Quarta-feira, 13 de outubro de 2021 - 10h43
Bagé, 13.10.2021
O
professor, arquivista, compositor, libretista, publicista, tradutor, escritor e
membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Luís Gastão d'Escragnolle
Dória (¶ 31.01.1869
/ U
14.01.1948) escreveu um artigo, em 1918, homenageando o Tenente Marques na
Revista Trimestral do Instituto do Ceará, que reproduzimos a seguir.
Revista
Trimestral do Instituto do Ceará
Ceará, Fortaleza, 1918
O
Tenente Marques de Souza
A tradição sertanista é velha no Brasil. Tem raízes na história e na dor.
Desde o século XVI o sonho dos seus heróis é morrer por descobrir, a senha ([1]) deles,
descobrir para morrer. Aos nomes inscritos no seu martirológico acaba de
ajuntar-se o do 2° Tenente do Exército Francisco Marques de Souza Filho. Tal
nome e tal memória se incorporam à epopeia sertanista brasileira, pelo direito
do sangue vertido, pelo sacrifício de uma vida em flor cujos bons frutos se
pressagiavam. O Coronel Rondon, apenas Coronel num tempo de tantos Generais,
reviveu a grande e vetusta tradição sertanista.
Tornou-a escopo de sua existência, instalando linhas telegráficas pelo
interior, traçando linhas de civilização por terras ínvias. Procurou escravizar
o indígena pela brandura, por ela libertá-lo do estado selvático. Condoeu-se
dos nômades boscarejos ([2]), dos
exilados de arco e flecha, no grêmio da sociedade no Brasil. Ali os encontraram
os descobridores do século XVI, deputados de Portugal no congresso de
navegantes do Caminho das Índias. Cercou-se o Coronel Rondon de auxiliares
prestimosos, de oficiais cujo ideal fosse tão rútilo ([3]) quanto
suas espadas. Encontrou um desses auxiliares na pessoa de Francisco Marques de
Souza Filho.
Nasceu no Ceara, do consórcio do Engenheiro civil Dr. Francisco Marques
de Souza e D. Anna Petronilla Menescal, aos 9 de abril de 1884, na cidade de Camocim,
o melhor ancoradouro do Estado, no amplexo do oceano e do rio Camocim. Em
frente da cidade, o mar, o grande mar, o belo mar, o sinistro mar. À esquerda,
uma espécie de Saara, com escassíssimas árvores verde-negras; à direita, ilhas
de formosa vegetação no sono marulhoso do rio.
Iniciou estudos na Fortaleza, cursando o Colégio de Humanidades, dirigido
por Antero Barbosa. Aos quinze anos, em fevereiro de 1899, perdia o pai. Ninguém
ignora, ou peca por não avaliar, a falta do bom progenitor, quando há filhos
pequenos ou adolescentes. O lar trabalhará tristemente a meia força. Marques
de Souza seguiu para o Rio de Janeiro, a capital importadora de tanta gente dos
Estados. Vinha lutar pela vida, tendo sede do pão ganho por estorvo próprio. Só
queria pesar no coração dos seus. Completou estudos para se alistar no Exército,
assentando praça na Escola Tática do Realengo em 1901.
Dela se transferiu para a Escola de Guerra no Rio Grande do Sul.
Demorou-se em Porto Alegre, cursando a Escola, numa “república” de
alunos chamada “Petrópolis”. Regressou ao Rio de Janeiro, em 1908, Aspirante
a Oficial. Até aí fez o que muitos fazem. Daí por diante entrou a ser o que
poucos são, bandeirante de espada à cinta e de coração à larga.
Em julho de 1909 ei-lo nas Linhas Telegráficas e Estratégicas de Mato
Grosso ao Amazonas. Dirigiu-se a Mato Grosso. Embrenhou-se pelo sertão calçado
e arborizado de modo diverso da Avenida Central. Em serviço recebeu o galão de
2° Tenente de Infantaria. Em serviço, por duas vezes, contraiu infecções
palustres. A última tão gravemente o atingiu que foi mister viajar para o Rio
de Janeiro antes de ter imanto em Mato Grosso.
