Sexta-feira, 5 de novembro de 2021 - 06h00
Bagé, 05.11.2021
2° Ten FRANCISCO MARQUES DE SOUZA
Trágica foi também a morte deste bondoso camarada, cuja pureza de alma
transparece do diário de viagem que redigiu até a véspera de seu
desaparecimento. Hábil operador nos trabalhos de campo, hábil desenhista, que
vinha colaborando na nossa cartografia, enquanto se curava do impaludismo e da
leishmaniose, contraídos no Sertão, a sua simpática figura gravou-se
indelevelmente no coração de todos nós que privamos com ele. Dotado dos mais
nobres sentimentos, vitimou-o a sua própria grandeza de coração, o seu
excessivo espírito humanitário, temperado de profunda fé católica.
Num gesto admirável – que lembra muito bem o desprendimento da vida e o
superior desprezo de Jesus pela dor ou pela morte que lhe pudessem dar os seus
algozes – abrindo os braços em cruz, em face da horda de índios que o atacou,
chamando-lhes amigos e insistindo para que não lhe desferissem mais suas
flechas selvagens, dir-se-ia antes um predestinado ao martírio dos Sertões, do
que um simples ente humano... Como preito à sua memória, descrevo o que se
passou na Expedição que lhe custou a vida e a seguir transcrevo alguns tópicos
do seu diário de viagem, reproduzindo a notícia [redigida por mim] que foi
publicada pelo “Jornal do Commercio”
desta capital, em 13.09.1915, nos seguintes termos:
Podemos hoje reconstituir, com todos os pormenores, as
cenas da manhã de 29 de maio de 1915, nas margens do Rio Ananás, no momento em
que caiu vitimado pelas flechas dos índios Araras, o Tenente Marques de Souza,
da Comissão Rondon, por esta encarregado de proceder ao levantamento daquele
Rio. À frente de uma turma de dez homens, o Tenente Marques de Souza iniciara,
a 16 de abril, a exploração do Ananás e, pelo seu diário, os nossos leitores
ficarão inteirados das aventuras e peripécias dessa laboriosa e destemida
travessia, realizada por entre perigos quase intransponíveis, em que avultam
três naufrágios sofridos em pouco mais de um mês de incessantes trabalhos.
Vamos descrever as cenas de 29 de maio, valendo-nos das declarações dos
sobreviventes dessa trágica manhã, naquelas longínquas paragens do Sertão
mato-grossense. Na véspera, aportara Marques de Souza àquele ponto e aí
instalara o seu 43° acampamento. Fora a isso obrigado por se terem despedaçado
e naufragado, numa Cachoeira próxima, de três saltos, duas canoas de sua
Expedição, que com esse desastre só poderia dispor, daquele momento em diante,
de uma única embarcação. Era, pois, necessário acampar, para construir novas
canoas. Próximas da margem direita do Rio, existem duas ilhas. O Comandante
escolheu a maior, com magníficas árvores de sombra, para o seu acampamento.
A noite, como se verá adiante, pelo diário, correu sem novidade. Primeiras
horas do dia. A vida intensa do acampamento já se iniciara. O pessoal fora
convenientemente distribuído, segundo as necessidades do dia: fabricação das
canoas, pescarias, caçadas e apanhamento de castanhas.
Em torno da Ilha, onde Marques de Souza permaneceu dirigindo o serviço de
fabricação de canoas, a cargo de quatro homens, a floresta, gigantesca e
silenciosa, parecia inabitada e tranquila.
Todavia, iludindo o próprio faro do cão de guarda do
acampamento, ali estava bem perto, à distância apenas de poucos metros, tudo
vendo e tudo observando, sem despertar a menor desconfiança nem produzir o
mínimo ruído que lhe denunciasse a presença, o grupo nu de índios
desconhecidos... Os expedicionários, conforme já dissemos, dispunham de uma
única canoa, a que transportara à margem oposta os dois homens encarregados de
caçar, os quais, para isso, haviam levado as duas armas prestáveis, das poucas
que ainda restavam à coluna expedicionária. Todo o núcleo de arrojados
exploradores estava disperso. Súbito corta o ar a primeira seta, outra, mais
outra... Quer da Ilha, quer da margem, sentem-se os homens acossados pelas
taquaras selvagens.
