Quarta-feira, 10 de novembro de 2021 - 13h56
Bagé, 10.11.2021
[...] A pequena altura
relativa da mata, onde se destacam de momento em momento, à feição de grandes
calotas esféricas, as frondes dominantes das samaumeiras, reflete bem a
exuberância do solo que favorecendo a multiplicidade das espécies prejudica o
desenvolvimento próprio de cada uma delas. Além disto, as condições naturais do
meio de algum modo se contrapõem à grande altura dos tipos vegetais. Realmente,
estes dispondo, graças à umidade excessiva, de todos os elementos de vida, não
precisam procurá-los nas camadas mais profundas do subsolo.
Assim as árvores, de um modo
geral, não têm o eixo descendente. As suas raízes irradiam diferenciadas em
radículas fasciculadas, quase à flor da terra inconsciente e úmida que ao mesmo
passo lhes favorece o crescimento e se opõe a uma exagerada altura capaz de
torná-las instáveis. De fato, as que se destacam desta grandeza uniforme a qual
desdobra num plano quase de nível as frondes das matas amazônicas criam
dispositivos que lhes explicam o porte excepcional.
Consistem na formação tão
característica das sapopembas, mercê das quais se alteiam as copas alterosas da
samaúma e do caucho. Apesar disto, às menores rajadas de uma tormenta é
vulgaríssimo o fato da queda de numerosas árvores, desabando largos lances de
floresta. (CUNHA)
Quando
comandei a 1ª Companhia de Engenharia de Construção, do 6° Batalhão de
Engenharia de Construção, sediada no Abonari, Norte do Amazonas, ao Sul da
Terra Indígena Uaimiri-Atroari, nos idos de 1982 a 1983, um curioso fenômeno
despertou-me a atenção – o lúgubre estrondo produzido
pela queda das grandes árvores.
Funesto Crepitar
Atendendo
à uma salutar dinâmica natural, as árvores mais altas e mais antigas, assoladas
constantemente pelas amazônicas intempéries e por elementos da própria biota,
que refugiam-se sob suas frondosas copas, acabam por tombar levando consigo a
vegetação que lhe circunda. O intrincado cipoal que a cinge e a irmana à mata
que a cerca metamorfoseia-se mostrando repentinamente as cruéis garras de um
pacto mortal. O gigante arbóreo, como Menés, o unificador do Alto e Baixo Egito
de outrora, arrasta consigo para o eterno descanso a mata que a rodeia em
submissa veneração. A queda do gigante arbóreo, o esmagar furioso de troncos e
galhos, a tensão produzida pelo cipoal arrastando frágeis arbustos do entorno
produzem um estrépito, similar a um crepitar soturno de gigantesca fogueira.
O Grito da Copaibeira
[...]
o estouro do tronco velho de um sassafrás ou capivi [copaibeira] oco, que o
acúmulo de bálsamo repentinamente fez rachar. (SPRUCE)
As
qualidades cicatrizantes do óleo da copaíba (Copaifera sp) foram enaltecidas
pelo Padre José de Anchieta, em Carta de Maio de 1560, enviada aos seus
superiores:
Das árvores uma parece digna de notícia, da qual, ainda que outras haja
que destilam um líquido semelhante à resina, útil para remédio, escorre um suco
suavíssimo, que pretendem seja o bálsamo, que a princípio corre como óleo por
pequenos furos feitos pelo caruncho ou também por talhos de foices ou de
machados, coalha depois e parece converter-se em uma espécie de bálsamo; exala
um cheiro muito forte, porém suavíssimo e é ótimo para curar feridas, de tal
maneira que em pouco tempo, como dizem ter-se por experiência provado, nem
mesmo sinal fica das cicatrizes. (ANCHIETA)
Segundo
Spruce, o velho, fragilizado e carcomido tronco de uma copaibeira pode
armazenar seiva em tal quantidade que o faz rachar, de repente, provocando um
característico estrondo. Consegui confirmar a afirmativa de Spruce com apenas
uma fonte na minhas amazônicas jornadas.
O Lamúrio da Palmeira
No
dia 22 (01.1853), às 16h00, quando preparávamos o jantar, fomos surpreendidos
pelo som do disparo de fuzil, vindo da floresta existente na margem oposta do
Rio, que teria quando muito 73 m de largura. (SPRUCE)
Um
ruído em especial, análogo a um tiro de fuzil, surpreende e chama a atenção
daqueles que arrostam a Hileia pela primeira vez. Os nativos atribuem tal ruído
a Yamadu, Curupira e a tantas outras entidades que segundo sua crença
perambulam pela floresta caçando ou mesmo caçoando dos humanos que a invadem
contrariando suas leis naturais.Mas reperc utamos mais alguns parágrafos de
Richard Spruce à respeito do curioso som:
Fiquei intrigado ao escutar tal ruído naquela desolada e inóspita floresta,
na qual dificilmente um ser humano se atreveria a penetrar, especialmente
usando arma de fogo. [...]
Havia muitos anos que ninguém residia à beirado Lago Vasiva, e naquela
época não se tinha notícia da presença de mercadores ou viajantes no Cassiquiare,
além de nós, evidentemente. Tendo em vista tudo isso, era natural que eu
estivesse perplexo. Na realidade o barulho que tínhamos escutado não era
exatamente igual ao disparo de um fuzil ou rifle, mas tampouco era um dos
costumeiros ruídos que de tempos em tempos quebram o silêncio daquelas vastas
solidões, e com os quais eu estava perfeitamente familiarizado. [...]