Era em fins de 1913. O primeiro semestre do ano seguinte passou-o no Rio,
muito doente, aos cuidados do Dr. Gaspar Vianna, jovem sábio, cuja juventude e
cujo saber o cemitério já recolheu. Enfermo, trabalhado pelo impaludismo
adquirido em afã público para dano particular, o Tenente Marques de Souza
prosseguiu nos trabalhos, no escritório central da Comissão Rondon. Executou os
seguintes: cópia da Carta da Corrente do Guaporé e Mamoré, de Vila Bela a Mato
Grosso, conforme Pereira e Cáceres, em 1774/1775; cópia das Cadernetas
Demarcatórias de Ipegue e Cachoeirinha, da Caderneta Demarcatória de Rocio de
Miranda; Tabela das distâncias feitas a curvímetro sobre o levantamento do rio
Jaci Paraná, compensação gráfica destas e organização de nova Tabela; trabalhos
sobre o rio Roosevelt, devidos ao Tenente Lyra, redação de mapas; anotação de
varadouros e passagens no esboço de conjunto das explorações de 1910, e desenho
de um esquema do mapa do Brasil, mostrando os itinerários das três turmas, nas
quais se dividiu a expedição Rondon.
Findos esses labores e com eles o seu tratamento, o Tenente Marques de
Souza, malgrado todas as súplicas do lar, se apresentou pronto para novos
serviços. Deram-lhe nova comissão no Amazonas. Despediu-se da família, da
extremosa mãe, criadora de sua alma, da noiva, criatura de sua alma. Deixou as águas
da Bahia, perdendo de vista a nossa cidade, num dos topos da qual se avista o
mosteiro de São Bento, onde é professor um dos irmãos do Tenente Marques de
Souza. À meia hora depois do meio-dia o “Pará” transpunha a barra e o
levava para sempre, a 16 de julho de 1914. Chegou a Manaus nos primeiros dias
de agosto. Cometeram-lhe útil e difícil missão.
Incumbiram-no de assinalar o curso do rio Ananás. A exploração
preencheria grande lacuna das Cartas Geográficas do Brasil, por inteiramente
desconhecido o curso daquele rio, do qual a Comissão Rondon marcara apenas as
cabeceiras. O Tenente Marques de Souza deu princípio ao que ia ser o seu fim. Comprara
um caderninho de papel quadriculado de azul e de capa preta. Nele diariamente
foi assentando as peripécias da viagem, notas a lápis, caligrafia nítida e
certa de geômetra. Aquele caderninho pertence hoje à sua família. De ementário
a relíquia. A saudade engrandece o que a morte apouca. Começou a odisseia
amazônica do Tenente Marques de Souza e de outros companheiros, saídos de Manaus
no gaiola “Madeira-Mamoré”. Nessa embarcação fluvial o passadio ([4]) foi
péssimo. Em setembro de 1914, Marques de Souza dirigia-se para o rio Jaci
Paraná, ao encontro do Coronel Rondon, aos balanços da igarité ([5]), cuja
tripulação de nove homens a impelia por lugares assombrosamente piscosos. Eis
uma nota do caderninho do Tenente Marques de Souza:
Apesar de haver sempre muita
abundancia de peixe, nunca vi tanta fartura como no “poço” debaixo da
cachoeira de Monte Cristo, onde o Arsênio, em quarenta minutos, trouxe quinze
pescadas, de dois a três palmos de comprimento!
Mais adiante outra nota. Já se não trata do ferver de peixe no fogo do
sol. A expedição está na ilha da Cachoeira.
Que belos e saudosos dias,
esses dessa viagem. De vez em quando, devido ao rio estar seco, fomos obrigados
a saltar e meter-nos na água ou fazer percursos por cima das pedras, aos pulos.
Que bons banhos! Passamos sempre o dia lendo e jogando o dominó. Lemos o “Monge
de Cister” ([6]).
