Segunda-feira, 5 de julho de 2021 - 10h22
Bagé, 05.07.2021
Expedição
Centenária Roosevelt-Rondon
1ª Parte – XXXII
Fazenda S. João ‒
Descalvados – II
Relatos
Pretéritos
03 a 04.01.1914
Rondon
Nesta época do ano, o
pantanal, invadido pelas águas que se estendem a perder de vista, terras a
dentro, coleando por entre os firmes coroados de verdura, apresenta-se como um
lago imenso de superfície serena em que se espelham as belíssimas palmas dos carandás
e dos acuris ([1]),
de fuste esbelto lançado para o alto. A vida de toda aquela dilatada região
concentra-se nesses encantadores refúgios, emergidos do seio da portentosa
inundação: na espessura dos seus arvoredos, vagueia o jaguar famulento ([2]),
bramindo sob o aguilhão do desejo sexual, que o faz, mais do que nunca,
temeroso, enquanto pelas ramadas, saltam os grotescos bugios ou pousam os
negros bandos de biguás, em contraste com as garças de penas alvíssimas. O
romper do dia, tingindo o céu as terras e o longuíssimo lençol d’água de mil
cores cambiantes, pondo nuns lugares sombras profundas e noutros claridades
resplandecentes, debruando a brancura láctea de uma nuvem com a vermelhidão
mordente de uma brasa, marchetando d’ouro as ondas esmeraldinas da folhagem,
arrebata-nos a imaginação e atira-nos para fora do círculo em que vivemos
fechados pelo jogo regular dos sentidos e da reflexão. O Sr. Roosevelt
extasiava-se diante do maravilhoso espetáculo e declara-nos que nunca em sua
vida experimentara emoção igual à que sentia vendo aqueles quadros da natureza
da nossa Pátria. (RONDON)
Pereira
da Cunha
03.01.1914: No dia seguinte soube que, durante a noite, havíamos parado no lugar
denominado Acurizal, onde recebemos o Tenente Vieira de Mello, comandante do
destacamento que acompanharia a Expedição, oficial que, além de trazer os
cronômetros da Comissão, trouxera também uma carta para mim. Tratava-se, nada
mais nada menos, do meu regresso ao Ladário, para assumir o comando da nossa
Força Naval, regresso que deveria ser urgente e, se possível, feito na condução
que era portadora da carta. Ora, já tendo a lancha regressado à Corumbá, havia
dois dias, e não havendo meio de transporte para mim, só me restava um recurso,
continuar a viagem até S. Luiz de Cáceres, agora nosso ponto de destino. Assim
fiz, e agora subindo o Rio entre suas margens chatas, baixas, ladeadas sempre
de renques de “aguapés”, tínhamos a
impressão, quase de navegar em uma vereda ([3])
fluída através de uma baixa campina, pois, já tínhamos deixado por nosso
bombordo, na margem direita, as montanhas que formam os fundos das grandes
Baías de Mandioré ([4]) e
de Guaíba, esta tão vasta talvez como a nossa Guanabara, e onde, ao longe, se
avistava um dos marcos divisórios dos nossos limites com a Bolívia. Pelas 15h00
ou 16h00, o nosso “Nyoac” atracou à
barranca para limpar fogos; a temperatura desse dia, das mais altas que
suportamos, era talvez de mais de 40 graus centígrados à sombra, e o Sol,
causticante como fogo, elevava essa temperatura a muito mais de 60 graus! Como
o navio atracasse, todos nós pensamos em aproveitar a ocasião para caçar; eu,
porém, refletidamente considerando a ardência do Sol e a quase nenhuma
probabilidade de êxito, deixei-me ficar a bordo, “gozando do fresco” que nos proporcionava o abrigo da coberta. Quase
todos saltaram, e até mesmo o louro e vermelho comandante do navio, resolvendo
nesse dia cultuar Santo Humberto ([5]),
saltou com o Dr. Soledade.
Roosevelt, mal transpôs a
prancha que se lançava para o barranco, desistiu e achou que mais valia seguir
o bom exemplo do “rusé commandant”.
Cerca de cinco minutos depois, o robusto Dr. Soledade com a roupa encharcada de
suor, e o Comandante do navio transformado em lagosta cozida, regressaram
exaustos e abatidos pelo Sol realmente insuportável. Todos regressaram, enfim,
salvo Kermit que, ao que parecia, não sofria as influências da canícula. Já ali
estávamos, havia mais de uma hora, e, como estivessem limpos os fogos, e Kermit
não aparecesse, fizemos apitar o navio para prevenir de que estávamos prontos. O
nosso sinal foi compreendido, e não tardou que víssemos aparecer no barranco o
infatigável companheiro, tal como se tivesse saído de um banho, tão encharcadas
de suor estavam as suas roupas. Quando Kermit apareceu nós estávamos sentados à
mesa do lanche, e qual não foi a nossa surpresa vendo que, desprezando a
prancha, o nosso Kermit atirou-se ao Rio para galgar o navio.
