Quinta-feira, 4 de novembro de 2021 - 06h00
Bagé, 04.11.2021
(Magalhães, 1942)
PARA MIM, ESTE
HEROÍSMO É BEM MAIS NOBRE E BEM MAIS DIFÍCIL, DEMANDA MUITO MAIS ENERGIA E
TENACIDADE DO QUE O HEROÍSMO DO MOMENTO, DE DURAÇÃO EFÊMERA, COMO O QUE REQUER
O ATAQUE DE UMA TRINCHEIRA INIMIGA: A PRIMEIRA É UMA TEMERIDADE REFLETIDA; A
SEGUNDA, UMA TEMERIDADE QUE SE INCENDEIA COMO A PÓLVORA NEGRA, AO CALOR
REPENTINO DO ENTUSIASMO CONTAGIOSO DAS MASSAS, QUE ARRASTAM O HOMEM ÀS MAIORES
LOUCURAS.
LÁ É O COMANDANTE
QUE FASCINA A MASSA COM O SEU ENTUSIASMO VIRIL, AQUI A MASSA QUE ELETRIZA O
COMANDANTE, ENVOLVENDO-O NA ONDA MAGNÉTICA DOS HURRAS COMUNICATIVOS...
Ontem como Hoje...
Os
vivos são sempre, e cada vez mais, governados necessariamente pelos mortos.
(Isidore Auguste Marie François Xavier Comte)
A
história do mundo nada mais é que a biografia dos grandes homens. (Thomas
Carlyle)
A
mais autêntica homenagem que se pode prestar aos grandes vultos da Pátria é
manter viva a lembrança de seus feitos, interpretar os acontecimentos de que
participaram e recolher os dignos exemplos que nos legaram.
(Novo
Dicionário da Língua Portuguesa, Ed Nova Fronteira)
Pena
que as autoridades tupiniquins não tenham tido a capacidade de aquilatar a
relevância de nossa Descida pelo antigo Rio da Dúvida, hoje Rio Roosevelt,
desde Rondônia, atravessando o Noroeste do Mato Grosso até o Amazonas, e da
homenagem que seus expedicionários se propunham a prestar à memória de Cândido
Mariano da Silva Rondon – o Marechal da Paz e a Theodore Roosevelt – o
ex-Presidente dos EUA.
Há
exatos cem anos, estes dois grandes nomes da historiografia universal gravaram
para sempre, seus nomes no “pantheon”
dos heróis da humanidade ao realizar a épica descida por um Rio totalmente desconhecido,
permeado de diversos Saltos, Cachoeiras e Rápidos, desafiando a turbulência de
suas águas e enfrentando as agruras de um ambiente hostil, sem poder contar com
qualquer tipo de socorro externo. Os séculos correm celeremente pela nossa
querida e malfadada “Terra Brasilis”
e continuamos eternamente, marcando o passo, estagnados moralmente, “in æternum”, citados como “o país do futuro”, um porvir que cada
vez parece tornar-se mais e mais longínquo.
Um
povo que ignora o esforço titânico de seus antepassados, que é incapaz de
cultuar seus valores mais caros não conseguirá, jamais, almejar um futuro
pródigo para seus filhos. O Hino do Rio Grande do Sul traz na sua bela letra
uma insofismável verdade: “Povo que não
tem virtude / Acaba por ser escravo”. O Coronel Amílcar A. Botelho de
MAGALHÃES, há mais de setenta anos, já apontava esse equívoco cometido pelas
autoridades republicanas em relação ao próprio Rondon:
O lado moral, o lado heroico, o prisma sob o qual pudesse a nação
aquilatar das dificuldades vencidas e dos sacrifícios empregados para chegar a
essa quilometragem aritmeticamente contada e reduzida a mapas e a esquemas, são
faces da questão votadas ao silêncio, ao desprezo e quiçá mesmo ao ridículo dos
homens de gabinete,
incapazes
de aguentar alguns meses de Sertão... Dos vastos e admiráveis relatórios, que andam
por cinquenta volumes, apresentados pelo General Rondon ao Governo da
República, vede o que transcrevem, sem cor e sem entusiasmo, quase todos os
Excelentíssimos Srs. Ministros da Guerra e da Viação e Obras Públicas em seus
relatórios anuais. Através dos Relatórios
Ministeriais, a obra de Rondon é quase uma
obra de anão! (MAGALHÃES)
Heróis Anônimos
Da vontade fizeram renúncia
como da vida... Seu nome é sacrifício. POR OFÍCIO DESPREZAM A MORTE E O
SOFRIMENTO FÍSICO... A gente conhece-os por militares... por definição, o homem
da guerra é nobre. E quando ele se põe em marcha, à sua esquerda vai CORAGEM, e
à sua direita a DISCIPLINA. (Guilherme Joaquim de Moniz Barreto – Carta a El-Rei
de Portugal, 1893).