Cada um de nós lia um capítulo ou mais para os outros ouvirem.
Cena singular e imprevista, quadro único e original: a tripulação a remar,
quebrando a pá o silêncio das águas, e um grupo de moços a ler, alto, no só ([7]) de um
rio amazônico, a prosa de Alexandre Herculano, em gabinete de leitura
flutuante. No Urupá, Marques de Souza encontrou o Coronel Rondon. Exclama o
Tenente no seu Diário e acrescenta:
Que dia alegre! Com que
satisfação abracei o meu chefe!
Converso com o Coronel até
tarde da noite.
Daí por diante a viagem prosseguiu, cada vez mais abrolhada ([8]) de tropeços.
As febres começavam a aparecer, tornando cadavéricas as suas vítimas. Já não
havia ensejo para ler Alexandre Herculano.
Busca-se Tabajara. Marques de Souza anota:
Chegaremos a Tabajara? Todos
os doentes remam e eu grito, ameaço, fazendo a última tentativa afim de
passarmos com dia a cachoeira de Croatá. E o Sol vai baixando e o poveiro nos
diz que é problemática a nossa chegada a Tabajara, porque ele não passa a cachoeira
com o escuro. O Bernardo então tornou o remo de um dos doentes e eu entusiasmo
o pessoal já exausto, e a igarité desce o rio Ji-Paraná com rapidez. Com o
crepúsculo descíamos no meio de uma infernal gritaria a cachoeira. No pior
trecho molhamo-nos um pouco e a igarité fez um pouco de água. Mas não acabou a
dificuldade da travessia, pois tínhamos um trecho enorme de pedras esparsas.
Por três vezes fomos de encontro a pedras e encalhamos. O pessoal caía n’água e
com esforço conseguia safar a igarité. Finalmente às 7½ chegamos a Tabajara,
com uma noite muito escura. Momentos depois desabou uma forte carga d’água, da
qual também fugimos aterrorizados. Que noite escura e lúgubre!
Marques de Souza ainda não se achava completamente restabelecido do
impaludismo. De certo seria preferível passear na Avenida ou nos “boulevards”
parisienses. Saíra do Rio de Janeiro a despeito dos rogos da família, da mãe,
dos sete irmãos, dos quais muitos menores e seguira Brasil acima, no cumprimento
do dever. Depois de mil dificuldades o Tenente Marques de Souza pode respirar
um pouco. Dos fundões fluviais, a serviço, teve ordem de regressar a Manaus. Consigna
o fato no seu Diário com extraordinária alegria e nele registra o tempo feliz
passado na capital amazônica. Os bons dias são sempre breves. A felicidade
raramente emprega doses grandes de prazer. Quando as emprega, são tóxicas em
alto grau. Fulminam, por exemplo, o pobretão tornado milionário por um bilhete
de sorte grande. Tem um segundo de ventura, vê-se rico, poderoso, adulado; põe
as mãos sobre o coração e cai. A dose era demasiada.
A do Tenente Marques de Souza, ao despedir-se de Manaus, foi moderada.
Consigna no Diário, 30 de outubro de 1904:
Infelizmente parto... e
deixo nestas duas palavras toda a saudade que de mim se apodera. Como parto
triste...
E a 31 de Outubro escreve apenas, nota única do dia:
Que saudades...
O mês de novembro escoou-se em trabalhos penosos, desses que não curtem
só a pele, mas também o ânimo. Dezembro passou-se a explorar e a ver partir
companheiros, doentes, tão doentes. Ainda era consolo ficar, para ter certeza
de estar resistindo às lentas e invisíveis agressões do clima assassino. A 1°
de janeiro de 1915, o Tenente Marques de Souza pergunta no Diário:
Novo ano. Que estará
reservado para mim?
A resposta... Mas não antecipemos.
