Sexta-feira, 23 de abril de 2021 - 06h02
Bagé, 23.04.2021
Navegando o Tapajós ‒ Parte XV
Cerâmica Santarena II
Cerâmica, Cultura na Ponta dos Dedos
O
texto de Angyone Costa publicado em 1945, no Volume VI dos “Anais do Museu Histórico Nacional”,
serve de referência para os amantes da arte da Cerâmica de todo o mundo. Sua
descrição sobre a manufatura dos vasos de Cerâmica é irretocável e vem sendo
reproduzida, por décadas, por pesquisadores e escritores em suas obras.
Ninguém contesta que a principal riqueza arqueológica do Brasil é a
Cerâmica indígena e que esta Cerâmica, a mais valiosa, justamente pela técnica,
beleza e perfeição de seus modelos, a da Amazônia, especialmente a de Marajó.
Não se presuma que o Sul, onde predominaram povos Tupiguarani e Gê, não tenha
contribuído com material da mesma espécie, mas a sua qualidade inferior, embora
em abundante quantidade, não permite margem a melhores afirmações. Por muitos
anos, ainda será naquele campo que os arqueólogos irão proceder a averiguações
para poder explicar algo sobre a vida antiga do Brasil.
A Cerâmica está ligada ao estudo das primitivas culturas, ao ciclo das
indústrias que o primeiro homem construiu. Corresponde ao fim do neolítico
superior e surge muito depois da grande descoberta – o fogo –, muitos anos
antes desta outra, que será o terceiro grande invento da humanidade, a roda, e
que os povos americanos não conheceram. Nasceu da necessidade de cozinhar o
alimento, quando o homem fez a experiência, levado pelo acaso, de que a argila
era argamassável com água, e sujeita ao fenômeno do endurecimento, pelo Sol ou
pelo fogo. Aperfeiçoou-se quando os imperativos da vida no clã começaram a
despertar no homem um indefinido desejo de melhora, uma insatisfação de
instintos que o levou a construir o conforto. Naquele momento, já a Cerâmica
exercia uma alta função, dela se faziam as peças para a mesa, as peças de
finalidade religiosa, as peças destinadas a enterramentos. O oleiro já não
gravava, apenas, o desenho rupestre, que aprendera a riscar com o sílex, no
teto e na parede das cavernas, nas pedras e barrancos dos caminhos.
Impressionava-se com as cores e os ruídos da natureza, e procurava distingui-los,
verificar de onde vinham.
Desta percepção resultou que os seus sentidos começaram a se apurar pela
vista e a se manifestar pela habilidade da mão e dos dedos. E a tabatinga foi o
material preciso, plástico e dúctil, que apareceu na hora exata em que os
sentidos se achavam aptos à função criadora, e surgiram os traços em reta, os
círculos, os pontos inspirados pelo tecido de certas plantas e, ainda, a
reprodução de alguns animais, que viviam nas florestas ou que o homem começava
a domesticar.
O desenho singelo adquiriu formas mais ricas, círculos, traços, que se
compõem, reproduzindo coisas ou cenas da vida, conforme o grau de sensibilidade
de cada grupo ou as circunstâncias em que a cultura se desenvolveu. A Cerâmica,
sendo uma arte inicial e muito antiga, resulta de uma técnica já hoje
perfeitamente vulgarizada. É bem a arte de utilizar a argila na confecção de
objetos, tanto de uso doméstico, como religioso, funerário ou propriamente
decorativo. Pode ser feita com pasta porosa ou pasta impermeável.
À primeira pertencem os objetos de barro cozido ([1]), as
louças vidradas, esmaltadas, faianças, etc.; à segunda, as porcelanas finas,
que supõem uma civilização histórica florescente. Ao primeiro grupo pertence a
louça dos oleiros de civilizações nascentes, a louça de Marajó, por exemplo, a
dos Tupi-Guarani do litoral, etc. Entre as tribos americanas e brasileiras em
geral, a Cerâmica era trabalho atribuído às mulheres. Sabe-se que esse costume
se transmitiu de povo a povo, chegou aos nossos dias e resistiu sempre a todas
as modificações.