Evidentemente,
a modelar conduta de Rondon cooptou o coração e as mentes de seus jovens
Oficiais que tão galhardamente seguiram seu exemplo e, algumas vezes,
imolaram-se anonimamente a serviço da Pátria. Não atacaram o inimigo nem
tomaram de assalto suas instalações – seu foco era a Missão, estendendo linhas
telegráficas ou demarcando os Sertões de “brasis
ainda sem Brasil”; por vezes sacaram de suas armas atirando para o alto –
morreriam, e alguns pereceram, se fosse preciso, mas não matariam nunca nossos
aborígenes; foram arrojados e indômitos – enfrentaram as vicissitudes da selva
e de seus habitantes hostis; cumpriram bravamente o que lhes foi determinado
sem jamais titubear ou contestar as ordens recebidas. Novamente recorreremos a
um capítulo do livro “Impressões da
Comissão Rondon”, do Coronel Amílcar Armando Botelho de MAGALHÃES, para
apresentar alguns destes homens de fibra inquebrantável, prestando uma justa
homenagem a todos os heróis esquecidos, militares e civis, que tombaram nos “ermos sem fim” dos Sertões inóspitos,
lançando linhas telegráficas ou demarcando nossas fronteiras.
UMA PÁGINA DE SAUDADE
1° Ten JOÃO SALUSTIANO LYRA
De todos os vultos que desapareceram no decorrer dos trabalhos da
Comissão Rondon, o primeiro nesta homenagem que lhes vou prestar, com pungente
saudade, não só por justiça como pelo grau afetivo particular que me ligava a
cada um deles, cabe ao distinto companheiro 1° Ten João Salustiano Lyra,
provecto engenheiro-militar tão cedo roubado ao nosso convívio.
Vissem-no de perto como eu, robusto e jovial, modesto e sensato; cordial
como todo indivíduo dotado de espírito superior; enérgico nos momentos precisos,
sem quixotadas, mas firme, resoluto, inabalável, orientado pela bússola
invariável da dignidade e do dever, e certamente lamentariam do fundo da alma
que uma juventude tão esperançosa fosse bruscamente suprimida pelo destino! Da
sua capacidade, sempre vitoriosa a cada prova a que fora submetida, de seu
brilhante talento, de seu já vasto cabedal científico e prático, de suas
elevadas virtudes, não só o Exército como o Brasil, e quiçá a humanidade,
teriam colhido extraordinárias vantagens se bem longa houvesse sido a sua
trajetória na vida.
Digno êmulo de Rondon nas grandes explorações do Sertão, foi ele o único
a quem o notável Chefe confiou o serviço da vanguarda, que é afinal,
propriamente, toda a exploração, e requer qualidades raras de inteligência, golpe
de vista, decisão, tato especial; bastava isto para o recomendar se ele não
trouxesse, desde os bancos escolares, a tradição de um merecimento que se
destaca do comum de uma geração. Tomou parte com o General Rondon em quatro
Expedições: as três grandes Expedições de reconhecimento e exploração de 1907,
1908 e 1909, de Mato Grosso ao Amazonas, e a Expedição Científica
Roosevelt-Rondon em 1913-14. Em todas afrontara perigos e privações
inenarráveis; por muitas vezes sentira a iminência de perder a vida!
Quis um destino caprichoso, imprevisto como todos os destinos, que fosse
perder a vida num pequeno Rio (Sepotuba, afluente da margem direita do alto
Paraguai) aos 03.04.1917, quando dirigia uma turma independente de serviço
geográfico, em trabalhos de levantamento da carta de Mato Grosso.