A 3 de janeiro de 1915 inicia a viagem para a exploração do rio Ananás,
recebendo a 6, no Paraná dos Cachorros, a nova da morte de um dos mais
dedicados companheiros, o Tenente Carneiro, no Madeira, a bordo do Rio Curuçá,
próximo de Manaus. Apesarado ([9]), seguiu.
A viagem foi prosseguindo, minuciosamente registrada pelo Tenente Marques de
Souza. A 31 de janeiro de 1915, passou, com a expedição às suas ordens, por uma
cabeceira chamada Dr. Steaghmeyer, onde se acha sepultado o sábio naturalista,
aí falecido em fevereiro de 1913.
Era um velhinho que se
assemelhava a D. Pedro II, muito bom. Vinha já há algum tempo acompanhando a
comissão à cata de borboletas e outros bichinhos.
Espécie de Guilherme Tembel Meyer de “Inocência” ([10]), um
desses adoráveis e originalíssimos tipos de naturalistas bem conhecidos nos
sertões, o Dr. Steaghmeyer andava à caça de insetos, criança grande, parecida
com D. Pedro II, animada pela curiosidade da ciência. Que as borboletas sejam
leves sobre a sua cova. A 3 de fevereiro de 1915, o impaludismo se manifestou
veemente em Marques de Souza. Diz a nota do caderninho:
Passei o dia inteiro com
febre e dizem que delirei, mas felizmente, agora, à noite, me acho melhor.
Escreve a 12:
Às 5 e 10 sigo e acampo no córrego
do Borá. Estou ansioso por chegar ao Ananás. Já fiz um percurso de vinte e duas
léguas.
No dia seguinte o Diário recolhe a nota seguinte:
Hoje é sábado e sábado de
Carnaval. Ah! quantas saudades sinto do Rio e especialmente dos meus! As meninas
divertir-se-ão? Metido no meu toldo, com feridas, quase sem poder me sentar e
ameaçado de um temporal grande, pois venta muito. Que tarde triste a de hoje!
Sombria, nublada, triste... Após a chuva, o pessoal regressou do serviço e todo
ele está silencioso.
A 15 de Fevereiro, na margem esquerda do Ananás, o Tenente Marques de
Souza se encontra com o Coronel Rondon. Visitaram ambos quatorze roças de
índios, abandonadas. O Coronel mostrou ao auxiliar árvores ainda derrubadas com
machados de pedra. Ao chegar ao Campo dos Mangabas foram até o lugar onde
existiram as grandes malocas dos Nhambiquaras.
Encontraram muitos ossos de antas, veados, etc. Quanto às malocas, nenhum
vestígio delas havia, a não ser o local, muito limpo. Descobertos, os índios
incendiaram as aldeias, destruíram as roças e mudaram-se para longe. O Coronel
Rondon e o Tenente Marques de Souza almoçaram lautamente: feijão, arroz,
farinha, doce e chá. Diz
o Diário:
Conversamos muito à noite, e
eu guardo para sempre a lembrança desta visita, deste último contato com um
civilizado.
A 16 de fevereiro, o Tenente Marques de Souza avistava, pela última vez,
os civilizados. Dentro em breve menciona, no Diário, este doloroso estado
d’alma:
Só concilio o sono às 12 ou
1 hora e assim mesmo de vez em quando acordo. Fico em um estado de desespero
horrível. Há momentos agradáveis nesta vida de sertão, mas em compensação nos
momentos de amargura, de aborrecimento, sofre-se mais, muito mais do que em
outro qualquer lugar. Um minuto de padecimento parece uma hora, talvez seja
devido à falta de um consolo, talvez devido à ausência de uma pessoa amiga.
O sertanista militar experimentou as agruras dos rios troncados de árvores,
atravessando-os de margem a margem, dos igarapés de voltas caprichosas,
tornando difíceis as manobras das ubás, as mordidelas das abelhas, dos
mosquitos de má casta, das terríveis mutucas, das teimosas “birucinhas”.
Adiante, adiante. Eis, porém, pela frente uma cachoeira dificílima de transpor.
