Quarta-feira, 27 de outubro de 2021 - 10h38
Bagé, 27.10.2021
A Natureza
(Jose
Agostinho de Macedo)
Erguendo a fronte aos nautas
se descobre
E brinca pelo azul campo
espelhado;
E não se espanta com a
terrível vista
Do homem, que encerrado em
frágil lenho
Ousa afrontar o mar, o vento,
a morte;
03.11.2014 (segunda) – KM 460 –
KM 484
Depois
de navegarmos, em águas calmas, por uns 06 km surgiram alguns rápidos que foram
transpostos pelo canal da esquerda que se estendia ao longo de duas pequenas
ilhas (09°13’18,9” S / 60°42’26,3” O), de uns 300 m de comprimento cada uma,
conforme nos orientara o amigo Jair. Seis quilômetros adiante, depois de passar
por mais alguns rápidos, avistamos a Foz do Igarapé Panelas (09°11’33,4” S /
60°44’35,4” O) e, 2,5 km a jusante, a pequena Comunidade de Panelas onde existe
uma balsa. Parei pouco depois do acesso da balsa, à margem direita, e consultei
dois ribeirinhos a respeito da trilha apontada pelo Jair para desbordar a
Cachoeira Panelas. As informações do Jair eram muito precisas, continuei
remando, a cavaleiro da margem direita, contornando uma série de rochedos até
encontrar uma pequena Baía onde avistei o velho barco exatamente no local e
posição que ele descrevera.
A
proa da embarcação apontava para uma trilha de uns 300 m que dava acesso a um
pequeno porto a jusante da Cachoeira das Panelas, onde fotografei a bela
mariposa “Urania leilus” que eu encontrara,
pela primeira vez, no Rio Tapajós, depois de realizar minha terceira descida
pelos amazônicos caudais. Ao contrário da maioria das mariposas, a “Urania leilus”, tem hábitos diurnos. Conseguimos
fazer a “portagem” em pouco mais de
duas horas e partimos sabendo que logo à frente enfrentaríamos um novo
labirinto formado por diversas ilhas e inúmeros rochedos e onde a largura do
Rio ultrapassava os 500 metros.
A
imagem do Google Earth estava encoberta por nuvens e tive de usar minha
experiência e bom senso para escolher os canais mais adequados para a descida.
Estes caminhos mais seguros eram sempre os mais longos, a cada bifurcação eu
analisava a cota dos canais à minha frente e optava, invariavelmente, pela mais
baixa que, logicamente, não tinha ou pelo menos deveria apresentar menos
obstáculos a reter as águas do Rio. Agindo dessa maneira evitamos maiores
sobressaltos e chegamos até um ponto onde estes diversos canais convergiam para
um único com uma largura de aproximadamente 200 metros e onde as águas estavam
mais serenas. Fizemos uma parada em um pedral à margem esquerda e por volta das
15h00, depois de percorrer 24 km indiquei aos meus amigos uma casa abandonada
(AC12 ‒ 09°08’04,8” S / 60°41’42,8” O) onde poderíamos pernoitar com certo
conforto, o único inconveniente era a altura do barranco. Fiz contato com o Sr.
Arão, um seringueiro aposentado, que morava numa pequena casa nos fundos da
casa grande, e ele concordou que ali pernoitássemos.
Segundo
ele, o dono da propriedade, que a usava apenas para pescar com os familiares,
falecera em um desastre aéreo. O Sr. Arão, a pedido do Dr. Marc, esquentou a
água para preparar as rações. O pequeno seringueiro jantou conosco mas não
apreciou o sabor da comida importada.
04.11.2014 (terça) – KM 484 – KM
509
Desmontamos
o acampamento e parti antes de meus amigos avisando que esperaria por eles
quando encontrasse algum obstáculo e caso isso não acontecesse eu os aguardaria
na Ilha do Cotovelo (08°59’55,3” S / 60°43’57,9” O) que estava localizada a uns
18 km da residência do Sr. Arão. Remei forte e a uns 3 km da referida Ilha
contatei alguns ribeirinhos (09°00’39,7” S / 60°42’55,6” O) solicitando a eles
que informassem aos “Camaradas” que
os aguardaria na Ilha do Cotovelo onde cheguei por volta das 10h00.
