Sexta-feira, 8 de outubro de 2021 - 06h04
Bagé, 08.10.2021
Jornal do Brasil, n° 100 – Rio, RJ
Domingo e Segunda-feira, 04 e
05.08.1968
Justiça de Cuiabá Entrava Punição
à Chacina de Índios
[Sergio Galvão]
CUIABÁ E ARIPUANÃ ‒ O
assassinato há cinco anos de nove membros
da tribo Cinta-Larga, inclusive uma criança de colo e uma mulher [rasgada ao
meio até quase o pescoço] ‒ um dos mais bárbaros crimes contra os índios ‒ pode
acabar sem qualquer punição, porque a Justiça de Mato Grosso vem procurando
inocentar os culpados, por todos os meios, apesar dos protestos da população do
Estado.
No momento em que o Governo
Federal dá por encerrada a investigação da matança de índios, com a conclusão
dos inquéritos no extinto Serviço de Proteção aos Índios ‒ o Ministro do
Interior chegou a afirmar que “o
Executivo fiz tudo que lhe cabia; a Justiça comum deve agora punir os culpados”
‒ o JB levanta todo um processo em poder da 3ª Vara de Justiça de Cuiabá, para
mostrar como funciona a Justiça em um caso que envolve importantes seringalistas.
Crime
O processo na 3ª Vara de Justiça
de Cuiabá, prova que, em setembro de 1963, às margens do Rio Aripuanã, em Mato
Grosso, nove índios da tribo Cinta-Larga
foram barbaramente assassinados pelos membros de expedição organizada por
Francisco Amorim de Brito, encarregado geral da firma seringalista “Arruda & Junqueira e Cia. Ltda.”,
situada na localidade de Juína-Mirim, às margens do Rio Juruena. Ficou provado
que o chefe da expedição, depois de ter assassinado uma criança de colo com um
tiro na cabeça, arrastou a mãe para perto de uma árvore e amarrou-a fortemente
de cabeça para baixo entre duas árvores, aplicando-lhe em seguida, com um facão
de mato, violento golpe que a dividiu até o peito. Os réus confessaram o crime.
Missão Cumprida à Risca
Composta por Ataíde Pereira dos
Santos, Manuel Virgílio de Almeida, Ramiro Casta e Silvestre de tal, a
expedição foi chefiada por Francisco Luís da Costa, vulgo “Chico Luís”. Sua missão era colher poaia [ou ipeca ([1]), raiz
muito utilizada na homeopatia].
Após um dia de caminhada pelo
mato, os companheiros fizeram ver a Chico Luís que era perder tempo seguir à
frente, argumentando que o terreno era seco e, portanto, nele, não se
encontraria poaia. Chico Luís respondeu, porém, que a tarefa não era colher poaia,
e sim “caçar índios”. A informação
causou protestos dos companheiros. ‒ Quem aguentar, vai. Quem não aguentar,
passa pra lá ‒ respondeu Chico Luís, dando a entender que estava disposto a
cumprir as determinações recebidas de Francisco Amorim de Brito, mesmo que
fosse necessário usar a força.
A expedição prosseguiu,
caminhando na mata, depois de ter atravessado o Rio Juruena. Após alguns dias
de caminhada, os mantimentos acabaram. Passaram a alimentar‒se de caça e
palmitos até que encontraram um roçado pertencente aos índios, onde existia
batata, aipim e cará. Ali fizeram acampamento, armando barracas de matéria
plástica. Ao fim de sete dias, um avião reequipou a expedição de munição,
roupas, remédios e mantimentos. Lançado do avião, um bilhete assinado por
Francisco de Brito que continuassem em frente, pois adiante existia um Rio e,
provavelmente, também os índios. Após várias horas de viagem, chegaram ao Rio,
onde acamparam. No dia seguinte, reiniciaram suas atividades, quando em dado
momento avistaram fumaça. Passaram a andar com cautela, até que viram uma
maloca, perto da qual alguns índios trabalhavam na construção de mais duas.