Entrementes, meus índios, tão assustados quanto eu, logo tentaram
encontrar uma explicação para a origem daquele inusitado estrondo. Ora
disseram, aquilo só podia ser coisa de “Yamadu”,
que por ali deveria estar “in própria
persona” caçando por aquelas paragens e ele, com certeza, iria mandar-nos
um terrível pé-d’água, ou outra calamidade qualquer, para espantar-nos de seu
território. [...]
Durante muitos anos depois, aqueles estampidos isolados, que escutei
vindos da floresta sombria do Lago Vasiva, costumavam frequentar minha
lembrança e meus sonhos. [...]
E assim foi que, em abril de 1857, enquanto subia o Rio Pastasa, no sopé
Oriental dos Andes, escutei de novo aquele som que lembrava o disparo de uma
arma de fogo, e bem perto de onde estávamos. Os índios Jivaros, que habitavam
aquela área, não usava, arma de fogo, e o ruído que eu acabara de escutar era
idêntico ao que tinha ouvido no Lago Vasiva. Intrigado, perguntei ao piloto:
– Que
barulho foi esse?
Ao que ele respondeu:
– Quer
ir ver o que foi?
Aceitei a oferta e entrei no mato atrás dele. Três minutos depois
chegamos a um monte de escombros que lembravam o aspecto de um montão de feno –
eram os restos do tronco de uma palmeira cuja queda fora a razão do estampido.
Era uma palmeira grossa e alta, que quando ereta, deveria ter uns 24 a 30 m de
altura. Quando a vitalidade de uma dessas palmeiras se exaure, a copa frondosa
primeiro murcha e cai; depois o cerne tenro gradualmente apodrece e é carcomido
internamente pelos cupins, até que nada mais resta dele senão uma delgada
casca, e quando essa casca não consegue mais suportar seu próprio peso, ela
racha e desaba de uma hora para a outra, com um estrondo que lembra o disparo
de um fuzil. (SPRUCE)
Dinâmica Florestal
As
mais velhas árvores ao sucumbir atendem a um chamado natural primevo onde a lei
da natureza impera e onde a harmonia quebrada por instantes será dentro de
poucos decênios devidamente restaurada. Ao presenciar tais fenômenos ficamos
estarrecidos, confusos mesmo, pois olvidamos, por vezes, que a selva é um
organismo vivo e astuto. Alguns estudos avaliam que a idade média das árvores
de 100 cm de diâmetro da Bacia Amazônica é de 500 anos embora, não raras vezes,
encontremos troncos de mais de 200 cm que ultrapassam um milênio de idade. Quando
esses monumentos arbóreos tombam arrastam consigo outras árvores menores
abrindo clareiras proporcionais a seu porte.
A
clareira aberta permite que os raios solares penetrem, favorecendo o
crescimento de novas árvores que ocuparão paulatinamente o lugar das que
feneceram. Logicamente as clareiras abertas vão tornar as árvores situadas nas
suas bordas muito mais vulneráveis à ação dos ventos além de provocar
localmente uma sensível redução da umidade e elevação da temperatura. Essas
mudanças vão provocar, inicialmente, uma mudança radical no tipo de vegetação,
a clareira será invadida por plantas oportunistas como cipós, trepadeiras,
árvores de tronco oco e de crescimento muito rápido como a embaúba, mas após
duas ou três décadas estas abruptas transformações terão sido neutralizadas
progressivamente pela dinâmica natural da floreta que recuperará sua antiga
fisionomia.
Acampados
nas proximidades da Cachoeira Carapanã testemunhamos, mais uma vez, esta
magnífica, extraordinária mesmo, e nada sutil dinâmica do Reino Vegetal.
Aqueles que desconhecem os mistérios e segredos da nossa Hileia assustam-se,
impressionam-se com os ruídos oriundos dos ermos dos sem fim que as trevas
solidárias fazem questão de ocultar. É a sobrevivência em jogo, os monumentos
centenários abrindo espaço e trazendo a luz benevolente do Astro Rei aos mais
jovens. Ao adentrarmos neste Paraíso Perdido devemos manter a mente e os
sentidos alertas e racionalmente interpretar as mensagens que os seres da
floresta nos enviam.
Bibliografia
ANCHIETA, José de. Cartas, informações, Fragmentos Históricos
e Sermões do Padre Joseph de Anchieta – Brasil – Rio de Janeiro – Officina
Industrial Graphica, 1933.
CUNHA, Euclides da. Apresentação do Diário Realizado por
Membros da Expedição, “Desde a Partida de Manaus até às Cabeceiras do Purús”
– Brasil – Rio de Janeiro, DF – Arquivo histórico do Itamarati, 1906.
SPRUCE, Richard. Notas de um Botânico na Amazônia ‒
Brasil ‒ Minas Gerais ‒ Editora Itatiaia, 2006.FREGAPANI, Gélio Augusto
Barbosa. Orgulho e Vergonha ‒ Brasil
‒ Porto Alegre, RS ‒ Defesa Net, 09.03.2014.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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