Os borrachudos, os carapanãs, as abelhas, as formigas atacam a expedição,
confederadas para a mordedura e para o suplício da pele.
O pessoal anda com os pés
enrolados em trapos e com a cabeça coberta por um pano do qual só saem os olhos.
Numa certa cachoeira, a expedição Marques de Souza perdeu as suas ubás,
arrebatadas pela corrente, com grave risco da vida dos tripulantes. Que luta
para encontrar árvore de porte a ser com ela construída nova embarcação! Escasseavam
os gêneros e quase as coragens. A expedição metia dó. Não havia caça. Três
caçadores conseguiram apenas abater um jacuzinho ([11]) e um
uruzinho ([12]).
Comia-se farinha e bebia-se café. Enfim se conseguiu nova ubá, talhada num
cajueiro de dezesseis e meio palmos de roda. Mas a luta prosseguia. Não se
andava mais de duas horas por dia, Ora saltos, ora corredeiras, a luta do palmo
a palmo, do homem contra o obstáculo, o obstáculo da natureza bravia.
O Tenente Marques de Souza expandiu-se no seu Diário em página íntima,
escrita em pleno deserto do Oeste brasileiro, num domingo. Marques de Souza via
a mãe e as irmãs se despindo para ir à rua, o que chamou pitorescamente “a
luta do vestuário para a missa”; os irmãos se dirigindo para o banho de mar.
O almoço, o jantar, a palestra doméstica, tudo perpassou diante do explorador,
perdido no mato, como se estivesse em presença de uma fita cinematográfica. Isto,
porém, observa, “não denota fraqueza de ânimo”. Apesar de doente, o mais
doente dentre todos:
eu sou o mais alegre, que de
vez em quando dirige frases de entusiasmo, de gracejo, sem ferir a disciplina,
procurando sempre animar todos para a continuação da viagem.
Animar todos, tarefa difícil, por exemplo, a 17 de maio de 1915, quando a
expedição só pôde viajar trinta minutos! Foi obrigada a parar acima de grande
salto com mais de oito metros de altura.
Fez-se a exploração por terra e viu-se a impossibilidade de varar as
canoas. Afinal, depois de uma trabalheira insana para salvar as embarcações,
para carregá-las, a expedição venceu, alimentada apenas à castanha e sofrendo
as consequências de tal alimentação. De salto em salto lá ia o grupo
sertanista, verdadeiros filhos de Eva, gemendo e chorando naquele vale de
horrores. Escreve o Tenente Marques de Souza:
Que cousa horrível este rio,
Não viajamos (a 26 de maio de 1915) mais de dez minutos!! Assim, quando
chegaremos ao Madeira?!
No dia 27 assinalava no Diário:
43° Acampamento – Estamos
acampados abaixo do último salto. O do centro tem dois metros de altura e os
outros regulam ter metro e meio cada um. A passagem dos dois últimos é muito
perigosa, mas tenho fé em Deus que nada nos há de acontecer. O lugar é como
atrás; todo montanhoso, mas logo abaixo do nosso acampamento é plano, a meta
melhora e não se veem morros para a frente. Felizmente, hoje, almoçamos peixe e
o pessoal jantou macaco. Eu só comi um pouquinho de arroz com castanha, pois,
me sinto mal.
A 28 de Maio, pela manhã, a expedição tentou passar as ubás. A grande,
logo ao entrar num paraná do primeiro salto, tomou impulso, devido à corrente,
largou-se o cabo, e a embarcação parou num remanso. Arrebentara toda a proa; o
banco do centro abriu-se, assim como o fundo, fazendo um pouco d’água. A ubá
pequena nimbem sofreu avarias. Eram dez horas da manhã. Às duas da tarde já se
derrubara um cajueiro para fazer outra ubá.
Enfim, Deus é grande e não
nos desamparará. São mais quatro dias perdidos!
Eis as últimas palavras do Diário do Tenente Marques de Souza. De então
por diante só se soube dele quando, em Manaus, surgiram homens da expedição,
relatando ter Marques de Souza perecido a golpes de flechas desferidos por
índios da tribo dos Araras, selvícolas muito hostilizados pelos seringueiros.