Vencendo a distância,
aliás curta, que nos separava de terra, o nosso bom companheiro, agora
encharcado d’água, sentou-se fleumaticamente à mesa, fez lanche em nossa
companhia, e só depois disso foi mudar a roupa. A viagem, nesse trecho de Rio,
talvez se tornasse monótona se não fosse a agradável palestra dos bons
companheiros, tranquila, porém, não poderia ela ser, porque, como se não
bastassem os mosquitos, bandos de mutucas [enormes moscas ouro-negras de ferrão
acerado ([6])]
perseguiram-nos terríveis e importunos, sem nos dar um instante de sossego, e
já era com impaciência e ânsia que esperávamos a hora dos mosquitos, isto é, a
noite, único remédio contra as terríveis mutucas. Os fotógrafos não tinham
agora muito que fazer, ainda assim, e talvez por isso, conseguiram uma
fotografia original. Roosevelt não se conformava com a dormida em rede, e nem
mesmo dela se utilizava para repousar ou ler durante o dia, mas, lá uma vez, ou
por não ter à mão uma cadeira, ou porque quisesse ensaiar, deitou-se a ler, e
foi quanto bastou para ser apanhado pelas objetivas. Outra vez, estando o
Ex-presidente dos Estados Unidos, de agulha em punho, a remendar as calças,
corri para a minha “Goerz” ([7]),
mas não fui bastante feliz para ter essa interessante prova fotográfica das
habilidades do notável estadista.
Durante as refeições as
nossas palestras continuavam sempre e, certa ocasião, dizendo o nosso hóspede
que não dava importância alguma à questão de tarifas, que tanta celeuma sempre
levantava, objetei-lhe que, de fato, isso visava os interesses internacionais,
o meu interlocutor, porém, que havia julgado a questão sob um ponto de vista
mais geral, respondeu-me com esta pergunta:
“acredita que a Inglaterra livre cambista, e a Alemanha protecionista,
teriam deixado de atingir o ponto em que estão, se tivessem trocado os
sistemas!”.
E, continuando no seu
ponto de vista, Roosevelt acrescentou:
“há uma série de questões teoricamente muito importantes, que apaixonam
as massas e até os dirigentes, que são mesmo, às vezes, causa de lutas
desastradas, e que, na prática, não têm a menor importância, isto é, que a
adoção do método preconizado por um ou por outro é de resultado perfeitamente
idêntico. O direito de voto às mulheres, por exemplo, é uma questão que tem
sido muito debatida em toda a parte, pois bem, nos Estados Unidos, nós temos
Estados em que as mulheres têm os mesmos direitos políticos do que o homem, ao
passo que, em outros Estados, esses direitos não são a elas extensivos. Ora,
não pode haver um melhor campo de observação do que esse, oferecido dentro de
um mesmo país, de uma mesma raça e sob a influência, portanto, dos mesmos
hábitos e costumes. Pois bem: quer num, quer noutro caso, as mulheres que sabem
ter e manter um lar e o fazem igualmente com qualquer dos dois sistemas, ao
passo que as transviadas da missão de mães de família, que não sabem e não
querem ser procriadoras e educadoras de seus filhos, também não mudam de
propósito, quer tenham, quer não tenham os direitos políticos, do homem”. “Um dos problemas mais sérios que eu vejo”,
dizia Roosevelt, “é o do capital; e uma
das coisas que eu mais admiro em nosso país é a ausência de anarquistas”.
[...]
Retorqui-lhe dizendo que
julgava a inexistência de anarquistas no Brasil proveniente do que imputavam
como um dos nossos principais defeitos, isto é, a nossa desmedida liberalidade
ou nenhuma ideia de economia.
Com o nosso sistema de gastar
tudo, sem pensarmos em juntar reservas, e com a nossa natural generosidade, o
capital subdivide-se, espalha-se, e desaparecem a fome e as necessidades
prementes, que são os alicerces do anarquismo. Se, em vez disso, fosse a índole
do povo a causadora desse fenômeno que, com justa razão, entusiasmava
Roosevelt, os maus elementos, uma vez importados, germinariam e progrediriam;
entretanto, a planta ruim, transportada para o nosso solo bom e fértil, logo se
transforma, pois que não mais mergulha as suas raízes na dura necessidade,
lugar, aliás, onde florescem os grandes capitães. De pleno acordo, deixamos a
mesa de jantar.