Lançando mão da única arma de fogo que ficara no acampamento, Marques de
Souza, corajosa e abnegadamente, atira para o ar. Há um grande pânico, e a onda
silvícola retrocede indecisa. A um segundo disparo, a arma falha, os índios
recuperam a coragem e avançam novamente, desferindo flechadas a torto e a
direito. Traído pela carabina, o oficial tenta ainda um supremo recurso: abre
os braços, em atitude de amizade, e exclama: “Não me flechem!” A sua figura, porém, o seu gesto generoso não
logra convencer nem comover os aborígenes, que ali encontravam oportunidade de
vingar as perseguições com que eram vitimados, há longos anos, pelos
seringueiros sem escrúpulo.
Marques de Souza é atingido por duas flechas em pleno peito e por uma
outra no abdômen. Vendo já morto, ao seu lado, o canoeiro Tertuliano Ribeiro de
Carvalho e um outro, também bastante flechado, o oficial atira-se na água e
tenta nadar, com os seus homens, para as bandas em que se achava a canoa.
Graves eram, porém, os ferimentos recebidos, e Marques de Souza submerge
e é arrastado pela forte correnteza do Rio. E assim acabou a vida do valoroso e
digno oficial, que era um dos mais belos ornamentos da Comissão Rondon.
Morto o oficial, e morto o companheiro, recebido na canoa, prestes a
afogar-se um outro canoeiro quatro vezes flechado, o pânico invade aquela
gente, entregue a si mesma, sem uma cabeça dirigente. E assim, os que
escaparam, resolveram apressadamente abandonar aqueles sítios, apelando para o
supremo raciocínio do “salve-se quem
puder”. E, remando águas abaixo, abandonaram os dois cadáveres, bem como
mais dois companheiros que se haviam embrenhado na floresta, para os serviços
de caça. Um destes, que por feliz coincidência se encontrava próximo da margem,
atraído pelo rumor da canoa, abeira-se do Rio e consegue assim incorporar-se
aos fugitivos, dois dos quais se achavam completamente nus. O outro caçador,
porém, lá ficou, abandonado, ignorando o que se passara.
Quando o sol já ia alto, tomou tranquilamente o rumo do acampamento e
para lá se dirigiu, levando o produto de suas caçadas. Vinha espreitando, como
costumam fazer os caçadores profissionais, e, ao aproximar-se do acampamento,
ouviu um extraordinário murmúrio de vozes que em nada se assemelhavam às dos
seus companheiros. E assim avançou sutil e cauteloso. Num desvão de pedra,
acocorado, observou que o acampamento onde ele esperava encontrar o seu oficial
e os Camaradas, estava agora ocupado por numeroso grupo de índios.
Viu-os tomar o cadáver do cão de guarda e envolvê-lo na capa de borracha
de uso do oficial; viu-os quebrarem e arremessarem na água os instrumentos de
engenharia, empregados no serviço de levantamento do Rio. Do seu esconderijo,
observou tudo, e, até a hora em que o sol tranquilamente esmaecia no poente,
ali se conservou, nessa atitude perigosa e incômoda, sem nada poder fazer, em
vista da insuperável superioridade numérica do inimigo. O caçador esteve nessa
posição pelo espaço de sete horas seguidas. Já quase noite, os índios
lançaram-se ao Rio, atravessando-o a nado, em busca de suas malocas.
Foi então que o espião se ergueu e caminhou para o acampamento, onde
examinou os destroços abandonados e encontrou entre estes o diário do Tenente
Marques de Souza, preciosa relíquia, cujo original a Comissão Rondon, sábado
último, entregou à família do pranteado sertanista. Obtivemos uma cópia desse
documento, cujas primeiras páginas vamos hoje oferecer aos leitores do “Jornal do Commercio”. Marques de Souza,
diariamente, escrevia em um caderno as suas impressões e os resultados das
explorações que ia realizando.