Como a sua vida excepcional, excepcional foi também a sua morte,
envolvida no mistério da ausência de testemunhas. Estas apenas assistiram à
primeira fase do desastre que o vitimou; como desapareceu, e para sempre, o seu
corpo na profundeza das águas, ninguém o sabe... No cenário apenas quatro
protagonistas, dois que pereceram e dois que se salvaram; uma corredeira
impetuosa onde as águas borbulham e burburinham, espadanando sobre rochedos; em
torno a floresta despovoada, silenciosa e indiferente como toda massa inerte da
natureza...Nesse desvão sem glória, a mão do destino apaga facilmente uma
existência gloriosa e uma juventude viril também preciosa ‒ Lyra e Botelho.
Tem muita força a fatalidade: como conceber de outra forma que dois
grandes nadadores, de fortes músculos, acostumados a esforços mais violentos,
fossem vencidos nessa luta?! Ainda mais quando a
calma revelada pelos náufragos levou-os a
atirar para terra as cadernetas de levantamento, para que não se perdessem na corrente e com elas desaparecesse o resultado do trabalho até aí executado;
quando espontaneamente atiram-se na água, na convicção de que tal iniciativa
evitaria, como evitou, a submersão da pequena canoa em que navegavam!
Esta, flutuou realmente, depois de colher em seu bojo boa porção de
líquido, e, arrastada pela correnteza só pôde ser atracada à margem 200 m a
jusante, apesar do esforço neste sentido empregado pelo piloto. Fora lançado na
água, ao primeiro desequilíbrio da canoa, o proeiro, que nadou para a margem e
nada mais viu, porque tratara apenas de se salvar. O piloto, no último olhar
que lançou para a retaguarda, viu ainda os dois oficiais à tona da água; quando
saltou em terra e correu margem acima ao local do sinistro, nenhum vestígio
mais deles encontrou: haviam desaparecido.
Aos gritos do piloto, na esperança de que os oficiais, arrastados pela
velocidade das águas, pudessem ter saído mais abaixo, apenas o eco respondeu...
Por terra, trilhando caminhos diferentes, a tropa diariamente vinha à beira do
Rio, ao encontro da turma de levantamento, em pontos previamente determinados
pelo Chefe da Expedição ‒ Tenente Lyra. E era essa justamente a última etapa a
vencer, para amarrar o serviço a Tapirapuã, porto da margem esquerda do Sepotuba
[hoje Rio Tenente Lyra] até onde, desde a foz, a Comissão havia já executado o
levantamento desse curso de água. A última etapa correspondeu, assim, o último
dia de vida dos dois distintos oficiais. Os sobreviventes pediram socorro ao
pessoal da tropa e todos reunidos porfiaram em encontrar os corpos dos
malogrados exploradores. Ao terceiro dia de pesquisas infrutíferas, deram
sepultura ao Tenente Eduardo de Abreu Botelho, mas não foram jamais encontrados
os restos mortais do Primeiro-Tenente Lyra.
Estava em impressão nesse momento o último trabalho realizado pelo
Primeiro-Tenente Lyra, correspondente ao serviço astronômico da Expedição
Roosevelt e o Sr. General Rondon; em homenagem ao mérito e aos serviços desse
dedicado ajudante, determinou a inclusão de seu último retrato nessa publicação
[Publicação n° 52 da Comissão Rondon].
Muito teria eu a dizer se fosse possível estender mais as presentes
apreciações sobre a inconfundível personalidade do Tenente Lyra; mas, seria
descabido para o caráter deste modesto opúsculo, escrito nas horas vagas,
durante as viagens de bonde e de trem, ou enquanto esperava ser despachado nos
Ministérios e nas Repartições Públicas, onde me levavam constantemente as
funções do cargo que exerço na Comissão (Chefe do Escritório Central).
