Sexta-feira, 15 de outubro de 2021 - 06h00
Bagé, 15.10.2021
Jornal do Brasil, n° 133 – Rio, RJ
Quinta-feira, 10.06.1965
Rondon, 75 Anos Depois
No Caminho Dos Semivivos (II)
[Reportagem - Juvenal
Portella /
Fotos - Rubens Barbosa]
‒ Sô Arlindo me empreste
um boi pra moer a cana?
‒ O boi está cansado.
Vai você para a moenda.
O suor pingou forte da cara cansada do índio Bororo,
que não disse mais nada. Juntou a mulher ‒ que levava um filho preso por uma
cinta às costas ‒ e o resto da família, a menina e o menino, e, sob o Sol que
queimava muito naquela tarde de maio, pôs o tronco a funcionar, movimentando a
moenda que lhe daria a garapa.
O índio, a exemplo da maioria dos moradores da aldeia
do Posto Gomes Carneiro, era um homem doente. Se o fato fosse contado por
qualquer índio da região teria pouco crédito, porque, na realidade, os
indígenas ainda não sabem distinguir a verdade da mentira. Mas a cena aconteceu
diante dos repórteres, sem que o Sr. Arlindo Dias da Costa, encarregado do
Posto, percebesse.
Minutos antes, o mesmo funcionário tinha dado ordens
para que um boi fosse morto, a fim de ser transformado em churrasco para as
visitas ‒ fazendeiros que discutiam na sala de aula com o Inspetor do SPI o
problema de invasão de terras indígenas. A aldeia onde moram os índios fica
distante do Posto meia légua por estrada de terra ‒ boa ‒, seguindo por uma
picada de meio quilômetro. Quem começa a caminhar com destino à Aldeia tem, a
princípio, a ilusão de que encontrará uma clareira repleta de casas cuidadas,
de crianças brincando, de velhos sentados nas portas tecendo baquités ‒ cestas
de vime ‒ e de mulheres esperando a volta de seus maridos da jornada na roça ou
na caçada. O ladrar dos cães à distância, o gorjeio das aves e suas presenças nas árvores
maiores, além da tranquilidade aparente, criam naqueles que pela primeira vez
chegam por ali um quadro até mesmo otimista. No grupo em que estávamos ‒ um
Tenente da Polícia Militar, um engenheiro, um fotógrafo americano e sua mulher,
além do Sr. Hélio Jorge Bucker, chefe da Sexta Inspetoria Regional ‒ os
comentários eram exatamente esses, embora alguns não esperassem encontrar a
mais perfeita ordem. O encarregado do Posto não pode nos acompanhar, alegando
ter muito trabalho a fazer.
DESOLAÇÃO
De fato, existia uma clareira,
não muito grande. Bem no centro, bastante desgastada, uma enorme cabana ‒ a
definição mais suave ‒ moradia dos solteiros. Ao seu redor, as casas cobertas
de palha e feitas no barro preso às estacas de madeira ruim. Ninguém soube
dizer ao certo a população da aldeia. ‒ É que muitos vão embora, outros que
tinham ido voltam, vários estão caçando e as mortes acabam com os que a gente
mal conheceu. ‒ Informou um Bororo.
A ingenuidade faz do índio um
curioso e, toda vez que há presença de estranhos, todos se reúnem para ver quem
é ele. Nesse dia, poucas mulheres saíram de suas casas para ver os visitantes.
Por isso, fomos obrigados a ir cabana por cabana. Foi quando todos entenderam a
razão da ausência na clareira. A tosse impedia aos mais velhos responder com
clareza o cumprimento que levamos. Os mais novos tossiam também. Tossiam as
crianças, nuas, descalças, de barrigas grandes por causa dos vermes.
‒ Só há uns dois ou três
dias é que começamos a tomar remédio. Antes, não.
E era verdade: dias antes da
nossa chegada ao Vale do Rio São Lourenço o SPI mandou algumas caixas de
medicamentos. Penicilina era a medicação, mais nada. Nem dieta, nem xarope, nem
exame médico. Mesmo porque médico nunca chegou por ali. Um casal de jovens
estudantes norte-americanos ‒ donos da única cabana em condições de ser
habitada ‒ ajudava com comprimidos e outras drogas. Um índio disse que trocava
comprimidos por enfeites indígenas, mas não foi levado muito a sério. O
engenheiro Ramis Bucair, que já comandou algumas expedições para fazer contatos
com índios não pacificados, parou na entrada de uma das cassas e disse
baixinho, retirando-se:
‒ Tuberculose.
SOLUÇÃO
Índio não sabe a idade que tem, a não ser os mais
novos, mesmo assim por controle de terceiros. Na Aldeia do Posto Gomes
Carneiro, entretanto, podia-se calcular que dos 41 indígenas com quem falamos
18 já entravam nos 60 e 70 anos. Todos estavam contaminados, presumindo-se ‒
porque não houve exame médico ‒ que até as crianças.