Essas notas eram tomadas sem maiores preocupações de estilo, muitas vezes
na própria canoa, e denunciam na sua singeleza, a bondade de alma do digno
oficial, bem como a sua inquebrantável energia, a sua intemerata bravura e o
seu ilimitado zelo pelos serviços que lhe foram confiados. Juntamente com o
diário, foi arrecadado o livro de ponto do pessoal e outros pequenos objetos. No
dia seguinte, perdidas as esperanças de se encontrar com os companheiros, o
caçador resolveu partir, margeando o Rio, repousando somente durante as noites
e trazendo consigo os objetos arrecadados.
No dia 13, encontrou em uma praia o corpo de Marques de Souza. Verificou
então os três ferimentos a que já nos referimos. Com um caco de panela indígena
e um tição apagado, objetos estes achados junto do cadáver, o expedicionário
cavou na areia um túmulo e nele enterrou o seu inditoso Chefe. Desperta, sem
dúvida, um certo interesse, a figura desse caboclo, João Pereira da Cruz,
natural do Piauí, abandonado por seus companheiros, condenado a marchar através
do desconhecido, contando consigo, só consigo, para comer, dormir e
defender-se. Durante 24 dias caminhou, avançando o máximo que lhe permitiam a
fadiga e a deficiente alimentação. Ao cabo desse tempo, encontrou a primeira
barraca de seringueiros, mas aí não foi possível descansar, e outros 22 dias
teve que marchar nessa vida obrigatória de nômade, tristemente aventurosa.
Ao fim de 46 dias de dispêndio forçado de energia, caminhando Rio abaixo ao encontro de seus ingratos companheiros, chegou à barraca de um seringueiro que, compadecendo-se dele, conduziu-o em sua ubá e permitiu-lhe, assim, alcançar os fugitivos, com os quais chegou a Manaus, finalmente, cerca de dois meses depois do trágico acontecimento.
Eis alguns trechos do diário de Marques de Souza:
A 18.02.1915 – Ainda não iniciei os trabalhos. Mandei fazer as canoas. Há
dificuldade de madeiras grossas, de forma que se torna necessário desobstruir o
leito do Rio para fazer a primeira ubá. Infelizmente, tenho que permanecer
deitado, devido aos pés. Tenho suportado porque não posso sair do mosquiteiro,
devido à praga de abelhas, piuns, borrachudos e companhia.
Que martírio!! Mais ou menos 11h30. Desde Barão de Melgaço, pouco durmo.
Só concilio o sono às 24h00 ou à uma 01h00. Fico em um estado de desespero
horrível. Estou ansioso para que se inicie este meu trabalho a fim de acabá-lo
o mais breve possível. Há momentos agradáveis nesta vida de Sertão, mas, em
compensação, nos momentos de amarguras, de aborrecimento, sofre-se mais, muito
mais do que em outro qualquer lugar; talvez seja devido à falta de um consolo,
talvez devido à ausência de uma pessoa amiga.
A 22.02.1915 – Ficou pronta a primeira ubá e finalizou-se o serviço de
construção do primeiro marco, que pretendo fincar amanhã no campo do Mangabal.
O marco tem a seguinte inscrição:
Comissão Rondon, marco n° 1 – Campo do Mangabal – Amarração da Variante
dos Campos de Maria de Molina ao marco do Porto do Rio Ananás, de onde a turma
de Exploração desceu esse Rio. – Tenente Marques de Souza. 22.02.1915.
A 02.03.1915 – Que lugar horrível este! Úmido, sujo e cercado de grandes
poças de água estagnada. Amanhã vou mudar o acampamento para baixo, pois o
pessoal que está desobstruindo o Rio deu-me notícias de um bom lugar. Às 14h00,
saí com o Cândido e fomos explorar uma bela campina onde o capim gordura roxo
lastrou com uma exuberância espantosa. Ela fica a uns 300 m do local onde nos
achamos e fica a uns 50 m da margem esquerda de um Ribeirão, que suponho ser o
Lyra. É local de antiga roça de índios, pois encontramos um pé raquítico de
mandioca.