As
únicas formações rochosas desde o AC12 ficavam a pouco mais de um quilometro da
Ilha e não ofereciam qualquer tipo de dificuldade. Ao chegar na Ilha espantei,
sem querer um pequeno jacaré que dormitava tranquilamente nas pedras da Ilha. Aqui
como nas demais ilhas pedregosas do Roosevelt encontrei diversos arbustos de
Camu-camu ([1]).
Eu não sabia se seus frutos eram ou não comestíveis.
Só
alguns dias mais tarde quando elas já começavam a rarear é que fiquei sabendo,
pelo Kleber (Cachoeira Carapanã), de que eram os tão cobiçados frutos ricos em
vitamina C. Eu arriscara provar apenas um deles tendo em vista que as frutas
maduras não apresentavam bicadas de pássaros e as caídas no chão não tinham
sido comidas por pequenos mamíferos. Dizem os especialistas que 90% do que os
animais comem também pode ser consumido pelos seres humanos. A bela fruta de um
roxo intenso e sabor levemente ácido mas agradável não era “CAL” ‒ Cabeluda, Amarga ou Leitosa. No
Curso de Operações na Selva, do CIGS, haviam-nos ensinado que se uma fruta
apresentasse essas três características não se deveria comê-la embora a
existência de apenas uma ou duas dessas características não a tornasse,
necessariamente, imprópria ao consumo.
Aguardei
até o Dr. Marc aparecer e como as antigas fotos da Ilha eram muito diferentes
da aparência que ela tinha hoje resolvi explorar sua ponta de jusante que a
foto do Google Earth mostrava estar coberta pela mata mas que segundo as leis
da hidrodinâmica poderíamos encontrar um banco de areia onde seria possível
aportar e nos refrescar dentro d’água à sombra das árvores. Assim que iniciamos
a descida surgiram os “Camaradas”
logo a montante da Ilha. Aguardamos a dupla na ponta de jusante um bom tempo e
como eles não aparecessem deduzimos que tinham aportado na Ilha. Descemos
lentamente e estacionamos na margem direita do Rio ainda aguardando os “Camaradas”. O Dr. Marc, enquanto isso,
aproveitou para contatar o pessoal de terra, através do telefone satelital,
repassando nossa posição atual.
Finalmente
apareceram os “Camaradas”, o Jeffrey
tinha aproveitado para realizar algumas filmagens desde a Ilha do Cotovelo e
por isso tinham demorado tanto.
Relata
o Cel Angonese:
Nós encontramos uma montaria [embarcação a remo
construída de um tronco de árvore] com uma senhora, uma criança de colo mais 4
crianças. Moravam nas imediações da Ilha do Cotovelo. O chefe da família, Sr.
Francisco, era um dos últimos que continuavam com a antiga profissão de
seringueiro. Todo dia partia em sua trilha percorrendo seu seringal colhendo o
látex daquelas árvores que renderam tantas divisas ao Brasil e que agora tão
poucos se dedicam a esse trabalho. A técnica de preparo foi aperfeiçoada dos
antepassados. Antigamente a “pela”
era preparada na fumaça de um fogo lento. Agora o látex é colocado em um
recipiente e endurecida com coalho. O seringueiro do Rio Roosevelt está
vendendo seu produto a R$ 4,50 o kg do látex.
Recordemos
brevemente, já que discorremos exaustivamente sobre o tema no Livro “Descendo o Juruá”, o processo de
preparação da “pela”.
Preparação da “Pela”
Antigamente
para colher a goma, cingia-se a árvore com um cipó que envolvia o tronco
obliquamente a um metro e setenta do solo até o chão onde era colocado um pote
de argila. Eram, então, feitos diversos cortes na casca acima do cipó que
aparava a seiva e a conduzia até o pote.
Este
processo de sangria exagerada, conhecida como “arrocho”, acabava matando a árvore e foi abandonado há muito tempo.
Com o passar dos anos o método tornou-se mais racional visando preservar a
integridade da “árvore da vida”. O
seringueiro parte, de seu tapiri, a cada dois ou três dias, de madrugada,
carregando todos os seus apetrechos pela “estrada”.
