar
atenção deles. Montamos um segundo polo em Três Buritis e o terceiro no Rio
Tenente Marques, usando sempre o processo da queimada para informar aos índios
de nossa retirada. Finalmente, chegamos à Vilhena, nosso Centro de Operações.
Estava assim encerrada a primeira etapa do processo do pacificação dos
Cinta-Larga. A atração ou pacificação de índios só é completa quando o
sertanista vai às suas aldeias, caso ainda não registrado com os Cinta-Larga,
até a presente publicação.
Possidônio
Morreu por Amor aos Índios
U A Selva
Ainda Guarda o Segredo do Massacre U
[Texto: Fernando Pinto /
Fotos: Eme Nascimento]
“Escreva
dizendo que é mentira morte de maridinho. Loreta”. As mãos do sertanista
Francisco Meirelles tremem, ao exibir o telegrama da mulher do repórter
Possidônio Bastos, cujo corpo foi encontrado às margens do Rio Roosevelt, num
subposto da FUNAI
“E |
screva dizendo que é mentira morte de maridinho porque agora vou partir
para junto dele. Abraços. Loreta”.
As mãos do sertanista Francisco Meirelles tremem quando ele exibe o
telegrama da mulher do repórter Possidônio Bastos, cujo corpo putrefato foi
encontrado às margens do Rio Roosevelt no dia 22 de novembro, admitindo-se que
tenha sido flechado pelos índios Cinta-Larga no dia 15 ou 16, justamente quando
o subposto de atração do Rooseevelt deixou de se comunicar pelo rádio com o “Posto 7 de Setembro”, da FUNAI, no
Parque do Aripuanã, onde vivem cerca de 5 mil índios nas proximidades da divisa
de Mato Grosso e Rondônia.
‒ Dona Loreta não quer acreditar,
mas infelizmente Possidônio morreu.
Diz Meirelles, justamente ele que amava tanto os índios. Francisco
Meirelles já deu mais da metade de sua vida aos índios. Ele tem 64 anos de
idade, 36 dos quais dedicou ao serviço público na selva. Como tão longo
sacrifício conta tempo dobrado para efeito de aposentadoria, Chico já podia
estar descansando há muito tempo com vencimentos integrais, mas ainda continua
teimosamente na ativa.
Hoje ocupa a importante função de delegado da 8ª Inspetoria Regional da
Fundação Nacional do Índio, no Território Federal de Rondônia. O velho
sertanista só não está totalmente feliz porque é obrigado a ficar a maior parte
do tempo sentado diante de uma mesa na pequena sala do velho casarão amarelo da
FUNAI, localizado numa rua central de Porto Velho.
‒ Preferia estar ao lado
de Possidônio na ocasião em que ele foi atacado. Não sei se teria evitado a sua
morte, mas eu teria feito qualquer coisa por ele, pois eu o amava tanto quanto
amo meu filho Apoema, que também era muito seu amigo.
Os olhos cansados de Chico Meirelles se enchem de lágrimas ao relembrar a
figura de Possidônio Bastos, o jovem que abandonou o jornalismo para se dedicar
aos índios.
‒ Ele
um dia veio fazer uma reportagem aqui e aí se apaixonou pela selva. Isso
aconteceu há mais ou menos um ano. Depois ele veio para nunca mais voltar ao
Sul e agora vinha também sua mulher Lorota, que mora no Rio.
POR QUE NÃO É FÁCIL SER SERTANISTA
É preciso ressalvar que há uma ordem do presidente da FUNAI proibindo
qualquer tipo de entrevista a jornalistas e o acesso de pessoas estranhas à
área dos acontecimentos que culminaram com a morte de Possidônio, além do
desaparecimento da índia Arara Maria Agamenon e do telegrafista Acrísio Camilo
Lima, que também trabalhavam no subposto de atração do Roosevelt. Francisco
Meirelles mostra o rádio de Brasília e justifica com delicadeza “por que não pode falar com repórter”.
Mas seu coração é ingênuo como o de um índio, por isso ele continua conversando
no melhor tom de entrevistado.
‒ O jovem Possidônio era
muito querido por todos, particularmente pelos índios do Parque do Aripuanã.
Seu corpo, mesmo putrefato, foi carregado com carinho nos braços dos que o
encontraram, que tiveram de caminhar pela selva durante bastante tempo até
enterrá-lo no campo de pouso do Rio Roosevelt. E não foram poucas as lágrimas
que regaram a estranha morte de meu jovem amigo Possidônio Bastos.