Tomaram posição de ataque atrás das árvores. Os índios não perceberam. Muitos
tiveram tempo de fugir para o mato, sete caíram mortos. Ficou apenas uma índia,
com seu filho no colo. Ataíde propôs a Chico que levassem a mulher e a criança
para a Missão do Utiariti. Chico Luís não lhe deu ouvidos. Sacou de um revólver
calibre .45, deu um tiro na cabeça da criança e esquartejou a mãe.
Crime Descoberto
A chacina teria sido ignorada
como “segredo da selva” se dois anos
mais tarde, revoltados com os maus tratos de Chico Luís e Francisco de Brito,
Ataíde não tivesse fugido do seringal e contado a história ao Padre Edgard
Smith, que a gravou. Presos os integrantes da expedição confirmaram a história.
Nos depoimentos colhidos pelo
presidente da Comissão de Inquérito, Inspetor da PF Job Maia Salgado, muita
coisa ficou para ser apurada, inclusive as denúncias do padre Francisco
Valdemar Veber:
‒ Não é de hoje que a
firma Arruda & Junqueira vem praticando crimes contra os índios, pois já
organizou várias expedições punitivas contra os mesmos; o seringal da firma
Arruda & Junqueira é apenas um argumento que serve de trampolim para outros
empreendimentos, como sejam a exploração de minérios e aquisição de fazendas,
com o dinheiro adquirido no Banco de Crédito da Amazônia; essas expedições têm
por objetivo afastar os índios das regiões ricas em borracha, cassiterita,
ouro, diamante, breu e outros minérios.
Conclusões Finais
Muitas dificuldades encontrou a
Comissão de Inquérito. O padre Edgard Smith, autor da gravação, apesar de ter
sido insistentemente procurado em Mato Grosso, Brasília, Rio e São Paulo, não
foi encontrado. O mesmo ocorreu com o piloto Toschios Lombardi Xato, condutor e
orientador da expedição, Silvestre de tal, um dos acusados, está desaparecido
até hoje. Zuíno Boliviano, cujo depoimento seria uma peça forte no processo,
morreu afogado no Rio Juruena, “quando
pescava”. Francisco de Brito, organizador da expedição, foi assassinado
numa revolta de seringueiros. Mesmo assim, o Presidente da Comissão de
Inquérito, com os dados que colheu, concluiu seu trabalho apontando os
componentes da expedição como Incursos no Artigo 121, Parágrafo 2°, Inciso IV,
do Código Penal.
E Antônio Mascarenhas
Junqueira e Sebastião Palma Arruda ‒ proprietários da firma Arruda &
Junqueira e Cia. Ltda. ‒ como incursos nas penas do Artigo 121 e 25 do Código
Penal.
As conclusões foram encaminhadas
ao juiz da 3ª Vara da Justiça de Cuiabá, em 29 de junho de 1966.
Como Age a Justiça ([2])
Em julho de 1966, o promotor
público de Cuiabá, Sr. Luís Vidal da Fonseca, levantou o problema da
incompetência do Juízo de Cuiabá, em virtude de o crime ter ocorrido no
município de Aripuanã “que pertence à
Comarca de Diamantino [Artigo 70, do Código de Processo Penal]”.
Diante disso, o processo foi
para a Comarca de Diamantino. O juiz de Diamantino, Sr. Carlos Avalone, mandou
o processo de volta, porque Aripuanã pertence a Cuiabá. Reconhecida a
competência do Juízo de Cuiabá, o promotor Luís Vidal da Fonseca, alegando ter
sido advogado da firma Arruda & Junqueira ‒ com fundamento no Art. 214, I,
IV e 258 “in fine”, do Código de
Processo Penal ‒ deu-se por suspeito para fazer a denúncia.
O outro promotor, Sr. Benedito
Pereira do Nascimento, não aceitou a suspeição do colega. O juiz na época, Sr.
Domingos Sávio Brandão Lima, concordou com o segundo promotor, e decidiu pela
competência do Sr. Luís Vidal da Fonseca, em 24 de setembro.
O promotor reclamou à
Corregedoria de Justiça, que cassou o despacho do juiz Domingos Sávio Brandão
Lima, alegando, no dia 15 de fevereiro de 1967, que o conflito deveria ser
resolvido pelo Procurador do Estado. O procurador, Sr. Benjamim Duarte, decidiu
não haver impedimento. O Promotor não concordou e não fez a denúncia [abril de
1967].