Este
intervalo, antigamente desrespeitado, permite à árvore se recuperar da última
sangria. O seringueiro para, em cada seringueira, e parte para a extração da
seringa que é feita através de pequenas incisões de 25 a 30 cm descendentes e
paralelas na casca da planta, que começam a uma altura de aproximadamente 2 m
acima do solo. Une depois, cada uma das extremidades inferiores dos cortes
através de um corte vertical para que o látex escorra por ele para a cuia. A
cuia é embutida na casca cortada com essa finalidade ou mediante o emprego de
argila. Os cortes são feitos, normalmente até as 11h00, em todas as árvores da
“estrada”, exceto nos meses de agosto
e setembro época da floração. Por volta do meio-dia ele começa a recolher as
cuias despejando o látex coagulado em um balde ou em um saco “encauchado” ([2]).
À tarde, por volta das 14h00, volta para o rancho, almoça e dá início à
defumação do material recolhido que leva umas duas horas para ficar pronto. O
fogo é feito debaixo da terra para que a fumaça saia por um furo ao nível do
chão. A melhor fumaça é a de coco de babaçu, mas, no Rio Purus usava-se para
esta operação os frutos da palmeira urucuri; no Rio Autaz os da palmeira
iuauaçu e no Rio Jaú e onde estas palmeiras são mais raras utilizavam-se
madeiras como a carapanaúba e a paracuúba.
A
bola de borracha (“pela”) é rodada em
volta de uma vara de aproximadamente um metro e meio de comprimento chamada “cavador”. Para iniciar a bola enrola-se
na vara um “tarugo” de goma coagulada
no qual o leite gruda facilmente. O seringueiro vai despejando o leite com uma
cuia ou uma grande colher de pau, ao mesmo tempo em que gira o “cavador”, a parte líquida se evapora
imediatamente, e forma-se uma fina camada de goma elástica, e a bola vai
engrossando, cada dia um pouco mais. Uma “pela”
pronta, depois de vários dias, pesa em média de 50 quilos, é, então, exposta ao
sol, quando toma a coloração escura e assim permanece até ser comercializada.
Látex “in natura”
Os
seringueiros transferem o látex coletado para “bombonas”, que serão enviadas para a fábrica, estes recipientes
contêm hidróxido de amônia, composto altamente tóxico, que preserva o leite,
durante alguns dias. Caso o látex seja conservado “in natura” por muito tempo depois de extraído o produto coalha
tornando-se inaproveitável tanto para a produção fabril como a artesanal.
Pouco
mais de um quilômetro depois da Ilha do Cotovelo o Rio faz uma curva abrupta à
direita permitindo com isso que ali se forme um belo banco de areia onde
estavam pousadas diversas Talha-mares ([3]).
Estávamos
em pleno Parque Estadual Guariba e daqui em diante o mapa não mostrava nenhuma
casa ou clareira onde pudéssemos acampar sem que fosse necessária uma derrubada
de mata. A última parada possível estava situada logo adiante e que acabamos
verificando se tratar de um Sítio abandonado (AC13 ‒ 08°59’58,1” S / 60°46’01,5”
O) no alto de um barranco.
O
Jeffrey não entendeu porque estávamos parando tão cedo depois de ter navegado
apenas 25 km desde o Sítio do Sr. Arão e o Dr. Marc encarregou-se de fazer as
devidas explicações. À noite o Angonese pescou um belo espécime de pirarara e
algumas piranhas e o Dr. Marc aproveitou para medir a força da mordida das
temíveis predadoras.
05.11.2014 (quarta-feira) – KM
509 – KM 544
Parti
cedo informando meus parceiros que tentaria achar um acampamento próximo à Foz
do Igarapé São Liberato, localizado no Estado do Amazonas, à uns 05 km da
Fronteira Estadual entre o MT e o AM. Eles deveriam preparar-se para navegar no
mínimo 35 km compensando o curto percurso do dia anterior. Eu esperava
encontrar na Foz do Liberato um banco de areia propício à montagem do
acampamento tendo em vista o processo natural de assoreamento provocado por um
afluente na sua Foz. O vazio demográfico impressionava, não havia viva alma por
aquelas bandas. Os barrancos e a vegetação densa não mostravam nenhum lugar
propício a um acampamento. Passei pela Foz de um Igarapé onde havia uma mesa na
barranca, aproximei-me do local e avistei as instalações de um acampamento de
pescadores dentro do Parque Estadual Guariba.
