Terça-feira, 19 de outubro de 2021 - 06h05
Bagé, 19.10.2021
Jornal do Brasil, n° 136 – Rio, RJ
Domingo e Segunda-feira, 13 e
14.06.1965
Rondon, 75 Anos Depois
No Caminho Dos Semivivos (IV)
[Reportagem - Juvenal
Portella /
Fotos - Rubens Barbosa]
Reservo este capítulo para um depoimento pessoal não exatamente sobre o
problema indígena, mas sobre o elemento humano, sobre o que resta dele, melhor
dizendo. Para obter o seu retrato andei ‒ com meus companheiros de trabalho ‒
durante vários dias dentro do mato, cruzando de dia ou de noite por caminhos
longos e tortuosos, atravessando em canoas estreitas Rios caudalosos e
perigosos, dada a presença da piranha e outros peixes inimigos.
No lombo de um cavalo velho andei quatro horas em cima de charco, com
espinhos, paus e cipós batendo-me no corpo, ao tempo que toda espécie de
mosquitos quase impedia a caminhada. Isso sem poder ver a luz do Sol, uma vez
que no alto as árvores se juntavam formando um teto verde de folhas e galhos. Não
me engano, depois disso, ao afirmar que o índio é sobretudo um triste, embora
ele não saiba explicar essa tristeza.
Nos oito Postos que visitei, com
liberdade para perguntar tudo a todos, só encontrei dois momentos bons: uma
festa onde moças e rapazes indígenas dançavam o rasqueado e a polca como
qualquer civilizado. O outro foi no Rio Piratininga, onde uma mulher se banhava
nua. Ao sentir a presença de outras pessoas ela buscou proteção nas roupas,
demonstrando que o pudor é uma conquista dos índios. Andei oito mil
quilômetros, desde a Guanabara, dos quais muitos no território indígena, para
aprender uma coisa: os índios necessitam urgentemente de mais amor e menos
desprezo.
DIÁLOGO COM MILTON
Um índio Bororo, alto, forte,
muito vivo, com um cargo de mando na sua tribo, membro do grande conselho,
pacificado há muitos anos e com um bom nível de alfabetização. Deram-lhe um
nome, Milton, que ele adota com muita vaidade, a ponto de desprezar totalmente
aquele usado nos seus tempos de mata.
Foi um dos primeiros indígenas
com quem falei, à vontade, logo no início da jornada pelo sertão
mato-grossense. Foi um diálogo breve, mesmo porque Milton não é de muito falar.
Prefere mais o sorriso, largo na sua boca ampla. Antes de tudo, pediu-me um
cigarro, mas tirou dois quando lhe ofereci o maço. Explicaram-me que os índios
gostam muito de fumo e são capazes de nos tomar o maço, se bobearmos, o que,
aliás, comprovei mais tarde numa aldeia de Xavantes. Reproduzo o diálogo com
Milton, um índio vestido, um índio civilizado, com muito tempo de convivência
no meio novo que lhe deram a conhecer, para que se possa sentir como é o
indígena nos dias atuais:
‒ É melhor esta vida ou aquela
do mato?
‒ A mesma coisa.
Essa indiferença percebi na
maioria dos índios com quem falei.
‒ Mas, Milton, viver
entre gente que você não conhecia, longe dos perigos da selva, não é melhor?
— É. É melhor.
As respostas demonstraram uma
coisa: incerteza. Bastava insistir com um certo ar de espanto, para que o
Bororo modificasse a sua opinião.
‒ Fale algo em sua
língua, por favor.
‒ Esqueci.
Milton disse que havia esquecido
a sua língua, que nem mesmo uma simples saudação podia fazer. O certo, porém, é
que, quando chegamos, ele trocava algumas palavras com um outro membro de sua
tribo. Insisti e não tive êxito. Depois me explicaram:
‒ Eles não gostam,
depois que se tornaram civilizados, de falar na língua de origem. Acham que
isso ficou para trás.
Falamos mais algumas poucas
coisas. Deu-me algumas informações sobre o número de indígenas em seu Posto,
pediu-me o gravador que levava de presente [sem oferecer nada em troca] e como
não dei contentou-se em ouvir a sua voz. Em geral, os indígenas que conheci são
muito desconfiados, falam pouco, riem muito, são curiosos, ingênuos [a
repetição se faz necessária] e possuem uma virtude: bondade. Não têm
iniciativa, mas atendem prontamente e com extrema boa vontade qualquer pedido
que se lhes faça. No Posto Marechal Rondon, cujo acesso, além de uma longa
picada mato adentro, que os locais chamam de estrada, é necessário o uso da
canoa, que um indiozinho Cajabi conduz, conheci a atividade escolar.
Uma turma de 71 alunos, a maioria
da qual integrada por meninos, é dirigida por uma moça, de nome Luci.
‒ São muito bons os
meninos. Como em qualquer Colégio, há os que aprendem mais rápido, os que
custam a fazê-lo e os que não aprendem nada. Dão trabalho, como qualquer aluno
dá à professora em qualquer centro civilizado, mas isso é desculpável.
