Quarta-feira, 3 de novembro de 2021 - 06h05
Bagé, 03.11.2021
ACAMPAMENTO “SETE DE SETEMBRO”
É lugar
desabitado. Aqui encontramos, de novo, a turma do Capitão Amílcar. Todos
gozavam saúde. Não houve até aí a menor pirexia ([1]). Vieram
seguindo a profilaxia pela quinina, como fora estabelecida. No acampamento do “Passo da Linha Telegráfica”; à margem
direita do Rio da Dúvida, o último de nossas marchas a cavalo, nada houve de
anormal quanto ao estado sanitário. Até este trecho da Expedição, o estado
sanitário das duas turmas foi excelente, como ficou em evidência da descrição
minuciosa do que ocorrera. Acresce que cometemos várias vezes o grande erro de
acamparmos em lugares habitados, focos de impaludismo ([2]), fato
justificável somente pelas conveniências do serviço. Além disso, submetemos os
nossos homens a marchas a pé, quotidianas, de 24 a 30 km, carregados com o que
lhes pertencia.
Apesar de
desprovidos de proteção especial para sua cabeça [uns com chapéus de palha, a
maioria, porém, com chapéus de feltro e, além de tudo, pretos], não tivemos,
quer entre os Norte-Americanos, quer entre os nossos, um só caso de insolação
ou de intermação ([3]).
No entanto,
viajamos muitos dias, desde manhã até 16h00 ou 17h00, sob Sol ardente. Outras
vezes, chuvas torrenciais nos perseguiam em marchas inteiras. Pois bem, a
despeito de tudo, os nossos homens chegavam, nos lugares em que devíamos
acampar, aptos para todos os serviços, e entregavam-se ao preparo do terreno e
à armação das barracas sem demonstrar fadiga.
Fortes e bem
nutridos, e em perfeito equilíbrio de saúde, embarcamos todos nós no “Passo” do Rio da “Dúvida”, a 27.02.1914, não obstante a longa travessia efetuada nas
condições descritas, e o grande intervalo de uma refeição ao da outra [cerca de
12 horas], determinado pelo feitio da região. Desceram o Rio da Dúvida 22
pessoas; porém o número total de pessoas de que se compunha a Expedição era de
148 homens.
RIO DA DÚVIDA
No Rio da
Dúvida, a região é completamente desabitada por civilizados, na parte alta. Ao
chegarmos ao acampamento “Carregador”,
dia 03.03.1914, o Miguel Cuiabano apresentou, novamente, febre; sua temperatura
máxima foi de 37,8° C, nesse dia.
No dia
seguinte (04.03.1914) – acampamento “Rápido”
– a temperatura elevou-se a 39,6° C, ficando completamente apiréxico ([4]) pouco
depois das 12h00 e assim se conservou até nova recaída.
A 15.03.1914,
sucumbiu, tragado pela Cachoeira “Simplício”,
o canoeiro Antônio Simplício da Silva, nosso infortunado companheiro.
A 18.03.1914,
o Sr. Kermit Roosevelt manifestou nova recaída, permanecendo febril apenas
algumas horas. Temperatura máxima 37,8° C.
No dia
seguinte (21.03.1914), estava apiréxico, muito aliviado, e, apesar de continuar
a marchar a pé, quotidianamente, no quarto dia já não manifestava mais a
referida orquite. É a segunda vez que observamos tal fato, em idênticas
circunstâncias, em indivíduos impaludados. Nesse dia apareceu-lhe forte
raquialgia ([5]),
sem elevação térmica. Esta continuou dias seguidos, porém mais atenuada.
[Medicação analgésica e aumento da dose de quinina].
De 08 a
17.04.1914, passou bem. A 18.04.1914, recaiu, indo a pirexia até 39,4° C. A
20.04.1914, novo acesso; ‒ temperatura máxima 40,4° C. ‒ Estes últimos acessos
duraram algumas horas. Devido à imperfeição com que usava a quinina, o Sr.
Kermit Roosevelt recaiu de novo, a 05.04.1914, indo a sua temperatura a 39,6°
C; 01 gr. cloridrato de quinina em duas doses.
No dia
seguinte (06.04.1914), a temperatura chegou a 38,6° C; 0,50 gr. [via gástrica],
mais 0,75 gr. [injeção intramuscular do mesmo sal].