2° Ten EDUARDO DE ABREU BOTELHO
A morte deste oficial ocorreu conforme está exposto linhas antes. Seu
corpo foi encontrado em adiantado estado de putrefação, deformado pelos peixes
e tendo em uma das mãos um fragmento de cipó, a que provavelmente se agarrara
nos últimos instantes de vida, na ânsia do salvamento. A pedido de sua desolada
família, os seus restos mortais foram exumados no Sertão e conduzidos pela
Comissão ao Rio de Janeiro. Ficou-me para o resto da vida a forte impressão de
dor e de saudade inenarrável de sua velha mãe, atingida por tão prematuro
golpe: as suas lágrimas incontidas e o seu aspecto desolado, faziam-na como a
encarnação da mágoa humana, quando defrontou a primeira vez comigo, depois da
triste ocorrência que me competira comunicar-lhe muitos dias antes, por
intermédio de sua Exmª filha. Pesada incumbência essa de transmitir às
famílias, com as delicadezas que o caso requer, o desaparecimento de um
companheiro de trabalho! Várias vezes, infelizmente, tive que desempenhá-la
nestes seis anos de escritório! Do opúsculo “O desastre do Sepotuba”, cuja publicação o escritório central
autorizou (por conta dos recursos obtidos mediante subscrição aberta pelos
companheiros da Comissão, para as despesas da missa solene, em homenagem à
memória dos dois inesquecíveis mortos), transcrevo os seguintes tópicos:
Admiradores dos trabalhos patrióticos da Comissão que a sabedoria popular
designou com a mais ampla justiça ‒ Comissão Rondon ‒ resolveram publicar as
seguintes notas, obtidas no escritório central da Comissão, com os comentários
que aqui expõem, a fim de prestar uma singela mas expressiva homenagem aos dois
dignos oficiais, recentemente desaparecidos no sinistro ocorrido em águas do
Rio Sepotuba, aos 03.04.1917.
Acreditam que a simples leitura destas despretensiosas notas e dos
documentos que exibem, sirvam para despertar na mocidade brasileira o interesse
pelas coisas do Brasil, salvando a memória dos heróis protagonistas do mar da
indiferença. Ecoou dolorosamente por todo o Brasil esse desastre que teve por
teatro o extremo Sertão Noroeste de Mato Grosso e do qual foram vítimas dois
distintos oficiais do nosso Exército, ali em trabalhos da Comissão Rondon. Pela
segunda vez, a fatalidade veio desta forma cobrir de luto a brilhante e
patriótica corte de oficiais que, em torno do valoroso, experimentado e
competente emgenheiro-militar que é o Cel Rondon – o notável sertanista
patrício – tem dedicado uma parcela de vida e a totalidade de seu entusiasmo
varonil aos perigos imprevistos de explorar os nossos Sertões. Ainda ontem caía
Marques de Sousa, em pleno coração de Mato Grosso, quando explorava o então Rio
Ananás, sagrado depois com o seu heroico nome; hoje sentimo-nos abalados com o
desaparecimento de outros dois jovens oficiais, arrancados à vida pelas águas
revoltas do vertiginoso Sepotuba. Ajoelhemo-nos, com veneração máxima, diante
destes dois novos túmulos que se abrem, e apontemos à mocidade de nossa Pátria
esse nobre exemplo, estoico, sublime, com que se sagraram para sempre heróis
benditos, esses tipos de energia máscula, misto de ousadia bandeirante e de
intenções patrióticas, sempre orientadas por consciente dedicação ao serviço
público. Dois nomes mais inscreveu a história Pátria na lista dos que morreram
no cumprimento do dever, no teatro das mais arrojadas Expedições dos que
sacrificaram a vida em trabalhos úteis, colimando o progresso do país: o 1°
Ten Engenheiro-Militar João Salustiano Lyra e o 2° Ten Eduardo de Abreu
Botelho, seu digno auxiliar. E daqui fazemos um justo apelo ao Legislativo para
que, igualmente, em homenagem aos dois pujantes troncos derribados
prematuramente por cruel fatalidade, conceda uma pensão ([1])
aos herdeiros dos Ten Lyra e Botelho, tal como muito legitimamente concedeu
aos herdeiros de Marques de Souza.