04.01.1914: Só no dia seguinte, cedo, antes das 6 da manhã, nos encontrávamos, ao
enfrentar com o nosso “Nyoac” um
aldeamento de Guatós, esses grandes canoeiros e caçadores. Um velho e um
rapazinho, cada um em sua canoa, correram para o navio assim que o viram
parado, e aquele, já viciado pela civilização,
e já também
conhecedor e escravo desse grande flagelo que é o
álcool, pedia instantemente que recebêssemos um remo em troca de meia garrafa de cachaça.
Mas, seguindo adiante, deixamos
sem cachaça o inconsolável Guató, destinado, como
a sua grande tribo, a rápido desaparecimento.
Esses índios são grandes
caçadores de onças, e, em tais caçadas, adotam um processo que tem tanto de
original quanto de ardiloso e arrojado: aproveitando que o pantanal cheio
transforme alguns capões de mato em ilhas, o nosso Guató observa em qual destes
terá ficado uma onça ciosa de amores ou de combates, e, conforme a época, de um
outro capão julgado próprio, o ardiloso Guató provoca o animal ao combate, ou o
atrai aos desejos, imitando o urro que for conveniente; a mulher do índio
acompanha-o na perigosa empresa, e quando a onça, iludida pelo arremedo do índio,
procura a nado ganhar o capão de onde a chamam, o casal de índios lança-se na
canoa ao encontro da fera, e o vasto e deserto pantanal é testemunho desse
combate em que, o índio armado de zagaia e a índia de espingarda, ou flecha,
nem sempre levam de vencida o nosso valente felino, que tem na água quase que a
mesma assombrosa agilidade com que em terra faz prodígios.
Já deixamos para bem longe
o pequeno aldeamento de Guatós, subimos sempre, e agora, quase sem aguapés em
suas margens, o Rio corre entre imensas campinas cobertas de macega alta onde,
de longe em longe, rareiam pequenas ilhas de vegetação mais alta, ou pequenos
capões.
Nessas vastas planícies
abunda o nosso belo galheiro, o cervo, e já viramos, distante, o majestoso
galopar desse garboso animal; no dia seguinte, porém, tão próximos apareceram
três desses cervos que, sem refletir na maldade e só ouvindo o instinto de
caçador, corri ao meu mosquetão Mauser e alvejei o mais belo exemplar.
O nosso vaporzinho
trepidava bastante, o que muito dificultou a precisão do tiro, e, por isso ou
porque tivesse mal visado, o caso é que, infelizmente, errei o tiro, e os três
cervos, galopando velozes e soberbos, desapareceram na campina imensa. (CUNHA)
Filmete
https://www.youtube.com/watch?v=_fCg7y98JIU
https://www.youtube.com/watch?v=GPT99KsJjD8&t=38s
https://www.youtube.com/watch?v=z6sVrma9a24
https://www.youtube.com/watch?v=zlPfAYWRGpA&t=18s
Bibliografia
CUNHA, Comandante Heitor Xavier Pereira da. Viagens e Caçadas em Mato Grosso: Três Semanas em Companhia de Th.
Roosevelt – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Livraria Francisco Alves, 1922.
RONDON, Cândido Mariano da Silva.
Conferências Realizadas nos dias 5, 7 e 9 de Outubro de 1915 pelo Sr. Coronel
Cândido Mariano da Silva Rondon no Teatro Phenix do Rio de Janeiro Sobre os
Trabalhos da Expedição Roosevelt-Rondon e da Comissão Telegráfica ‒ Brasil
‒ Rio de Janeiro, RJ – Tipografia do Jornal do Comércio, de Rodrigues & C.,
1916.
Solicito
Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro,
Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante,
Historiador, Escritor e Colunista;
·
Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
·
Ex-Professor do
Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
·
Ex-Pesquisador do
Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
·
Ex-Presidente do
Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
·
Ex-Membro do 4°
Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
·
Presidente da Sociedade
de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
·
Membro da Academia de
História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
·
Membro do Instituto
de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
·
Membro da Academia de
Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
·
Membro da Academia
Vilhenense de Letras (AVL – RO);
·
Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
·
Colaborador Emérito
da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
·
Colaborador Emérito
da Liga de Defesa Nacional (LDN).
·
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] O Acuri (Scheelea phalerata) é uma palmeira da família Arecaceae
também conhecido como Bacuri, Auacuri , Cabeçudo , Coqueiro-acuri , Guacuri e
Ganguri.
[2] Famulento: esfomeado.
[3] Vereda:
trilha.
[4] Mandioré: lagoa
de 25 km de comprimento por 10,5 km de largura com uma área de 152 km² dos
quais 90 pertencem à Bolívia (município de Puerto Quijarro) e 62 ao Brasil (município
de Corumbá).
[5] Santo
Humberto: patrono dos caçadores.
[6] Acerado:
aguçado.
[7] A C. P. Goerz,
fundada em 1886, por Carl Paul Goerz, produzia instrumentos matemáticos, e a
partir de 1887, câmeras fotográficas.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H