Enquanto não forem recolhidas todas as provas, será prematuro tentar
explicar por que, como e por quem Possidônio foi barbaramente trucidado. Sobre
a versão de que o jornalista foi morto por civilizados, também é cedo para se
fazer comentário, muito embora todos esses detalhes estejam sendo investigados
pelas autoridades da 8ª Inspetoria Regional da FUNAI, já agindo com a devida
cautela na área vizinha ao Rio Roosevelt.
Todo cuidado será pouco para evitar um possível atrito com os belicosos
Cinta-Larga, pois o lema do pessoal da FUNAI é “Morrer se preciso for, matar, nunca!”, legado por Rondon.
MASSACRE É FATO COMUM NA SELVA
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o relatório que enviou ao General Bandeira de Mello, Presidente da FUNAI,
o sertanista Francisco Meirelles presta contas das providências que estão
sendo tomadas para apurar o massacre do subposto de atração do Rio Roosevelt,
lembrando que esta não foi a primeira e não será a última demonstração da
belicosidade dos índios, que às vezes matam inocentes por causa da ganância de
seringalistas e garimpeiros, assassinos e invasores que dificultam ainda mais o
já difícil trabalho dos homens da FUNAI.
‒ Em 1941, fui chamado
para substituir o saudoso sertanista Pimenta Barbosa, trucidado juntamente com
a sua comitiva pelos então ferozes Xavantes da serra do Roncador.
Quanto aos índios Ikorem, mais conhecidos como Cinta-Larga, constituem-se
em vários grupos, num total aproximado de cinco mil silvícolas que habitam
esparsamente os 32.000 km2 do Parque Aripuanã juntamente com outros
cinco mil das tribos Suruí, Araras e Gaviões, num total aproximado de 10 mil
índios e 21 aldeamentos. Há cerca de três anos trabalhando junto a esses
grupamentos silvícolas, o pessoal da FUNAI conseguiu a façanha de trazer a
Porto Velho dois guerreiros Cinta-Larga, que mantiveram encontro oficial com o
governador do Território Federal de Rondônia. Posteriormente, foi instalado o
subposto de atração do Rio Roosevelt, para onde foi destacado o ex-jornalista
Possidônio Bastos, o telegrafista Acrísio Camilo Lima, a índia Arara Maria
Agamenon, que funcionava como cozinheira, e mais quatro trabalhadores braçais.
MORTE CONTINUA EM MISTÉRIO
Quase diariamente Possidônio Bastos se comunicava pelo rádio com seu
amigo Apoema Meirelles, filho de Francisco Meirelles, chefe do “Posto 7 de Setembro”, sede da FUNAI no
Parque do Aripuanã. Vocacionado para lidar com índios, tanto que trocou o
jornal pelo sertão, Possidônio conseguiu conquistar a simpatia de inúmeros
silvícolas do Aripuanã, inclusive dos temidos Cinta-Larga. Em setembro último,
quando viajou de férias para o Rio, recebeu a honrosa escolta de 17 guerreiros
índios, que o levaram pela selva até o campo de pouso de Roosevelt, onde hoje
está enterrado. Mesmo admitindo a hipótese de que Possidônio tenha sido morto
pelos Cinta-Larga, Francisco Meirelles diz que da última vez, em visita à área
do Aripuanã, percebeu a hostilidade de alguns grupos.
‒ Eles também têm os seus partidos subversivos,
e é possível que estes índios rebeldes tenham atacado o subposto do Rio
Roosevelt. Por enquanto, porém, tudo é mistério.
Quem deverá trazer a resposta do quebra-cabeças é o sertanista Apoema
Meirelles, que se embrenhou na mata para encontrar uma pista que explique a
morte misteriosa de seu amigo Possidônio Bastos. Uma das chaves do
quebra-cabeças se relaciona a dois fatos estranhos: os corpos da índia e do
telegrafista ainda não foram encontrados, pôr isso não podem ser dados como
mortos; e a “sorte” dos quatro
trabalhadores braçais do subposto do Roosevelt, que escaparam pela “coincidência” de dois deles terem ficado
doentes e os outros dois deixarem o Rio Roosevelt para transportar os
companheiros atacados de malária.
O sertanista Francisco Meirelles, que está com a saúde bastante abalada
com a morte de Possidônio, tem certeza de que seu filho Apoema vai trazer uma
resposta da selva.
‒ De qualquer forma, Possidónio morreu por amor
aos índios. (O CRUZEIRO, N° 03)
Bibliografia
O CRUZEIRO, N° 03. Cinta-Larga ‒ A Pacificação Fracassada ‒ Brasil ‒ Rio
de Janeiro, RJ ‒ O Cruzeiro, n° 03, 19.01.1972.
Filmete
https://www.youtube.com/watch?v=tYkH5YO38IQ&list=UU49F5L3_hKG3sQKok5SYEeA&index=40
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Galeria de Imagens
* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H