A Comissão Rondon se ufana de o poder aqui
registrar, pela minha desautorizada voz. (MAGALHÃES,1942)
Os companheiros de trabalho da Comissão Rondon e os que a esta
pertenceram, mandaram celebrar, no dia 3 do corrente, uma missa no altar-mor e
duas outras nos altares laterais da suntuosa Igreja da Candelária, em homenagem
à memória de seu s bravos companheiros Tenentes Lyra e Botelho. Durante a
tocante cerimônia, a parte musical e de cânticos, organizada pela Exmª Sr.ª D.
Margarida Calasans, esposa do Dr. Armando Calasans, forneceu uma suave e
carinhosa nota artística à solenidade, despertando grande emoção na numerosa
assistência.
Fizeram-se ouvir então Madame Calasans em primeiro lugar, cantando o “Pia Jesus”; em seguida madame, Siqueira
no “Trio de Bacchi”. As duas
senhoras, esposas de dois ex-ajudantes da Comissão Rondon, bem como a senhorita
Lourdes Vallim, que cantou o “Salutaris”,
prestaram gentilmente o seu concurso à grandiosidade dessa manifestação de
sentimento, pela perda irreparável dos dois queridos mortos. O Sr. Hess Mello
executou belíssimo solo de violoncelo. Todos os acompanhamentos foram prestados
pelo exímio artista que é o maestro Figueira.
Finalmente, cabe aqui a referência à saudação que o General Rondon leu no
cemitério de S. Francisco Xavier, ao serem recolhidos os despojos do Tenente
Botelho ao jazigo perpétuo da família, saudação que já foi integralmente
transcrita no capítulo “O estilo é o
homem”. (MAGALHÃES, 1942)
Reproduzimos
abaixo a locução pronunciada por Rondon, mencionada por Magalhães no parágrafo
anterior:
Cumprimos, nós, da Comissão Telegráfica, o doloroso dever de render esta
singela homenagem à memória do saudoso Segundo-Tenente Eduardo de Abreu
Botelho. Venerar e amar a memória de quantos concorreram com uma parcela do seu
esforço para a grandeza e civilização da nossa Pátria, é um dever cívico a todo
mundo imposto. Entre os muitos que deram, com a sua vida, prova de amor, de
patriotismo, pela obra da integração do Sertão ao patrimônio nacional, é de
justiça mencionar o simpático oficial do Exército Tenente Eduardo de Abreu
Botelho.
Ainda como Alferes-aluno, ele comandou o 2° Destacamento Militar que foi
instalado na Ponte de Pedra sobre o Sacuriú-Iná, para policiar o Grande Sertão,
procurando então congregar, em núcleo indígena, os Parecis-Cachinitis do vale
desse Rio e do Anhanazá. Fundou o segundo núcleo de Utiarity, reunindo ali os
Parecis-Uaimarés, do vale do Timalatiá. Completou a instalação da estação
telegráfica de Vilhena e organizou o serviço de conservação da linha,
construída em pleno coração do Noroeste mato-grossense. Daí partiu para
cooperar na construção do Norte, servindo no setor do Madeira. A segunda fase
da sua ‒ para sempre interrompida ‒ carreira, ainda na Comissão telegráfica,
depois de um interregno de caserna, consistiu em trabalhos prestados à carta de
Mato Grosso.
O destemido oficial fez parte da turma de exploração geográfica chefiada
pelo valoroso engenheiro militar, o eternamente glorioso Primeiro-Tenente João
Salustiano Lyra, a quem a fatalidade o ligou no desespero do último momento,
para nunca mais as memórias desses dois oficiais se separarem. Foi no
desempenho deste espinhoso dever que Botelho desapareceu do cenário da intensa
vida nacional.
Os dois malogrados oficiais exploravam as cabeceiras do alteroso
Sepotuba. Haviam pesquisado todos os recantos e segredos de um dos formadores
do Rio. Desciam-no para completar o trabalho. Os perigos se sucediam de
Catadupa em Catadupa, de Salto em Salto, de Cachoeira em Cachoeira. O Rio era
um só Rápido. Após três naufrágios sucessivos, em que o Tenente Lyra, em
fragílima piroga operava, auxiliado pelo radiotelegrafista Magalhães, que não
sabia nadar, o abnegado Tenente Botelho, que então, por terra acompanhava a
turma de serviço, se oferece para substituir o telegrafista que três vezes
escapara de morrer afogado. Dolorosa fatalidade!