E isso porque a família, mesmo grande, chegando às
vezes a 14 membros, não se desune: dormem todos em esteiras, praticamente
juntos, num só cômodo porque a cabana não tem divisões internas e onde também é
aceso um fogão para cozinhar os alimentos.
De volta ao Posto, depois de andar muitos metros com
os magros cães no caminho [até o cão é magro na Aldeia], alguém quis saber do
responsável, o funcionário Arlindo Dias da Costa, o que estava acontecendo com
os índios.
‒ É essa gripe que anda por aí. ‒ Explicou. Uma
conversa com o agente Arlindo não pode durar muito, porque suas respostas são
curtas ‒ sua mulher é quem as alonga.
‒ Não houve exame médico
porque aqui não há médico e trazer um da Capital é botar fora uma fortuna,
quando ele aceita vir.
E mais:
‒ A gente aplica injeção
de Penicilina porque é o que temos. Se há tosse e gripe, a Penicilina dá jeito.
Houve quem quis saber o que se
fazia para evitar a morte do índio pela doença. A resposta, embora pareça
cínica, foi dada com muita firmeza:
‒ Eles têm um cemitério
para cuidar disso.
O Sr. Arlindo Dias da Costa, a
exemplo da maioria dos funcionários do SPI na região da Sexta Inspetoria, é analfabeto.
Mas, o pior: não tem iniciativa alguma e, conforme acabou por concluir o Sr.
Hélio Jorge Bucker, a menor capacidade para o cargo que ocupa há muitos anos.
QUADRO IGUAL
O exemplo do Posto Gomes
Carneiro poderá ser aplicado a quase todos os demais. Por indicação do
Inspetor, funcionários são nomeados encarregados, tendo como obrigação morar no
Posto. Isso significa praticamente afastar-se da civilização e viver na mata.
Todos os atuais encarregados estão nos lugares há vários anos, principalmente
por falta de quem os substitua.
Os Postos tem atribuições
especificadas no Regimento do SPI, aprovado pelo Decreto 10.652, de 10 de
outubro de 1942, e modificado pelos Decretos 12.318, de 27 de abril de 1943, e
17.684, de 26 de janeiro de 1945. São elas conforme o artigo 12:
1. Atrair
as tribos arredias ou hostis, impedindo hostilidades entre as mesmas e
estabelecendo entre elas relações amistosas;
2. Conservar
e fazer respeitar a organização interna das tribos, sua independência, seus
hábitos, línguas e instituições, não intervindo para alterá-los, a não ser que
ofendam a moral ou prejudiquem os interesses do índio ou de terceiros;
3. Exercer
sobre o índio, de qualquer categoria, na forma da legislação vigente, a tutela
que lhe deve ser prestada pelo Estado, resguardando-o da opressão e da
espoliação;
4. Criar
um ambiente de respeito recíproco entre o índio e o civilizado;
5. Não
permitir violência contra o índio, promovendo a punição dos crimes que se
cometerem contra ele, garantindo o respeito à família indígena e promovendo a
punição dos que violarem ou tentarem violar;
6. Garantir
a efetividade da posse das terras ocupadas pelo índio, impedindo, pelos meios
legais e policiais ao seu alcance, que as populações civilizadas ataquem-no ou
invadam suas terras, e comunicando às autoridades os fatos dessa natureza que
ocorrerem;
7. Fiscalizar
a entrada, para o sertão, de pessoas estranhas ao serviço e velar pela
fronteira próxima, de acordo com as instruções que lhes forem expedidas;
8. Informar
à Inspetoria Regional das ocorrências extraordinárias ou imprevistas;
9. Executar,
rigorosamente, as instruções baixadas pela IR ou diretamente pelo Diretor;
10. Zelar
pela preservação e conservação do material e demais bens do patrimônio nacional
e do índio, confiados à sua guarda, mantendo em dia a sua escrituração
prestando contas ao Chefe da Inspetoria, da respectiva gestão e dos suprimentos
recebidos, ou ao Diretor, quando pelo mesmo tenham sido feitos os aludidos
suprimentos;
11. Proceder
a demarcação das terras pertencentes ao índio, conforme determina o artigo 154
da Constituição;
12. Manter
escolas para o índio;
13. Dar
ao índio ensinamentos úteis, procurando despertar nele os sentimentos nobres,
incutir-lhe a ideia de que faz parte da nação brasileira e, ao mesmo tempo,
prestigiar as suas próprias tradições e manter nele, bem vivo, o orgulho de sua
raça e de sua tribo;
14. Prestar
ao índio assistência sanitária, fazendo-lhe observar práticas higiênicas;
15. Conduzir
o índio ao trabalho por meios persuasivos;
16. Combater
o nomadismo e fixar as tribos, despertando o gosto do índio para a agricultura
e indústrias rurais e assegurando, pelo incremento das mesmas e da pecuária,
uma base sólida à vida econômica do índio;
17. Manter
trabalho e instituições de lavoura e pecuária em grau condizente com o nível do
índio, aperfeiçoando a técnica, à medida que o índio for evoluindo socialmente;
18. Envidar
esforços para melhorar as condições materiais da vida indígena, fornecendo ao
índio, quando for necessário, roupas, alimentação, instrumentos de trabalho,
sementes, animais e outros recursos;
19. Incentivar
a construção de casas para o índio, empregando-o, persuasivamente, neste
mister;
20. Manter
o índio da fronteira dentro do nosso território.