A
partir das 12h30, antes mesmo de avistar a Foz do Igarapé São Liberato (AC14 ‒
08°45’08” S / 60°50’44,9” O), eu ziguezagueava de uma margem à outra tentando,
infrutiferamente, achar um local adequado para nosso acampamento. Finalmente aproei,
por volta das 13h30, para a almejada Foz esperando ali encontrar as condições
adequadas para nossa estadia. Ao aproximar-me avistei um banco de areia quase
ao nível d’água, arvorei remo, e ergui os olhos para os céus agradecendo ao
Senhor de todos os Exércitos a bela visão.
O
idílico momento durou muito pouco pois ao volver novamente os olhos para a
terra dei de cara com a cabeça de um enorme jacaré-açu que pescava
despreocupadamente piraputangas na Boca do belo Igarapé de águas pretas. A
cabeça do enorme réptil tinha uns 70 cm, e o animal ultrapassava seguramente os
5,5 metros. Com um movimento muito rápido o gigantesco sauro lançou-se às águas
do Rio Roosevelt e desapareceu num piscar de olhos, não sei quem se assustou
mais com a presença do outro se eu ou o colossal jacaré, que o Jeffrey teima em
chamar de aligátor. Foi o único animal deste porte avistado pela equipe em todo
o Roosevelt, os demais eram pequenos e não chegavam aos dois metros de
comprimento. Na minha descida pelo Rio Solimões, ao passar pela RDS Mamirauá
observei e fotografei grande quantidade destes sauros gigantescos e muito
gordos que ultrapassavam os seis metros, felizmente era uma área pródiga em
recursos naturais e eles raramente atacavam os seres humanos. Felizmente nosso
amigo não deu mais as caras e conseguimos montar acampamento e descansar sem
grandes preocupações.
Quando
a equipe chegou eu já tinha limpado a área, montado a barraca e preparado o
local do fogo. O Cel Angonese havia pescado dois belos tucunarés mas, infelizmente,
descuidou-se por um momento e uma piranha cortou-lhe o dedo, o Dr. Marc
preparou-lhe um curativo bem apertado. Montei a barraca do amigo com o objetivo
de poupar-lhe a mão sequelada e à noite degustamos os tucunarés assados. Assim
relata o Angonese sua desdita:
Mordida da piranha: Neste dia
o calor estava muito elevado e depois de várias remadas os nossos cantis
individuais estavam precisando de reposição. Cada integrante da Expedição
portava dois cantis com capacidade de 1 litro d’água ao qual depois de cheio
com a água do Rio adicionávamos um comprimido de Clorin [comprimido de cloro].
Após 1 hora a água ficava própria para o consumo. Ao avistar um Igarapé na
margem direita do Rio Roosevelt (08°47’37,2” S /60°50’59,8” O) eu e Jeffrey
decidimos aportar para recompletar nossos cantis e fazer uma parada para
descanso. A água do Igarapé, por percorrer sempre as sombras da floresta
primária é muito mais fresca que a do Rio aberto. Junto conosco também aportou
o Dr. Marc e enquanto eu enchia os cantis e colocava o Clorin, Jeffrey indicou
onde havia visto um salto de um peixe de grande porte.
Já pensando no jantar da equipe preparei a carretilha com isca artificial
de meia água e de primeira pesquei um Tucunaré de médio porte. De vereda
pesquei vários tucunarés que foram soltos ficando com dois para nosso jantar.
No último arremesso veio fisgada uma piranha prateada de 20 cm que quando
suspensa pela isca se debateu vindo a soltar-se e mordendo meu dedo indicador
da mão direita. O corte foi profundo circundando metade do dedo com grande sangramento.