A 05.03.1915 – Mudei hoje acampamento; é o 5°. A mata é feia, suja, mas o
local é arenoso e seco. O Rio continua no mesmo. Tem recebido vários Igarapés,
mas em lugar de ficar mais largo, aprofunda-se e, em certos pontos, estreita-se
bastante. Tem “voltas”
verdadeiramente caprichosas, tornando difíceis as manobras das ubás. Felizmente
hoje, a praga das abelhas, mosquitos de mil qualidades, as terríveis mutucas e
as teimosas “Beruanhas” ([1])
não nos impacientaram. Agora, às 18h00, chove copiosamente. Que tristeza eu
sinto quando as tardes são chuvosas! O quanto me não recordo de casa, de minha
noiva e de meus amigos.
A 06.03.1915 – Às 07h00, baixei o Rio para explorá-lo antes de fazer o
levantamento, como habitualmente faço, até o ponto em que ele recebe dois
Igarapés na margem esquerda e creio que um na direita. Não se pode dizer ao
certo, pois o terreno é todo baixo e alagado. Cheguei até a pinguela de que se
servem os índios Nhambiquara, do grupo dos Cananis. À margem esquerda, ficam os
Campos dos Palmares de Maria de Molina. Procurei aí no porto um bilhete de
despedida que me deixou o Coronel Rondon, quando explorava, há dias passados,
os campos, mas não encontrei, porque, com certeza, os “Parentes” inutilizaram-no.
Ao chegar no Porto dos Cananis, lugar alto, vi as ubás sem o pessoal e
logo calculei que eles estavam com os índios. Não errei. Depois de dar dois
gritos de chamada, eles vieram com os dois índios e uma criança. Pouco
compreendi do que me disseram os índios em resposta às informações que lhes
pedi. Apenas percebi claramente, pois neste ponto explicaram bem, que o Rio
corria sempre na direção do nascente. Se assim for, quem sabe se não estarei
nas cabeceiras do Canumã? Lembrei-me logo de um fato que muito me entristeceu
na noite de 15.02.1915, fato que me narrou o Coronel Rondon, quando foi ao meu
acampamento despedir-se de mim.
UMA BATALHA ENTRE ÍNDIOS
Narrou-me ele que, subindo o alto Ji-Paraná, pouco abaixo do
ex-acampamento dos Araras, viu em uma ubá de casca de cajueiro três índios.
Aproximando-se, notou que todos três estavam feridos. Um velho, com flechada
que lhe varou o pescoço e uma outra na mão; a criança ferida em uma das mãos e
um rapaz com um ferimento no peito. Tendo feito ligeiros curativos aos feridos,
prosseguiu a viagem e, chegando ao ex-acampamento dos Araras, parou e
desembarcou. Logo ao olhar, viu que ali se tinha desenrolado uma luta terrível:
luta em que alguns indígenas se tinham empenhado com todo o seu ardor
guerreiro. No chão sobejavam os vestígios desta sangrenta luta. O capim
rasteiro todo amassado, flechas quebradas e as poças de sangue, indicavam o que
se tinha ali passado. Era horrível...
Impressionou-lhe mal este acontecimento. Ao chegar em Pimenta Bueno, pôde
então saber toda a verdade. Em Pimenta Bueno, conforme disse atrás, achava-se
uma turma de índios (descendentes dos Tupis), notando-se entre eles os de nome
Marupá, Avená e a índia Inaiôp, um velho e uma criança. O índio Marupá e a sua
mulher Inaiôp, inspiraram simpatia a todo o pessoal. Eram alegres, brincalhões
e muito unidos.
Tendo o Coronel Rondon mandado chamar os KepiKiri-uats para fazer-lhes
presentes, como faz com todos os índios, eles não quiseram ter o encontro e
preferiram então fazer uma ligeira ubá de casca de cajueiro e desceram para
esperar o Coronel Rondon.
Ao enfrentarem o Porto dos Araras, pararam e foram para terra. Aí então,
índios de sua nação, porém de grupos diferentes, agrediram-nos e travou-se a
luta sangrenta, onde pereceu o robusto e infeliz Marupá. O móvel de tudo isso
era o rapto e a posse da desditosa Inaiôp. E enquanto os sobreviventes desciam,
lacrimosos, o Ji-Paraná, a jovem índia aguardava o momento em que o mais forte
e apaixonado lhe designasse a sua sorte. Pobre Inaiôp!!