No dia
07.04.1914, a temperatura não foi além de 37,8° C; 0,50 gr. + 0,50 gr. + 0,50
gr. de cloridrato de quinina; ‒ três doses [via gástrica].
No dia
08.04.1914, amanheceu apiréxico. Nesse dia, recusou a quinina.
A 09.04.1914,
sua temperatura se elevou, de novo, a 39,0° C; 0,50 gr. + 0,50 gr. + 0,50 gr.
de cloridrato de quinina, em injeções intramusculares, de 6 em 6 horas.
No dia
10.04.1914, sua temperatura era 37,2° C; 0,50 gr. + 0,50 gr. – mesmo sal
[injeção intramuscular].
No dia
11.04.1914, estava apiréxico e, tendo adotado nosso método, nunca mais teve
febre.
O impaludado
crônico Pedro França, apesar de todas as fadigas e privações de nossa
Expedição, só manifestou febre a 14.04.1914, dia em que sua temperatura atingiu
39,8° C. No dia seguinte (15.04.1914), Pedro França estava apiréxico.
A 18.04.1914,
Pedro França teve nova elevação térmica, cuja máxima chegou a 38,2° C. A febre
durou algumas horas. A temperatura elevou-se a 40,4° C.
A 03.04.1914,
faleceu, vitimado por hemorragia interna, determinada por ferimento por arma de
fogo, na região subclávia direita, o Cabo Manoel Vicente da Paixão. Nada nos
foi possível fazer. Quando chegamos, já o referido Cabo era cadáver.
A 14.04.1914,
o canoeiro João Soares achara, em plena floresta, um fruto semelhante em gosto
à castanha-do-Pará. Afirmara-nos ser comestível e chamar-se “abio de umbigo”. Era realmente saboroso
tal fruto. Provaram-no os Coronéis Roosevelt e Rondon, os Srs. Kermit, Cherrie,
Tenente Lyra e nós. Os que o comeram na razão de um a três [frutos] nada
sentiram de anormal; porém os que o ingeriram acima deste último número
manifestaram, horas depois, vômitos frequentes, diarreia intensa e tonturas.
Alguns ficaram tão deprimidos que precisamos empregar-lhes tônicos cardíacos. No
dia seguinte (15.04.1914), vários de nossos homens não nos podiam prestar o
menor serviço. Infelizmente, não pudemos conservar um único fruto para exames
ulteriores, nem chegamos a ver a árvore que os produzia.
Os nossos
homens tinham comido todos os frutos encontrados e nos achávamos bastante
afastados do lugar em que aquele fruto fora apanhado, no solo.
Na excursão do
Rio Roosevelt [Dúvida] até sua Foz, não deparamos polinevrites periféricas.
Além disso, não nos foi possível descobrir dermatopatias de espécie alguma. A
entidade mórbida dominante neste Rio é o impaludismo. Em 2° lugar vem a
ancilostomose ([6]).
Devido à
deficiência acentuada da alimentação, em qualidade e em quantidade, todos nós
emagrecemos sensivelmente. Alguns de nossos homens chegaram a ficar bastante
deprimidos [Souza, Miguel, Nunes]; porém, começamos a apresentar aspecto melhor
logo que fomos adquirindo alguns recursos alimentícios nas Barracas
encontradas.
ESTADO DE SAÚDE DO
CORONEL ROOSEVELT
Até o Passo em
que embarcamos no Rio da Dúvida, o Sr. Cel Roosevelt gozou a mais completa
saúde. Sua grande resistência começou a diminuir com as privações, fadigas e
preocupações morais, oriundas dos empeços ([7]) sérios
que nos ofereciam as múltiplas cachoeiras.
No dia
03.04.1914, ingerira ele, ao jantar, 0,50 gr. de cloridrato de quinina, e no
dia 04.04.1914, ao almoço, tomara sua dose matinal de 0,50 gr. do mesmo sal.
Conversávamos no nosso Bivaque, enquanto os outros companheiros tentavam passar
nossas canoas nos últimos tombos de uma Cachoeira, quando às 14h30, muito
pálido, começou a sentir fortíssimo frio.
O termômetro
acusou a temperatura de 38,0° C, na axila. Depois de resguardá-lo o melhor que
pudemos, visto já nos acharmos nessa época privados de quase tudo, inclusive de
vários medicamentos, administrei-lhe, pela via gástrica, 0,50 gr. de cloridrato
de quinina.