Os meninos ‒ e a exemplo de todos
os indígenas pacificados ‒ tem nomes comuns, como João, Pedro, Cândido,
Marcelo, José, Antônio, Manuel etc. Gostam mesmo desses nomes e ‒ a maioria ‒
sabe escrevê-los na lousa, sem muito trabalho. A professora Luci ensinas também
trabalhos manuais, como um meio de despertar-lhes o gosto por certas artes. A
repercussão tem sido razoável e quase todos preferem a construção de aviões e
os desenhos de casas e paisagens a outra qualquer atividade.
DIA DE FESTA
No Posto Simões Lopes, por onde
corre o Rio Piratininga, e onde várias irregularidades foram anotadas no correr
dos últimos anos, principalmente com relação ao gado, encontrei um fato que me
pareceu completamente novo.Quando chegamos, ao cair da tarde, alguns indígenas
resolveram fazer uma surpresa: pediram ao encarregado, Sr. Pedro Vane,
permissão para utilizarem a grande sala de aula para uma festa.
A princípio pensamos que se
tratava de danças típicas, na base dos trajes coloridos, grandes enfeites
cobrindo o corpo, batuque e tudo isso que se conhece por leitura ou cinema.
Nada disso. Quando a noite caiu vi de longe o prédio da escola iluminado pelos
lampiões a querosene e ouvi acordes de violão e acordeão.
Cumpri o trajeto entre a casa dos
hóspedes ‒ todos os Postos possuem uma ‒ e o colégio, uns 500 m, sem que
ninguém me explicasse como era aquela festa de índios, com instrumentos comuns
aos civilizados. Pediram-me que entrasse e visse. Entrei e vi um grupo de
mocinhas indígenas dançando, mas dançando não à sua maneira: dançavam o
rasqueado ([1]),
gênero musical da região sertaneja, a polca, a valsinha até.
Timidamente, os rapazes
indígenas, principalmente por causa da minha presença e a dos companheiros de
viagem, não arriscavam a tirar as moças. Por isso, dançavam meninas com
meninas, mocinhas com meninas, em duplas do mesmo sexo. Só mais tarde, quando
todos incentivaram, é que eles se encorajaram e então a festinha virou um baile
muito concorrido.
O que me impressionou, além das
evoluções, e que jaziam relativamente bem, foi o ambiente: todas as cadeiras e
mesas da sala foram afastadas e colocadas em redor, para que, quem não
dançasse, pudesse apreciar sentado.
Mulheres ‒ quase todas com seus
filhos ao colo ‒ detinham-se nos pares e até chamavam a atenção de um ou outro
para um passo errado. Os homens acompanhavam a música com as mãos, enquanto os
outros, se não dançavam, aplaudiam os que o faziam. Tudo dentro de uma ordem
total, como se na organização tivesse participado um civilizado, o que não
aconteceu. Por determinação do administrador do Posto, a festa se encerrou às
11 horas da noite, sem qualquer protesto e em silêncio.
DOIS EXTREMOS
Os índios que eu conheci, numa
convivência de 12 dias seguidas, não andam nus. Vestem-se como qualquer um de
nós, gostam de coisas fúteis, porque só conhecem coisas fúteis, como óculos
escuros, chapéu de palha, espelhinhos que prendem à cintura, anéis e coisas
assim. Facilmente, trocam baquités, arcos, flechas, cocares ou aves por um
desses objetos, sempre em desvantagem considerados os valores de cada uma
dessas coisas.
Não perderam a crendice deixada
por seus antepassados, mas não chegam a fazer hoje em dia os rituais exagerados
de que se tem notícia. Conservam algumas tradições, como a do casamento, que é
curiosa.
Um casamento entre indígenas é
fato consumado no nascimento da menina. Quando isso acontece, seus pais
escolhem o marido e desde então ambos são comprometidos. Ao chegar a idade
considerada normal para a vida em comum ‒ a partir dos 15 anos, embora existam
casos em que a moça se casa com 13 ‒ ela é entregue ao marido e começam aí as
comemorações, que chegam muitas vezes a durar seis meses. O ponto alto da
cerimônia é a caçada. Todos os homens e mulheres da aldeia saem em busca da
caça, que é toda destinada à mãe da noiva.
O noivo tem como obrigação reunir
a maior quantidade de caça e entregar à sogra. Ao acontecer isso, a noiva, com
o corpo coberto de pintura e de enfeites, mas totalmente nua, vai para o centro
da Aldeia. As outras moças, então, disputam numa corrida de suas casas até o
lugar onde ela se encontra, o direito a um enfeite. É uma cerimônia, semelhante
ao lançamento do véu, entre os civilizados.
A morte de um índio tem uma
cerimônia especial, em geral, e umas raras tribos fazem um ritual diferente.
Quando morre alguém, os homens mais fortes da aldeia são convocados para
impedir que os parentes, entregues ao desespero, cometam desatinos. Alguns
desses desatinos podem ser numerados:
1. Impedem
pelo uso da força que se enterre o morto;
2. Quando
não fazem isso, lutam para se enterrarem vivos junto com o cadáver;
3. Não
largam o corpo, abraçando-o.