Essas instruções são cumpridas?
Um contato de 12 dias com oito Postos deu a resposta: não. Os argumentos
usados como justificativa, se não convencem, pelo menos tem servido para que o
estado de coisas ‒ ruim ‒ permaneça ao longo de muitos anos. Um deles se refere
aos recursos, de que se ressentem os Postos. Mas ele passa a não ter nenhum
valor se considerado um fato contido num dos itens, aquele que se refere à
manutenção de trabalhos nas terras do Posto. Na maioria deles, esses trabalhos
existiam, em forma de boa criação de gado, lavouras e até mesmo, num deles, o
Galdino Pimentel, de uma indústria, que é um capítulo triste na história do
SPI.
Próximo às margens do Rio São
Lourenço, em outra etapa do seu curso, há 25 anos foi erguido um imenso galpão,
canalizada água, introduzida energia elétrica e instalada maquinaria de
serraria, de beneficiamento do arroz, de fabrico de açúcar e farinha.
O material, todo importado, era
de excelente qualidade, havendo mesmo uma serra francesa de 10 lâminas, das
mais modernas na época. Um grupo de índios Bororo foi treinado por
especialistas e cuidou de toda a produção, além da responsabilidade pela
manutenção do material. Durante muito tempo o Posto teve renda própria, pois
além de empregar a produção ainda fornecia aos demais. Os elementos indígenas
ganhavam pelo que produziam. Essa obra, produto do esforço de Rondon, foi
abandonada há 11 anos, por desleixo dos administradores. Ao mesmo tempo, a
tribo que ocupava a Aldeia do Posto foi-se reduzindo. Muitos preferiram
trabalhar em terras de fazendeiros próximos, outros se entregaram a roça por
uma garrafa de pinga, a maioria morreu, vítima de muitas doenças, as últimas
das quais foram o sarampo e a tuberculose. No mesmo Posto, hoje dirigido por
Silvino Ribeiro da Silva, um homem vencido pela idade, o SPI perdeu uma lancha,
“Nilo Peçanha”, também dos tempos de
Rondon, por desleixo do encarregado daquela época, João Fonseca. O fato
aconteceu em 1954 e o valor da embarcação oscilava entre Cr$ 5 e Cr$ 6 milhões.
FRUTO DA INCOMPETÊNCIA
Não há nenhum exagero na
afirmativa de que a incompetência é lugar comum no SPI de Mato Grosso. Por isso
morrem índios de tudo o que é doença, invasores tomam suas terras, o gado
desaparece, secam os mandiocais e arrozais, a corrupção tem livre acesso.
Estatísticas não existem e em alguns Postos não se sabe quantos índios estão
aldeados. Do Sr. Silvino da Silva ouvimos uma explicação sobre o problema do
gado:
‒ Não há cercado e as
reses vão pastar longe. Não temos peões e não podemos laçá-las. Então, elas vão
ter às terras de fazendeiros e tudo fica mais difícil.
Seis reses apenas, quando o
Posto teve centenas, é o que resta. Meia dúzia ‒ não mais ‒ de índios,
cansados, mulheres doentes, mais nada, quando mais de 800 viviam em outros
tempos pelos campos e na indústria. Bem ao lado da sede do Posto funciona um
outro, pertencente ao Departamento dos Correios e Telégrafos, embora em terras
do SPI. Devido a denúncias, segundo as quais funcionários do DCT exploravam
mulheres indígenas e trocavam o trabalho dos homens nas lavouras que possuíam
por uma garrafa de pinga, houve um inquérito administrativo. Parte dos
funcionários foi afastada, mas a corrupção continuava, segundo o JB constatou,
ao descobrir caixas contendo garrafas de aguardente.
‒ Todas essas coisas nos
levam ao desânimo.
Foi a frase do Sr. Hélio Jorge
Bucker, ao tomar contato pela primeira vez com esses problemas. (JB, N° 133)
Bibliografia
JB, N° 132 a 138. Rondon, 75 Anos Depois ‒ No Caminho Dos Semivivos (I a VI) ‒
Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Jornal do Brasil, n° 132 a 138, 09 a 16.06.1965.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
·
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H