Uma hora
depois, tinha a temperatura de 36,8° C. Sendo impossível passarmos outra noite
naquele molesto Bivaque, logo que nossas quatro canoas se acharam carregadas,
às 17h00, levamos o Coronel Roosevelt, envolto no seu poncho impermeável, para
sua canoa e demandamos à outra margem.
Mal havíamos
partido quando, infelizmente, desabou sobre nós forte aguaceiro. Nossas canoas
não podiam suportar toldo; e o acampamento em floresta densa e cerrada não é
coisa que se pratique em poucos minutos, ainda que se possuam homens
experimentados e resistentes, como no nosso caso. Meia hora depois, estávamos
na outra margem do Rio. Achava-se agitado e delirante o nosso doente; a
temperatura atingira 39,6° C. Estabelecemos o emprego de injeção intramuscular
de cloridrato de quinina (0,50 gr.), de 6 em 6 horas. A temperatura manteve-se
elevada toda a noite, apresentando remissões de alguns décimos de grau apenas.
No dia
seguinte (05.04.1914), conservou-se febril; porém sua temperatura máxima não
ultrapassou 38,2° C, voltando, em breve trecho, a ter somente alguns décimos de
grau de elevação térmica, além da normal. Por ser igualmente nocivo esse
acampamento, num momento em que o enfermo apresentava tranquilidade completa
[37,5° C], o transportamos para outro acampamento mais tolerável, cerca de 800
m distante do primeiro. Em vista do seu grande abatimento físico, resolvêramos
levá-lo deitado em sua cama de campanha para o novo acampamento.
Logo que o Coronel Roosevelt conheceu nossa resolução, opôs tenaz resistência, declarando-nos, por fim, que
não desejaria tornar-se um peso à
nossa Expedição.
Mesmo afracado
([8]) como se
achava, iniciou a marcha para o outro acampamento, acompanhado pelo seu filho
Kermit, pelo Sr. Cherrie e por nós. Seguiam-nos sua cama e uma cadeira, ambas
de campanha.
De momento a
momento, muito fatigado, repousava, ora na cama, ora na cadeira. E assim,
corajosamente, efetuou a travessia, penosa para o seu estado de moléstia,
naquela época, e muito prostrado, mas sem alteração alguma grave, chegou ao
novo acampamento, preparado pelo Cel Rondon. Às 15h00, do dia 06.04.1914,
achava-se apiréxico e assim se manteve todo o dia; sua prostração era ainda
patente.
Estatuímos
então um grama de cloridrato de quinina por dia. Conservou-se assim apiréxico
até o aparecimento de nova enfermidade. O Coronel Roosevelt, durante duas
noites, foi cuidadosamente velado por nós. Os quartos ([9]) eram
feitos pelo Coronel Rondon, 1° Tenente Salustiano Lyra, Kermit Roosevelt e nós.
De quando em quando, nas ocasiões em que não estava de quarto, eu ia observar o
nosso ilustre enfermo.
Não pudemos
efetuar pesquisas hematológicas, como sistematicamente o fazemos, todas as
vezes que nos achamos diante de um caso febril em zona inquinada ([10]) pela
malária, por falta de material apropriado.
Mantinha-se
ainda sob a ação diária de um grama de cloridrato de quinina quando, no dia
13.04.1914, solicitou nossa atenção para a sua perna direita. Do exame
efetuado, adquirimos a convicção de tratar-se de um fleimão profundo ([11]) na
face interna [terço médio] da perna em questão, motivado naturalmente por
traumatismo sofrido nas nossas lutas com as cachoeiras. O termômetro patenteava
a temperatura 38,0° C, na ocasião do exame.
Como era
natural, o Coronel Roosevelt pediu-nos para adiarmos a intervenção cirúrgica,
na esperança que se efetuasse a cura sem a referida intervenção. Concordamos,
enunciando-lhe, porém, com clareza, a nossa descrença em tal resultado.
Empregamos a medicação paliativa a tais casos. Dia a dia, porém, agravava-se
seu estado, e sérias apreensões começaram a povoar nosso espírito.
Nesse período,
a nossa viagem era de fato muito penosa para o nosso enfermo. O Coronel
Roosevelt viajava deitado sobre latas de alimentos, revestidas apenas pelo pano
que em terra nos servia de toldo. Ainda pior do que essa situação eram os
momentos de embarque e desembarque em barrancos, quase sempre de difícil
ascensão. Apesar dos cuidados de todos nós, não podíamos fornecer mais conforto
ao Coronel Roosevelt.