Nesse ínterim, funcionava na
Vara Criminal o Sr. Anselmo do Amaral Falcão, que alegou não poder apresentar a
denúncia, Já que sua mulher era parente do acusado Sebastião Palma Arruda
[julho de 1967].
De Mão em Mão
O Juiz aceitou o impedimento e
manteve o processo para o Promotor substituto, Sr. Atílio Ourives, que não
aceitou, alegando que o Sr. Luís Vidal da Fonseca não estava impedido de
funcionar no processo, conforme decidira o Procurador, e pediu a remessa dos
autos ao Promotor competente. Os autos voltaram ao primeiro Promotor, que já
não estava na Comarca. O processo foi então ao Sr. Zélio Guimarães, que estava
em exercício em setembro de 1967. O Sr. Zélio Guimarães, afirmando que o
Promotor competente era o Sr. Luís Vidal da Fonseca, não ofereceu denúncia. O
Juiz substituto em setembro, Sr. José Nunes da Cunha, mandou o processo para o
Procurador-Geral decidir. O Procurador, Sr. Benjamim Duarte Monteiro, decidiu
novamente que o Promotor competente era o Sr. Luís Vidal da Fonseca, que já
voltara ao exercício. Este, em outubro mais uma vez recusou-se e fez nova
reclamação à Corregedoria.
O Corregedor, que era o juiz
autor do despacho que o corregedor anterior cassara, decidiu em novembro que o
conflito deveria ser julgado pelo Procurador, julgando-se incompetente par
ajuizar o conflito. Um outro juiz, o Sr. Milton Ferreira Mendes, mandou oficiar
ao Corregedor, pedindo providencias. O Sr. Ataide Monteiro da Silva, atual
Procurador da Justiça, decidindo o conflito, aceitou a incompetência do Sr.
Luís Vidal da Fonseca e determinou que o primeiro Promotor intentasse a ação
penal competente de acordo com suas convicções jurídicas.Revoltado com o jogo
de escusas, o Procurador lembrou em seu despacho:
Desde agosto de 1966
perambulam os autos de “ceca em meca”,
num jogo de escusas, de desculpas e impedimentos, em desprestígio da Justiça,
sem que o órgão da acusação deduza em juízo a pretensão punitiva consistente na
denúncia.
Não Terminou
Diante disso, o processo foi
para o promotor Zélio Guimarães que apresentou a denúncia contra os componentes
da expedição, mas não denunciou os Srs. Antônio Mascarenhas Junqueira e
Sebastião Palma Arruda, sob a seguinte alegação:
Deixo de denunciar
Antônio Mascarenhas Junqueira e Sebastião Palma Arruda, por não ter ficado
concretizada a anuência de matança aos índios. Já que o objetivo da expedição
era a exploração de minérios e expansão do seringal.
Feita a denúncia, imediatamente
o Juiz da 3ª Vara, Sr. Carlos Avalone, decretou a prisão preventiva dos
acusados, marcando para o dia 27 deste mês a audiência de interrogatório dos
réus. O processo deverá correr à revelia, sendo muito pouco provável que os
acusados compareçam. Apesar da boa vontade do Juiz Carlos Avalone, o
prosseguimento ao processo será muito difícil, Já que mais de mil processos
estão em andamento naquela Vara Criminal.
Além disso, não há como prender
os acusados, que estão bem acobertados e desaparecidos na selva amazônica, numa
região em que só eles conhecem os caminhos e os meios de sobrevivência. Mesmo
que o processo prossiga, resta a possibilidade de um hábil advogado alegar
falta de prova de corpo de delito, já que não houve reconstituição do crime, a
Polícia nunca chegou ao local e, mesmo que chegasse, nada encontraria, pois os
corpos dos índios teriam sido jogados no Rio.
Como o caso é notório e revoltou
a população cuiabana, a esperança é que o corpo de jurados chegue a uma
conclusão, sem necessidade de recorrer ao Supremo Tribunal Federal.