Um detalhe pode Ilustrar o
funeral: o morto é enterrado na posição vertical, numa cova de seu tamanho
junto a todos os objetos que lhe pertenceram em vida, pois não se admite que
outra pessoa possa usá-los. O luto representado pelo corte total dos cabelos,
nos homens. Os que abriram a cova são pagos pelo dono de cadáver. Durante o
velório toda a aldeia se reúne e canta até a madrugada.
INDIFERENÇA
A não ser durante a festa no Posto Simões Lopes,
não, vi alegria nos rostos das indígenas. Notei, isto sim, uma, certa
indiferença na grande maioria pelo que lhe acontece agora. A verdade é que
poucos conseguiram entender a mudança. Os que nasceram no atual sistema de vida
a ele se acostumaram e são indiferentes ao que: acontece ao seu redor. Os
velhos são tristes e silenciosos, sem esperanças e descrentes no dia de amanhã.
Apenas as, crianças, assim mesmo quando ainda não ajudam os pais no trabalho
doméstico, são alegres. Como qualquer outra, embora de barriga grande, olhos
fundos e tosse presente toda hora.
Os índios não reclamam contra um estado de
coisas que lhes dá uma condição de raça inferior. Essa condição se percebe em
muitos fatores, dos quais estes me parecem os mais importantes:
1. Doentes
vivem misturados aos sadios;
2. O
interior das casas é anti-higiênico;
3. As
mulheres não têm qualquer proteção no instante do parto, nem antes ou depois;
4. As
crianças nascem e crescem sem a menor assistência;
5. Falta
trabalho e com isso muitos índios, entregues ao lazer, tornam-se imprestáveis,
em alguns casos.
E tudo isso se deve ao abandono a que foram
entregues pela omissão do SPI, que vê Aldeias se assemelharem às mais rudes
favelas, de uma maneira indiferente. E o SPI tem obrigação até mesmo de
prestar assistência sanitária ao índio, fazendo-lhe observar práticas
sanitárias, conforme manda o regulamento.
O ERRO DA
OMISSÃO
O que fizeram do índio, então? Há de se
perguntar. Negar-lhe um boi para mover a moenda é o mínimo, considerando o que
não se fez por ele. Ouvi de certos donos de terras ‒ dentro da área indígena ‒
expressões duras, mas contendo uma certa verdade, como esta:
‒ Para que tanta terra
para tão poucos índios, se eles nada fazem nela.
Alguns têm uma pequena roça, outros trabalham na
roça do Posto, mas muitos ainda se valem de seus conhecimentos da caça ou da
pesca para se manter vivos.
Deram roupa ao índio, em alguns calçaram botas,
nas mãos de uns entregaram uma enxada e ficou por aí. Se eles compreendem isso?
A grande maioria, não. Há os que reclamam, mas não são levados a sério. Acabam
deixando suas Aldeias e se entregando ao trabalho nas fazendas do Estado,
muitas vezes por um salário de nada. Ou então acabam se embriagando em qualquer
canto.
Por causa dessa situação foi fácil desviar a
mulher para um caminho errado, como aconteceu no Posto Galdino Pimentel, onde
funcionários do DCT encontraram facilidades para isso.
Os chefes de grupos, porque cada tribo é
dividida em grupos e cada um tem um chefe com o título de Capitão, não têm
condições para provocar uma reação, uma vez que são velhos demais para isso ou
se acomodaram à situação.
Resta, então, a esperança, manifestada através
do bacururu, dança e canto que significa espantar o azar e os maus, para que
possa haver um pouco de alegria.
De vez em quando os homens da tribo se juntam no
terreiro, formam um círculo, de mãos dadas, e cantam, acompanhando-se com os
pés. Mas, passa a dança e o canto e nada de bom acontece. Então, o índio se
deixa cair na rede e dorme, porque madrugada ainda irá em busca dos recursos na
mata, como nos tempos de não pacificado, para que possa comer e viver um pouco
mais.
A grande verdade é que, se não partir das
autoridades, não será a iniciativa do elemento índio que lhe dará melhores
meios de vida. O índio mudou bastante, também, e por isso os civilizados que os
assistem [teoricamente] nada temem.
Já não é tão forte entre os indígenas o
ensinamento dos antepassados com relação ao espírito “traidor do branco”, como transmitiu aos seus uma índia Bororo de
nome Rosa, heroína da pacificação de um grupo de sua raça que vivia no Rio São
Lourenço. Rosa, ao morrer, aconselhou seu filho:
‒ Olha meu filho, você
nunca confie nos brancos. Eles só nos tratam bem, fazem-nos festas, enquanto
precisam de nós ou um qualquer interesse dependente de nós. Fora daí eles são
falsos e traidores. (JB, n° 136)
Bibliografia
JB, N° 132 a 138. Rondon, 75 Anos Depois ‒ No Caminho Dos Semivivos (I a VI) ‒
Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Jornal do Brasil, n° 132 a 138, 09 a 16.06.1965.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com..
[1] Rasqueado: O nome do ritmo é referência ao rasqueado que as unhas
fazem no instrumento de corda (“arrastar
as unhas ou um só polegar sobre as cordas sem as pontear”).
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H