Consolava-nos
somente a resignação do nosso bravo companheiro, cuja fibra de explorador se
manifestava nítida nesses momentos dolorosos. Contra o Sol ardente que nos
atormentava, defendia-se apenas com um chapéu de Sol, meio desmantelado, do
serviço de astronomia.
A
sua canoa, apesar de ser a maior, não permitia tolda ([12])
naquele trecho do Rio da Dúvida [Roosevelt]. Aceita a necessidade inadiável da
intervenção cirúrgica (16.04.1914), praticamo-la imediatamente, libertando
grande coleção purulenta. Não obstante, os vários incômodos determinados pela
natureza e modo por que viajávamos, começou logo a manifestar melhoras
sensíveis, tornando-se em breve trecho completamente apiréxico.
A 19.04.1914,
começou a queixar-se de forte dor na região glútea direita. Fizemos o que era
racional, em tal emergência, para evitar a formação de novo fleimão, mas, sem
resultado; seu estado geral favorecia-os, pareceu-nos. A essa série de
perturbações ainda se veio juntar uma dispepsia gastrointestinal ([13]). Devido
às condições do Rio e aos recursos que íamos encontrando, o Sr. Coronel
Roosevelt já viajava um pouco menos penosamente; vinha agora deitado sob
improvisada tolda e, mais tarde, em ampla canoa com toldo de madeira. Nesta
última, viajava deitado em sua cama de campanha.
Depois de
alguns dias, achava-se restabelecido da perna e começou a apresentar melhoras
no seu estado geral. Era preciso intervir no novo fleimão. Acabávamos de chegar
a Manaus, 30.04.1914. Manifestamos então a necessidade de ouvirmos a opinião de
outros médicos, desde que nos encontrávamos em Manaus.
Somente o
argumento da necessidade de uma anestesia mais perfeita conseguiu sua permissão
à vinda de outro colega. O ilustre enfermo confiava demasiado na nossa cultura
profissional.
A
01.05.1914, convidamos então o nosso ilustre colega, Dr. Madureira de Pinho,
que concordou plenamente com o nosso diagnóstico, assim como com a necessidade
da intervenção cirúrgica. Esta foi efetuada sem o menor acidente desagradável.
Poucas horas depois, partíamos para Belém do Pará. Durante sua permanência no
paquete inglês “Dunstan”,
conservamo-nos como, até então, seu único médico assistente. Gradualmente, foi
apresentando melhoras locais e gerais; e quando chegamos a Belém, encontrava-se
em estado de poder andar livremente, com a bela aparência a que todos lhe
admiravam.
Antes de
despedirmo-nos de tão bravo companheiro, fornecemos-lhe os cuidados higiênicos
que julgávamos ainda necessários à sua saúde, bem como a terapêutica a seguir,
lembrando-lhe, com especial interesse, a necessidade de usar a quinina, a bordo
e por algum tempo, mesmo depois de restituído ao seu país. Quando o Sr. Coronel
Roosevelt partiu de Belém, encontrava-se restabelecido desse último fleimão;
seu estado geral era excelente. As várias injeções que lhe praticamos, quer de
quinina, quer tônicas ou reconstituintes, foram sempre efetuadas nos membros
superiores, e jamais manifestaram o mais leve sinal de infecção.
Bibliografia
CAJAZEIRA, Dr. José Antônio. Expedição Científica Roosevelt‒Roondon
– Anexo N°6 – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia do Jornal do Comércio,
de Rodrigues & C., 1916.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Pirexia: febre.
[2] Impaludismo:
malária.
[3] Intermação: é
uma situação semelhante à insolação, mas esta é mais grave e pode levar à
morte. A intermação é causada pelo aumento da temperatura corporal e pelo mau
resfriamento do corpo, por incapacidade de se resfriar adequadamente.
[4] Apiréxico: sem
febre.
[5] Raquialgia: dor
aguda na coluna.
[6] Ancilostomose:ancilostomíase
ou amarelão.
[7] Empeços:
estorvos.
[8] Afracado: enfraquecido.
[9] Quartos: plantões.
[10] Inquinada: contaminada.
[11] Fleimão profundo: inflamação profunda.
[12] Tolda: toldo – cobertura destinada a abrigá-lo do sol e da chuva.
[13] Dispepsia gastrointestinal: indigestão.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
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