Justiça Fora da Lei
A Justiça de Cuiabá encontra
dificuldade em tudo, começando pelo tamanho da Comarca, que vai até as divisas
com o Pará e o Amazonas, numa distância de mais de mil quilômetros. A Polícia é
muito pouca e mal paga. Quando é necessário ouvir uma testemunha é preciso ir
ao local. Na maioria dos casos, o local só pode ser alcançado por avião. Por
exemplo: como mandar um oficial de justiça intimar uma testemunha em Aripuanã
se a sede do município fica a 900 quilômetros em linha reta de Cuiabá e o único
meio de transporte é o avião? Não existe dinheiro para isso. Por sua vez, não
se pode exigir que uma testemunha que está em Aripuanã venha depor em Cuiabá.
De um modo geral, um oficial de justiça nunca sai de Cuiabá. A Comarca está
dividida em três varas ‒ duas cíveis e uma criminal. Para a Vara Criminal
existe apenas um Juiz, que é o Sr. Carlos Avalone. Esta Vara acumula ainda as
execuções criminais e o Juizado de Menores. Além disso, existem ainda os crimes
cometidos nas fronteiras que vão para as mãos do Juiz da capital do Estado
[Artigo 88, do Código de Processo Penal].
Atualmente, existem mala de mil processos na Vara
Criminal. Como se não bastasse, os juízes da capital são sempre chamados para
substituir os Desembargadores durante seus Impedimentos, como férias e
licenças. A cadeia de Cuiabá é o que se poderia julgar de pior. Não existe uma
sala para a prisão de menores e muito menos uma sala para a prisão de mulheres.
Isto obriga os juízes a agirem fora da lei, mantendo menores com adultos e
mulheres com homens.
O Fórum funciona em uma residência alugada, por sinal
adquirida há cinco meses, pois antes as três Varas e mais um Cartório [6°
Ofício] funcionavam no porão da Assembleia Legislativa. Aliás, a Assembleia
Legislativa não tem prédio próprio, pois o edifício que ocupa pertence ao
Fórum, que foi alijado para dar lugar aos parlamentares. As melhores
dependências disse prédio estão com a Assembleia. O que sobrou está sendo
ocupado pelo Tribunal de Justiça do Estado.
Mais Dificuldades
Nas épocas de júri, os juízes ficam desesperados por
não terem onde realizar as sessões. A média de mil processos tende a aumentar.
E, assim mesmo, só estão consignados os mais graves. Cuiabá só tem um médico
legisla. Quando entra de licença ou de férias, não se pode fazer exame médico-legal.
O Promotor Público acaba de abrir um processo contra um médico psiquiatra
particular ‒ existem dois na cidade ‒ porque se negou a continuar fazendo
exames de sanidade mental de graça. Só faz exames quando o réu pode pagar. Na
semana passada, o Juiz Criminal julgou em um só dia 23 processos prescritos. A
prescrição, por sinal, tem sido a tônica dos processos instaurados.
Segundo alguns advogados, a
situação resulta do desinteresse dos políticos, que, por conveniência, preferem
manter a Justiça como está, no interesse de figurões apaniguados ou afilhados
políticos que estão com seus processos em vias de prescrever. O Tribunal de
Justiça do Estado vem reagindo como pode a essa situação e tem recebido apoio
do Governador Pedro Pedrossian. Quando se pede à Assembleia a criação de mais
uma Comarca, os políticos logo pensam na criação de novos cartórios.
De um modo geral, os deputados
só dão alguma coisa à Justiça, se os Juízes cederem às suas propostas. Como os
juízes não têm cedido, as dificuldades aumentam a cada dia. (JB, N° 100)
Bibliografia
JB, N° 100. Justiça de Cuiabá Entrava Punição à Chacina de Índios - [Sergio Galvão]
‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Jornal do Brasil, n° 100, 04 e 05.08.1968.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Ipeca (Psychotria ipecacuanha): arbusto de apenas 30 cm de
altura, usado como planta medicinal. Conhecida também como Ipecacuanha,
ipeca-verdadeira, poaia e poia cinzenta.
[2] Outros tempos, velhos e seculares vícios de um sistema político
falido onde a justiça faz de tudo para privilegiar os poderosos.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
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Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
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Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
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