A hemorragia foi estancada com papel higiênico. Com meu Kit de primeiros
socorros o Dr. Marc fez um bom curativo. Jeffrey aproveitou para filmar e
fotografar o ataque da piranha da Amazônia. Mesmo com o dedo latejando tive que
remar até nosso local de acampamento, a Foz do Igarapé São Liberato, onde o
Coronel Hiram nos aguardava. Por estar ferido na mão direita, a equipe teve que
trabalhar na montagem do acampamento com menos um integrante. Os três montaram
o abrigo para o fogo, Coronel Hiram roçou a área, montou minha barraca e limpou
os dois tucunarés, Jefrey juntou lenha e Marc fez fogo. Fiz questão de assar
nosso jantar que foi consumido acompanhado de farinha. Os peixes eram sempre
assados com cabeça, a pedido do Coronel Hiram que as saboreava deixando apenas
os ossos. Minha preocupação era a inflamação do ferimento devido a umidade e de
sempre ter que fazer uso da mão para os trabalhos o que dificultava a
cicatrização. Fazia dois curativos por dia sempre colocando a pomada Nebacetim
o que ajudou muito na cicatrização. Ao final da Expedição o dedo estava
totalmente curado.
06.11.2014 (quinta-feira) – KM
544 – KM 586
Este seria o dia mais longo de todos, teríamos de navegar 42 km até a famosa Pousada “Pousada Rio Roosevelt”. Não havia obstáculos pelo caminho e as águas eram mais rápidas, por isso, adiantei-me para providenciar apoio para a “portagem” mecanizada na Cachoeira do Infernão evitando, quem sabe, o exaustivo carregamento do material por uma trilha de mais de um quilometro. Próximo ao nosso acampamento, à margem esquerda, passei por um confortável acampamento de apoio da Pousada Rio Roosevelt infestado por macacos que empoleirados numa enorme mangueira devoravam as frutas freneticamente.
Chegando
no Infernão, aportei numa balsa próxima ao campo de pouso da pousada, e segui
por uma bela e longa trilha até chegar à Pousada Rio Roosevelt. Contatei os
funcionários com o intuito de conseguir, além da “portagem”, o pernoite e um jantar. Rapidamente resolvemos o assunto
que era mais premente que era o da transposição – um trator tracionando um
reboque foi deslocado para montante da Cachoeira onde ficamos aguardando os
parceiros chegarem. Depois de duas horas de espera nossos novos amigos,
cansados de esperar, foram com uma voadeira ver por onde eles andavam e os
encontraram ainda a montante do Rio Madeirinha. Foi uma espera de mais de três
horas e meia. Quando chegaram, embarcamos o material e enquanto o trator se
deslocava pela trilha externa fomos pela interna destinada aos pedestres. Os
companheiros ficaram radiantes ao avistarem as luxuosas instalações,
infelizmente a diária individual de R$ 400,00 por apenas um pernoite
compeliu-nos a montar as barracas na praia. Depois de um banho fomos convidados
para jantar. O Angonese pescou uma enorme bicuda (Boulengerella maculata).
20.04.1914
‒ Relata Roosevelt ‒
20.04.1914 – Paramos na
primeira casa de comercio e compramos, é claro que por alto preço, fumo e
açúcar para os Camaradas que, aproveitando a abundância, comiam em excesso, e
os casos de doenças se tornaram mais frequentes que nunca. Na canoa de Cherrie,
só ele e o piloto podiam remar forte e seguidamente. O sortimento do
comerciante era muito reduzido, era só o que restava do sortimento comprado
havia um ano, pois os grandes batelões ainda não chegavam a tais alturas, Rio
acima.
Esperávamos encontrá-los abaixo da corredeira do “Inferno”, que vinha a seguir. O comprador de borracha leva seu
fornecimento anual de mercadorias num batelão, partindo em fevereiro e
atingindo o curso mais alto do Rio em princípios de maio, quando finda a época
das chuvas. Os grupos de seringueiros são então abastecidos, e os moradores
fixos adquirem o que necessitam e mais as coisas supérfluas de seu agrado. A
safra de castanha do Pará tinha falhado aquele ano no Rio, coisa séria para
todos os desbravadores do Sertão. Neste dia, fizemos a mais extensa jornada de
todas: 52 km. Lyra tomou a altura de nosso acampamento, que era de 08°49’ S.