Marques de Souza, segundo narraram os informantes, dirigiu-se aos
selvagens com palavras amigas e de paz, recebendo a morte como resposta. Tinha
trinta e um anos. Era o enlevo, a esperança, o arrimo de numerosa família; o
ídolo, a felicidade, o futuro de uma noiva.
A sua missa na igreja da Candelária foi cerimônia inolvidável. No altar
estava o irmão. D. Leandro Menescal Marques de Souza, monge beneditino,
comovido, tristíssimo.
Devia ser o celebrante próximo do casamento fraterno. Rezava-lhe por
alma. Sentia-se-lhe a dor sob o pesadume das vestes negras.
O Tenente Marques de Souza esperava os véus de sua noiva. Ella tinha
véus, em lágrimas, nos olhos.
O monge levantou a hóstia. Os dedos tremiam ao sustentá-la. Quando findou
o sacrifício, e literalmente o era, encaminhou-se para a sacristia como quem
não poderia, com os paramentos, despir uma grande dor.
Há, dizem-me, numa das casas do Congresso um projeto favorecendo um pouco
os herdeiros do intrépido e malogrado sertanista. Quem votar por ele, se
erguerá do seu lugar pelo Brasil reconhecido a quem tanto fez pelo Brasil
desconhecido. (RTIC)
(Olavo Bilac)
III
[...] O Sertanista ousado agoniza, sozinho...
Empasta-lhe o suor a barba em desalinho;
E com a roupa de couro em farrapos, deitado,
Com a garganta afogada em uivos, ululante,
Entre os troncos da brenha hirsuta, ‒ o Bandeirante
Jaz por terra, à feição de um tronco derribado [...]
IV
[...] Morre! germinarão as sagradas sementes
Das gotas de suor, das lágrimas ardentes!
Hão de frutificar as fomes e as vigílias!
E um dia, povoada a terra em que te deitas,
Quando, aos beijos do sol, sobrarem as colheitas,
Quando, aos beijos do amor, crescerem as famílias,
Tu cantarás na voz dos sinos, nas charruas,
No esto da multidão, no tumultuar das ruas,
No clamor do trabalho e nos hinos da paz!
E, subjugando o olvido, através das idades,
Violador de sertões, plantador de cidades,
Dentro do coração da Pátria viverás! [...]
Bibliografia
RTIC, 1918. O Tenente Marques de Souza ‒ Ceará ‒ Fortaleza ‒ Revista Trimestral do Instituto do Ceará ‒ Tipografia Minerva, Tomo XXXII, ano XXXII, 1918
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Senha: do latim signum – sinal. Destino, fado, sorte. (Hiram Reis)
[2][2] Boscarejos: habitantes dos “bosques” ou das matas. (Hiram Reis)
[3] Rútilo: brilhante. (Hiram Reis)
[4] Passadio: alimento diário. (Hiram Reis)
[5] Igarité: embarcação cargueira com capacidade de até 2 toneladas, movida à remo, sirga ou motor. (Hiram Reis)
[6] O Monge de Cister: do escritor Alexandre Herculano, tendo Vasco como personagem central, foi publicado em 1848. É um romance histórico que retrata Portugal do século XIV, durante o reinado de D. João I (1385-1433), com ênfase especial no ano de 1389. (Hiram Reis)
[7] Só: deserto, ermo. (Hiram Reis)
[8] Abrolhada: que apresenta muitas dificuldades, obstáculos; árdua; difícil; espinhosa. (Hiram Reis)
[9] Apesarado: agoniado. (Hiram Reis)
[10] Guilherme Tembel Meyer: personagem do livro “Inocência” de Visconde de Taunay. (Hiram Reis)
[11] Jacuzinho: Penelope obscura. (Hiram Reis)
[12] Uruzinho: Odontophorus capueira. (Hiram Reis)
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H