Técnica dos ceramistas indígenas
Na Amazônia, os oleiros empregavam como matéria-prima a tabatinga pura ou
misturada com diferentes pós, que exerciam geralmente a ação de
desengordurantes. Esses pós eram conseguidos de diferentes maneiras, segundo o
testemunho de naturalistas e de arqueólogos que viram os nativos trabalhar.
Deles, um dos mais preciosos era o caripé, cuja fabricação Hartt se compraz em
descrever: (COSTA)
vi prepararem a casca do caripé empilhando os fragmentos e queimando-os
ao ar livre. A cinza é muito abundante e conserva a forma original dos
fragmentos. Tendo sido reduzida a pó e peneirada, é perfeitamente misturada com
o barro a que dá, quando úmido, um aspecto de plombagina escura ([2])
mas, com a ação do fogo, esta cor torna-se muito mais clara. O uso do caripé
faz a louça resistir melhor ao fogo. (HARTT)
Além do pó obtido por aquele processo, o oleiro amazonense adiciona, à
tabatinga, pós de pedra-pome, de cauxi, de escamas de pirarucu, de casco de
tartaruga, de certos cipós e até da própria louça quebrada, uso este último que
tem sido motivo de desaparecimento de peças preciosas de Cerâmica,
especialmente em Marajó. A mulher oleira, amassando esses ou alguns desses
ingredientes, conseguia dar à tabatinga uma ligação e consistência durável, sem
sacrifício da peça. O grande segredo, entretanto, não estava na escolha do
material apropriado, que este havia em abundância, e sim no seu preparo. Depois
da tabatinga amassada, era dividido em pequenos bolos, feitos a mão do tamanho
que podia comportar. Esta massa passava a ser estendida sobre uma tábua ou
esteira ou sobre o casco de tartaruga, conforme o vaso fosse de fundo chato ou
convexo. Para o seu preparo, eram elementos indispensáveis a água e fragmentos
de casco ou de cuia, para servir de alisador.
Modelado o fundo, pela compressão da massa sobra a tábua, a esteira ou
casco de tartaruga, a oleira começava a construir-lhe as paredes pelo processo
do enrolamento. Consistia o enrolamento ([3]) na
técnica de se fazerem cilindros, cordas ou torcidas de barro, com diâmetro
proporcional à grossura que se queira dar à peça, e com um comprimento
aproximado da circunferência do vaso, dispondo-as sucessivamente, sobre a
periferia do fundo, já preparado, e fazendo-as aderir de modo conveniente, pelo
achatamento ou compressão feita com os dedos. Dada a primeira volta, a oleira
dava, sempre com os mesmos cuidados, uma e outras mais, de maneira a ir
erguendo harmoniosamente as paredes do vaso, até sua final conclusão. Para impedir
as imperfeições ocorrentes em um trabalho manual desta ordem, a oleira
empregava uma cuia chata ou “cuipeua”,
molhava-a n’água e alisava com este instrumento a superfície, até conseguir um
perfeito polimento.
Para evitar o achatamento, durante a fabricação dos vasos maiores, essa
técnica tinha de ser modificada para as grandes igaçabas ([4]),
fazendo a oleira pequenas estações ([5]) na
feitura das paredes laterais, a fim de permitir o endurecimento conveniente das
partes inferiores, à proporção que a feitura do vaso ia avançando. Evita-se,
por essa maneira, o fatal achatamento de toda a peça provocado pelo peso das
cordas superiores. Armada a arquitetura do vaso, alisadas as paredes externas
com a “cuipeua” eram elas, ainda
úmidas, pulverizadas com uma fina camada de barro puro, cor de nata, parecendo
às vezes brunidas ([6])
antes de irem ao fogo, de onde resultava ficarem com uma superfície dura e
quase polida.