Naquele lugar, o Rio, belo e majestoso, media 300 m de largura. Ficamos
numa casa abandonada. Os vestígios deixados pela enchente indicavam que as
águas haviam subido, havia apenas dois meses, até inundar a parte mais baixa da
casa. A diferença de nível das águas da época das cheias para a da estiagem é
extraordinária. (ROOSEVELT)
‒ Relata Roosevelt ‒
20.04.1914 – Tivemos, hoje,
uma jornada muito satisfatória e só uma ou duas vezes o Rio apresentou leves
ondulações nos Rápidos. Nos Rápidos Panela, conseguimos comprar algumas
bananas, cana-de-açúcar, muitos limões, mandioca, duas ou três galinhas e um
pato. Perto das 12h00, chegamos a uma loja onde compramos leite condensado,
açúcar, arroz e tabaco. Temos agora, em abundância, todos os alimentos
necessários. Nosso progresso, hoje, foi maior do que esperávamos, na verdade, o
melhor que já fizemos ‒ 52 km. O Tenente Lyra fez algumas observações astrais
para Latitude – 08°49’S. Estamos exatamente na linha de fronteira entre os
estados do Amazonas e Mato Grosso. [...] (CHERRIE)
21.04.1914
‒ Relata Rondon ‒
21.04.1914 – No dia 21
partimos do Barracão do Sr. Benevenuto e passamos pela antiga Barraca do
Bagaço, lugar aproximado do paralelo de 08°48’, por onde corre a linha
divisória de Mato Grosso e Amazonas, idealmente traçada de Santo Antônio do
Madeira à nascente do Uraguatás, afluente do Tapajós. Prosseguindo a viagem, às
16h00, avistamos, pela margem esquerda, a Foz do Madeirinha, outro afluente do
Rio Roosevelt, situado a 519.875 metros da Linha Telegráfica. No ponto em que o
vimos, tem esse tributário a largura de 80 m, e as suas águas, na estação
chuvosa, podem ser navegadas por canoas até as mais altas cachoeiras. Nele há
vários estabelecimentos de seringueiros, e os índios que o habitam, os Urumis,
são de índole branda, e aceitam o convívio dos civilizados. Um pouco abaixo da
Barra do Madeirinha existe a cachoeira chamada do Infernão, formada por um
afloramento de granito. Aí as canoas precisam ser esvaziadas e as cargas
transportadas por terra. Para facilitar esse trabalho existe na parte superior
da cachoeira um Barracão, cujo administrador foi soldado do exército. [...] As
nossas observações acusaram para a latitude o valor de 08°29’27,4” e para a
longitude, a O. do Rio, o de 17°29’39”. [...] Pernoitamos no estabelecimento do
Infernão, a 523.325 ([4])
metros do Passo da Linha Telegráfica, visto não ter sido possível varar as
canoas nessa mesma tarde. (RONDON)
‒ Relata Roosevelt ‒
21.04.1914 – Neste dia,
fizemos outro bom avanço, chegando à corredeira do “Infernão” [...] Antes de chegarmos àqueles Rápidos, havíamos parado
numa ampla e aprazível casa coberta de folhas de coqueiro, onde conseguimos uma
canoa bastante grande e espaçosa, e leve de manejar, deixando ali nossas duas
canoas menores. Acima da corredeira, entrava pela esquerda um Rio pequeno, o
Madeirinha ([5]). Os Rápidos
venciam uma diferença de nível de mais de dez metros e as águas precipitavam-se
bravias. Se fôssemos os primeiros a afrontá-las, sem dúvida, perderíamos muitos
dias para achar uma passagem, e quantos perigos e fadigas não passaríamos para fazer
descer as canoas. Mas já não éramos pioneiros exploradores de terras
desconhecidas. Era fácil andar por onde outros já definiram o caminho. Tínhamos
como guia um homem prático, e as cargas foram baldeadas por um caminho de três
quartos de quilômetro; quanto às canoas, foram descidas por canais conhecidos,
na manhã seguinte. Na base da corredeira, havia uma grande casa com um negócio,