A 09.03.1915 – E este meu pobre caderno que já me acompanha de Porto
Alegre, desde o mês de agosto de 1908, abandonou-me por dois dias. Vou
transcrever as notas que tomei no dia oito: ontem pela manhã, mudando meu
acampamento para este, quando atracava no Porto dos índios, a ubá em que eu
vinha, tocando em um pau, e, devido à forte correnteza do Rio, virou e perdi
não só minhas dietas, como também miudezas, objetos e todos os fósforos.
Graças a Deus, consegui salvar os instrumentos. Estou desta forma com 80
palitos de fósforos, que consegui reunir entre todo o pessoal. Já tomei as
providências para despachar o João com um índio para Três Buritis, a fim de ver
se consigo arranjar ao menos um maço.
Neste primeiro contratempo, perdi também as notas que tomava, a minha
bolsa, tesourinha, espelho, binóculo, enfim, todas essas miudezas
indispensáveis para uma pessoa que faz Expedição. Ainda dei graças a Deus por
ter salvo a caixa com papéis da Expedição e o meu relógio, apesar do formidável
banho que tomou. Os índios estão constantemente em nosso acampamento,
despreocupados, felizes nesta vida nômade que levam.
Agora mesmo está ao meu lado um grupo de mulheres que, a todo instante,
riem-se gostosamente e conversam. Reina entre eles a alegria, enquanto em mim,
a tristeza. São as saudades dos meus, o contratempo que ontem sofri, a falta
absoluta de caça e pesca para a alimentação do pessoal, o estado do Rio, sempre
trancado de árvores, enfim, mil coisas pequeninas são os fatores principais que
concorrem para que esteja triste. Estou aflito para sair desta zona e entrar em
outra onde a mata e o Rio me possam fornecer alguma coisa.
A 11.03.1915 – Os índios não apareceram ontem, mas, em compensação,
roubaram-me dois machados, os melhores que eu tinha. No dia nove, apareceram
pela segunda vez os índios mais bonitos que vi nesta zona dos Nambiquara.
Julguei que fossem os Sabanezes. São mais claros, a pele bem avermelhada,
desempenados e com bonita musculatura. A minha primeira preocupação foi
tirar-lhes uma fotografia, mas quando armei o tripé e assentei a máquina para
pô-los em foco, levantaram-se precipitadamente, agarraram nos arcos e flechas e
as mulheres nos baquités, cheios de ananazes e saíram apressadamente, sem que
ao menos lhes pudesse tirar um instantâneo. Ficaram em nosso acampamento
(quarto) somente dois índios da aldeia que dista daqui um quilômetro. Na tarde
de ontem, fiz o levantamento expedito deste acampamento à aldeia dos índios.
Destes consegui, sem que desconfiassem, tirar três instantâneos. Aí vi um índio
bem velho, mas bem forte ainda e alegre. Às 11h00, chegou o João. Ele foi a
Três Buritis e, como não achasse o José Francisco, foi até José Bonifácio.
Felizmente, trouxe-me 17 caixas de fósforos para dois meses!!! Acampei hoje na
margem direita. É este o nosso quinto acampamento. Felizmente, o Rio está
melhor. Um pouquinho mais largo, porém bem profundo e, em lugar da mata de
charravascal ([2]),
temos taquaral.
É difícil encontrar-se lugar firme. Tudo é terreno alagado, composto de
Igarapés. Às três horas da tarde, chega uma turma de índios da maloca do
Nuchilá, em José Bonifácio, e que vieram com o João até a aldeia que fica perto
de nosso acampamento. Já me acho em nosso quinto acampamento, desde as doze e
meia da tarde. O local é alto, mas o mato é de charravascal e tabocal, sendo
que para o centro tudo é campo. (MAGALHÃES, 1942)
UM BILHETE DO CORONEL RONDON
A 15.03.1915 – Hoje completou um mês que o Coronel nos fez a visita de
despedida e, grande coincidência, o pessoal achou, quase que na mesma hora em
que ele chegou em nosso acampamento, o bilhete que ele nos deixou numa vara da
pinguela de que se servem os Cananis para atravessarem o Rio. O bilhete diz o seguinte:
(Rio Ananás).
Carumiriaru – 11.02.1915 – boa viagem aos
intrépidos exploradores do Rio Ananás ou Carumiriaru.