Antes do fogo, a que todas as peças estavam sujeitas, os vasos eram
postos lentamente a secar à sombra e, depois, ao Sol, sem o que, rachavam. O
processo da queima era a segunda e mais importante ação técnica a que se
submetia a peça. Dependia de vários cuidados, do máximo de delicadeza na
condução dos vasos ainda moles, fáceis de amassar ou achatar-se.
Efetuava-se de diferentes modos; geralmente, eram colocados distantes do
foco de calor, a fim de que fossem aquecidos gradualmente, sem contato direto
com o fogo, chama ou brasa; depois, quando já haviam adquirido, pela ação do
rescaldo, uma forte consistência, eram então postos diretamente em contato com
o fogo, ficando totalmente cozidos. Algumas tribos usavam cozer a louça a fogo
feito diretamente sobre o chão; outras faziam o uso de covas; outras, mais
adiantadas, já começavam a empregar fornos, toscos, é bem verdade, mas que
representavam uma invenção aperfeiçoada. Eles eram feitos com a colaboração da
pedra e tinham paredes de argila.
A seguir ao processo de queimação, enquanto as peças ainda estavam
quentes, usava-se empregar uma camada interior de resina de juta-sica que, com
o calor, adquiria um aspecto vítreo, embora pouco durável. Essa maneira de
trabalhar a tabatinga está perfeitamente enquadrada na técnica ensinada por
Linné, incontestavelmente a maior autoridade em Cerâmica americana. Segundo o
americanista sueco, são os seguintes os métodos adotados pelos indígenas
sul-americanos, para a fabricação de seus vasos:
1. Modelação do fundo, obtida
pela compressão de massa sobre uma esteira, tábua ou um pedaço de casco de
quelônio;
2. Enrolamento para a formação
das paredes;
3. Moldagem, pela utilização de
cestas ou formas especiais;
4. Movimento giratório,
executado pelo artista, da direita para a esquerda. (COSTA)
Centro Cultural João Fona
É
com muito pesar que verificamos o pequeno acervo de Cerâmica Santarena
existente no Centro Cultural ao mesmo tempo em que tomamos conhecimento do
tráfico criminoso destas relíquias indígenas. Pouco conhecida, grande parte de
seu acervo disperso pelo mundo inteiro, destruição de sítios arqueológicos, ela
está sendo relegada a um segundo plano pelos pesquisadores. O contrabando do
acervo é o grande responsável pela fuga desse patrimônio cultural, fruto do
descaso do poder público.
A
rica pré-história santarena poderia atrair estudiosos e turistas, mas não existem
museus especializados em arqueologia ou antropologia, não existe determinação
oficial para acompanhar e supervisionar construções na Cidade ou para coibir o
comércio ilegal do acervo tapajônico. Apenas o Centro Cultural João Fona abriga
em Santarém o pouco que ainda resta da maravilhosa Civilização Tapajônica já
extinta. Foram identificados mais de 100 sítios arqueológicos, um filão para
alunos de antropologia e arqueologia. Um final melancólico para um herança
cultural que não é apenas de Santarém ou do Brasil, mas de toda a humanidade.
Mestre Izauro do Barro
Aconselhado
por amigos, visitei o “atelier” do
Mestre Izauro, outra personagem interessante do universo cultural santareno. O
Mestre nasceu no interior de Santa Isabel do Pará, no dia 21.05.1917, e chegou
a Santarém há 80 anos, quando tinha apenas 10 anos de idade. Desde então se
dedica à arte da Cerâmica e, apesar dos seus 92 anos de idade, o ceramista
trabalha diariamente criando belas peças de Cerâmica na sua olaria instalada no
Bairro do Uruará. Suas obras já foram expostas em Manaus, São Paulo e Brasília,
e países como Itália e França.
Bibliografia
COSTA, Angyone. As Aculturações Oleiras e a Técnica da
Cerâmica na Arqueologia do Brasil – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Anais do Museu
Histórico Nacional ‒ Volume VI, 1945.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do Instituto
de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
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Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H