mas, acampados acima, estavam alguns seringueiros à espera dos grandes barcos
dos “aviadores” seus chefes, para os
conduzirem para cima. Era um grupo de aventureiros audazes, que levavam uma
vida penosa, cheia de perigos e trabalhos, e em que de contínuo se defrontavam
com a morte – e que também pouco valor davam à vida dos outros. Não era pois de
admirar que, por vezes, surgissem conflitos com tribos de índios inteiramente
bravios com que entravam em contato, embora também eles tivessem no sangue boa
dose de sangue indígena. (ROOSEVELT)
‒ Relata Cherrie ‒
21.04.1914 – Tivemos outro bom
dia de navegação e esta noite estamos acampados a jusante dos Rápidos “Infernão”. Nossa carga foi toda levada
para baixo, mas as canoas irão somente amanhã. Este é um dos mais perigosos
Rápidos encontrados aqui nos trechos inferiores do Rio. A cerca de uma hora
acima do “Infernão”, trocamos as duas
das canoas que nos serviram tão bem por um barco maior. Uma das canoas tinha
sido uma das últimas fabricadas e a outra era ainda do lote original. Agora
permanecemos apenas com uma das “balsas”
que pertencia ao lote original. O Cel Roosevelt está muito bem e sua perna
melhorou consideravelmente; mas ele ainda é um homem bastante doente. Ele come
muito pouco, emagreceu tanto que suas roupas mais parecem sacos penduradas
nele. Kermit e eu compramos, na lojinha daqui, uma garrafa de vermute italiano.
Custou 10.000 Réis. Mas o preço valeu a pena! Este ponto já foi visitado por
outro engenheiro brasileiro ([6])
que determinou ser sua Latitude 08°19’ S. (CHERRIE)
Filmete
https://www.youtube.com/watch?v=OQcTRq9sYnY&list=UU49F5L3_hKG3sQKok5SYEeA&index=31
Bibliografia
CHERRIE, George
Kruck. Dark trails: Adventures of a
Naturalist ‒ USA ‒ New York ‒ G. P. Putnam’s Sons, 1930.
RONDON, Cândido
Mariano da Silva. Conferências
Realizadas nos dias 5, 7 e 9 de Outubro de 1915 pelo Sr. Coronel Cândido
Mariano da Silva Rondon no Teatro Phenix do Rio de Janeiro Sobre os Trabalhos
da Expedição Roosevelt‒Rondon e da Comissão Telegráfica ‒ Brasil ‒ Rio de
Janeiro, RJ – Tipografia do Jornal do Comércio, de Rodrigues & C., 1916.
ROOSEVELT, Theodore. Nas Selvas do Brasil ‒ Brasil ‒ São
Paulo, SP ‒ Livraria Itatiaia Editora Ltda ‒ Editora da Universidade de São
Paulo, 1976.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Camu-camu (Myrciaria dúbia): arbusto também conhecido como caçari
ou araçá encontrado na Amazônia às margens dos Rios e Lagos. A planta pode
permanecer submersa de 4 a 5 meses e frutifica, nestes locais, no período que
vai de novembro a março. Na terra firme, a floração pode ocorrer durante o ano
inteiro. Os frutos são esféricos de 01 a 03 cm de diâmetro, de coloração
arroxeada. Pesquisas determinaram que o camu-camu possui 20 vezes mais
vitamina C (ácido ascórbico) do que a acerola.
[2] Encauchado: impermeabilizado com látex.
[3] Talha-mar: conhecido também como Corta-água, Corta-mar,
Bico-rasteiro, Gaivota-de-bico-tesoura ou ainda Paaguaçu. A Talha-mar voa
rasante à água e com a parte inferior do bico (bem maior que a parte superior)
mergulhada com o objetivo de capturar pequenos peixes e crustáceos que nadam
próximos à superfície.
[4] Segundo nossas medições 586 km.
[5] Madeirinha: Foz – 08°31’05” S / 60°57’25” O.
[6] Ignacio Moerbeck.
Galeria de Imagens
* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
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Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H