P. S. – Logo abaixo recebe o Ribeirão Heron.
A 17.03.1915 – Hoje cedo, mudei para o oitavo acampamento na margem
direita do porto em que está a pinguela dos Cananis, na qual o Coronel Rondon
nos deixou o bilhete de boa viagem. A balsa, graças a Deus, veio bem. Contra
minha expectativa, a balsa não trouxe toda a carga que ficou muito aumentada
com a carne do boi que matamos. Isso devido ao lastro ser feito de varas
verdes.
Mas logo que sequem, ela suportará toda a carga e cinco homens. Hoje
recebi a visita de sete índios. Nada me trouxeram e queriam “boi”. Um dentre eles era malcriado e
atrevido. Fui ríspido com ele e pouco depois foram embora. Estou ansioso para
me afastar desta antipática tribo.
A 01.05.1915 – 28° acampamento, 02h00. Saí às 07h30. Após meia hora de
viagem, ouvimos o ruído de um salto, e, com toda precaução, mandei fazer uma
exploração. Isto passou-se às 08h00, e às 09h00, sabia eu da existência de mais
dois saltos, sendo impossível a viagem pelo Rio. Na margem esquerda, onde
atracamos, é um pequeno campo limpo, e fácil nos foi transportar a carga. Acampei
logo abaixo do segundo salto, que tem 1,5 a 02 m de altura, numa praia. O Rio é
largo e o lugar belíssimo. Julgamos prosseguir a viagem, mas foi impossível. O
pessoal conseguiu, com facilidade, botar as canoas acima do segundo salto e
amanhã então tratar-se-á de rolá-las por terra. Parece incrível que, desde o
dia 10.04.1915 até hoje, não tenhamos viajado duas horas por dia! Ora são os
secos ou corredeiras, ora as cachoeiras, e os saltos, uns em seguida aos
outros. Quando acabaremos com esta luta sem fim? Teremos, depois destes dois
saltos, outros mais?
A 02.05.1915 – Só à tarde, após lutarmos o dia inteiro, é que conseguimos
varar por terra as duas ubás. Esperamos sair pela madrugada, restando saber se
nos acontecerá fazer viagem e, em uma ou duas horas, creio que havemos de
encontrar ainda um grande salto, porque até agora não tivemos peixes. Quando
chegará o dia da alegria nossa, terminando esta fastidiosa viagem?
A 03.05.1915 – Às 04h00 da madrugada, começamos a nossa lida e, às 05h30,
prosseguimos viagem. Todos estavam esperançados de não encontrarmos Cachoeira
(pois o terreno era baixo) no resto do dia. Mas eis que às 08h00 parávamos para
explorar o Rio, pois ouvimos ruído de um salto. Às 09h00 horas, era eu sabedor
de que o pessoal tinha andado mais de quilômetro e sempre em cachoeiras e
saltos. Tomamos então um paraná da margem esquerda e fizemos a descarga das
ubás. Não satisfeito, mandei o João Peru explorar o Rio enquanto que o pessoal fazia
o varadouro para a carga.
Às 12h30 chega o pessoal e logo às 13h00 o João, que me
disse ser a zona toda encachoeirada, chegando ele até um grande salto, que
calculou em 10 m de altura, tendo ouvido para baixo novo ruído de Cachoeira. Às
16h30, estava a carga em nosso 29° acampamento e o pessoal prosseguiu no pique,
além de um Igarapé de 10 m de largura. O que será de nossas ubás? Teremos que
fazer outras e abandonar estas? Amanhã resolveremos. Hoje, o Cândido e o João
mataram 13 jacutingas.
A 04.05.1915 – 30° acampamento; mudamos para este acampamento, abaixo do
tombo grande, e na margem esquerda. O nosso caminho sempre margina o Rio,
vendo-se, a cada instante, lugares pitorescos e belíssimos. Não vi ainda o
tombo grande porque aqui cheguei sentindo as pernas completamente “bambas” e doridas. O João foi em
exploração até ao último seco, que dista mais ou menos um quilômetro daqui. De
lá, depois de tudo examinar, desceu o Rio, que sempre é melhor, pois não se
ouve sinal de Cachoeira e as águas correm pouco. Amanhã iniciarei o serviço de
“varação” das ubás. Creio que vou
perdê-las, pois as passagens são dificílimas e em outros trechos não podem ser
feitas por terra, devido às pedras e ao terreno. Teremos outra demora? Só Deus
sabe quando sairemos daqui. Julgo que estes últimos tombos são no contraforte
da serra do Norte, e, se assim for, o Rio melhorará e depressa faremos a nossa
penosa viagem.