O bravo oficial, como o seu denodado Chefe de turma, se distinguia como
nadador. Confiantes em si mesmos, nos seus músculos bem treinados, embarcaram e
desceram o Rio os intrépidos oficiais, arrostando a fúria das correntes. Mal
haviam se desembaraçado dos primeiros tropeços da partida, foram logo
atropelados pela impetuosidade das corredeiras. O leito do Rio é cavado na
declividade dos últimos espigões das abas da serra dos Parecis e do seu grande
contraforte, a serra de Tapirapuã. Justamente por isso, naquele trecho, entre o
Salto das Nuvens e o da Felicidade, as águas se entrechocam em convulsões
desesperadas. A embarcação é assoberbada pelos furiosos embates das ondas. Era
inevitável o naufrágio.
Para impedir a perda do material, os dois oficiais lançaram-se no Rio,
vestidos e equipados como se achavam. Arriscaram a vida para salvar o serviço!
A luta foi tremenda. A canoa com seus dois tripulantes, assim aliviada, foi
repentinamente atirada, Rio abaixo, para bem longe. Os oficiais são arrebatados
pela corrente. Os tripulantes tentam salvá-los. Impossível a subida da canoa.
O Ten Lyra debatia-se na convulsão das vagas da Cachoeira. E o seu
equipamento não lhe permitia maior liberdade de ação. O intrépido Tenente
Botelho demandou a ribanceira. Alcançou-a. Na ânsia da salvação, volta a vista
para o camarada, que se debatia no infernal rebojo. Atira para a barranca a
caderneta que trazia à mão. Salva o serviço! Volta “incontinenti” para acudir o companheiro, pensando salvá-lo também.
Momento de desespero! Os dois abraçados lutam contra o ímpeto das fragorosas
ondas. Vãos esforços! A fatalidade venceu o ânimo. Os dois companheiros, num
sublime e fraternal amplexo de solidariedade humana, sumiram-se na voragem das
vagas. Abismaram-se às profundezas das locas
(furnas) da Cachoeira. Sacrificaram-se pelo serviço. Sublime dever!
Seria doloroso homenagear um destes oficiais, sem lembrar o outro. Embora
de caráter muito íntimo, como é a solenidade deste culto de família, falando de
Botelho, não poderíamos deixar de lembrar do Lyra.
Por isto solicitamos o necessário perdão, caso possam as nossas
referências profanar o sagrado remanso deste eterno jazigo, na consagração do
culto, que neste instante tributamos à memória do Tenente Eduardo de Abreu
Botelho, com profunda saudade do seu companheiro de desdita. Nobre camarada,
aqui, diante dos teus sagrados despojos estão os teus companheiros de Sertão;
os teus amigos, os teus Camaradas do Exército, a tua família, que vieram
trazer-te o último adeus. Sendo verdade que “os vivos são sempre e cada vez mais governados necessariamente pelos
mortos”, a tua memória não desaparecerá das almas dos teus companheiros, do
coração da tua família, da lembrança da sociedade que serviste. O teu nobre
exemplo será ensinamento para as gerações vindouras, que cultuarão o teu nome
pelo rasgo de altruísmo em que sepultaste a tua vida.
Morreste para salvar o companheiro. Edificante lição!
Desapareceste da ação objetiva para reviveres nas exortações subjetivas
dos que acreditam na regeneração social. A nossa saudade é sincera, como
profunda é a convicção que temos de estar trabalhando pela grandeza da
República, da qual o Exército jamais se desinteressará. A nossa gratidão se
nivela à veneração com que cultuamos os feitos dos grandes servidores. Redivivo
serás, nobre Botelho, nos corações dos teus companheiros da Comissão
Telegráfica. Cansa-se de pensar, cansa-se de agir, nunca se cansa de amar.
Que prazeres podem exceder aos da dedicação?
Não há de irrevogável na vida senão a morte.
Para bem cumprirmos o dever, precisamos ter o coração sempre cheio, mesmo
de dor, da mais amarga dor!
Bibliografia
MAGALHÃES, Amílcar Armando
Botelho de. Impressões da Comissão
Rondon (1942) – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Companhia Editora Nacional,
1942.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
·
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Galeria de Imagens
* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H