A 05.05.1915 – Varamos as ubás até o 29° acampamento, próximo do
primeiro tombo: pretendemos amanhã vará-las por terra, sendo provável demorarmo-nos
aqui alguns dias, pois temos muito serviço. A “boia” está curta e já o pessoal achava-se desanimado porque não
encontrava nem um patauá, nem castanhas. Felizmente, hoje, o Cândido, João e
Manguary encontraram bastante, que dará para abreviar-lhes a “brisa”. Hoje, às 12h30, chega do
acampamento o mestre Terto, desanimado, acobardado, lembrando a ideia de se
abandonar as ubás e fazer novas, de casca de cajueiro ou castanheira.
Fiquei aborrecido neste instante, muito mais do que habitualmente, pois
que as contrariedades nesta vida de exploração são muitas, e disse-lhe que
regressasse e que haveríamos de varar as ubás embora levássemos uns 15 dias,
como ele calculava, para botá-las abaixo do tombo grande. Ainda continuo
doente: o ventre demasiadamente inchado, duro e dolorido, as pernas fracas e
uma como que “dormência” em todo o
corpo. Quantos esforços feitos para apressar a minha viagem!!! E todos quase
frustrados. É preciso ter-se muita resignação e ânimo bem forte para não se
esmorecer.
A 06.05.1915 – Hoje pela manhã, o pessoal saiu na minha frente com ordem
minha para iniciar o varadouro, para quando eu lá chegasse, já estivesse alguma
coisa feita. Comi algumas castanhas com farinha, tomei café e segui. Ao chegar
no tombo do 29° acampamento, vi com pasmo e grande admiração, o Manguary, na
proa da ubá grande, descer o tombo pequeno e, em seguida, despenhar-se pela
Cachoeira abaixo, sempre na proa da canoa, para finalmente encalhar bem na boca
do tombo grande! Fleumaticamente, olhava com indiferentismo para o buraco como
quem mede uma pequena altura para uma queda de água, e dizia: “agora vamos desencalhar a ubá para descê-la
pelo tombo”. Depois de 15 minutos, ela precipita-se e cai, submergindo e
quebrando-se o cabo de proa: estava na margem direita do Paraná segura por ele.
Quando ela se submergiu, ele afrouxou o cabo, deixou-a descer mais e amarrou-a.
Logo após, com toda correnteza da água, dá um pulo e mergulha, conseguindo
baixar com a ubá até ficar o cabo bem esticado. Meia hora desalagava-mo-la na
margem esquerda, onde me achava com o pessoal. Depois, ele e o Aristóteles,
outro louco, disseram-me que iam descer a outra Cachoeira do Paraná para
ficarem na parte de cima do segundo tombo. Achei loucura, mas como me
garantissem não haver perigo, cedi. Às 15h30, estava ela na margem direita encalhada
na Boca do segundo tombo.
Atravessaram o Rio os dois e amanhã esperamos ser ainda bafejados por
esta “brisa” de felicidade. Talvez
amanhã estejam elas abaixo do último e mais alto tombo. Darei graças a Deus se
formos felizes nesta travessia, ansioso como estou por seguir para frente, pois
ainda continuo doente. Piorei das pernas, pois não posso fazer um passeio de 50
metros que não me sinta cansado, necessitando parar ou continuar a marcha
amparando-me nas árvores. Quando estarei ao lado dos meus? Oh! quanto não me
tenho lembrado dos meus e quantos castelos tenho eu arquitetado, para quando
chegar em casa? Será a última vez que me afasto de minha família para me meter
em empresas arriscadas como esta.
A 07.05.1915 – A febre me fez hoje uma das “raras” visitinhas, mas não me deixou prostrado como dantes. Pela
manhã saí com o pessoal para retirar a ubá grande, que tinha ficado submergida
até o meio entre as pedras de um pequeno tombo. Sentindo-me mal, voltei ao
acampamento, um pouco desanimado, por ver que se tornava difícil a retirada da
turma, pensando já numa nova demora. Às 10h00, chega o Manguary e avisa-me de
que tinham, após grande luta, retirado a ubá que se achava no tombo, acima do
nosso acampamento. Fiquei satisfeito e, às 15h30, já estava ela abaixo do porto
junto à outra. Amanhã iremos fazer remos, pois só temos três (!) Hoje não
tivemos caça e o que nos valeu foram as castanhas e o patauá ([3]).
PÁGINA ÍNTIMA
A 09.05.1915 – Só poderá compreender esta página íntima quem, como eu, se
ache isolado do mundo; só, inteiramente só, sem ter ao menos um amigo para
confiar-lhe o que sinto. Estou completamente isolado de tudo, os recursos
escassos, eu sempre doente, sofrendo a todo instante, e as dificuldades sempre
crescentes; enfim obstáculos que surgem a todo momento, impedindo a continuação
desta penosa e longa viagem. E pensar que ainda não temos meio caminho andado!
Oh! como é triste a nossa situação e muito em particular a minha. Quem como eu,
através do indiferentismo aparente, idolatra os seus, não pode deixar de, em
pleno “deserto” do Oeste brasileiro,
verter algumas lágrimas de saudade, lágrimas que exprimem também o estado
apreensivo pela saúde dos meus e pela sua felicidade. Quem há que não derrame,
como eu, estas lágrimas? E ainda quem há que não se recorde dos fatos mais
íntimos de casa? Constantemente, parece-me que estou em casa. Hoje, por
exemplo, é domingo, o dia em que todos ficam em casa. Pela manhã, pareceu-me
ver a mamã e as meninas na luta do vestuário para a missa e o Ed e o Henrique
saírem para o banho.
Depois da missa, a infalível palestra na porta da rua; enfim, seria
fastidioso enumerar tudo. E... até do Dr. Angelino, à espera do Monsenhor, o
Marinho! E são estes os fatores que concorrem para que fique com os olhos
marejados de lágrimas, e elas, umas após outras, ardentes, deslizam pela minha
face...
O que disse não denota fraqueza de ânimo, não é o medo. Apesar de doente,
o mais doente dentre todos, eu sou o mais alegre, que de quando em vez dirijo
frases de entusiasmo, dirijo um gracejo que não fere a disciplina ‒ enfim,
procuro sempre animar todos para a continuação da viagem.
A 28.05.1915 – Hoje pela manhã fomos passar as ubás. A grande, logo ao
entrar num Paraná do primeiro tombo, tomou impulso, devido à correnteza da
água, e o pessoal foi obrigado a largar o cabo, vindo entre o segundo e o
terceiro tombo, num remanso. Arrebentou toda proa, e o banco do centro
abriu-se, assim como o fundo, fazendo um pouco de água. A pequena, que se
achava já no remanso de cima do segundo tombo, também arrebatou o cabo das mãos
do pessoal e só foi vista uma vez.
Perdemos a “Fulana”
– a veterana do Ananás – que se alagou comigo nos primeiros dias de exploração,
em um porto de índios. Isto se deu às dez horas do dia e, às duas horas da
tarde, já tínhamos um belo cajueiro derrubado para fazer outra canoa. Agora
estamos sem cabo para as canoas. Enfim, Deus é grande e não nos desamparará.
São mais quatro dias perdidos! (MAGALHÃES, 1942)
Bibliografia
MAGALHÃES, Amílcar Armando
Botelho de. Impressões da Comissão
Rondon (1942) – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Companhia Editora Nacional,
1942.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Beruanha: inseto hematófago encontrado no excremento dos animais
e que transmite ao homem, entre outras doenças, o tifo e o carbúnculo.
[2] Charravascal:
região de vegetação quase impenetrável, formada de espinheiros e certas
leguminosas.
[3] Patauá (Oenocarpus bataua ou Jessenia bataua): palmeira
originária da Amazônia, cujo fruto comestível é rico em óleo.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
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Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
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