Quarta-feira, 7 de julho de 2021 - 06h01
Bagé, 07.07.2021
Expedição Centenária Roosevelt-Rondon
1ª Parte – XXXIV
Descalvados – I
Vamos
repercutir o excelente capítulo intitulado “Descalvados:
uma Fábrica na Fronteira Oeste” da lavra do professor Domingos Sávio da
Cunha Garcia retirado da obra “Território
e Negócios na ‘Era dos Impérios’: Os Belgas na Fronteira Oeste do Brasil”
editado pela Fundação Alexandre de Gusmão em 2009, para que se possa ter uma
real ideia da história daquele formidável empreendimento plantado nos ermos dos
sem fim pantaneiros.
Descalvados:
uma Fábrica na Fronteira Oeste
O período que se abriu após a Guerra do Paraguai foi marcado pelas
dificuldades criadas pela destruição provocadas pela guerra, que atingiu
principalmente a população pobre de Mato Grosso. [...]
Assim que a guerra terminou, no entanto, novas possibilidades econômicas
se abriram para a Província, estimuladas por diversos fatores. A região
beneficiava-se do aumento da demanda de produtos de origem primária no comércio
internacional. [...]
No plano comercial, a reabertura da navegação do Rio Paraguai e a consequente
retomada do fluxo de mercadorias que havia se iniciado antes da guerra, também
permitiram o rápido desenvolvimento de alguns setores da economia da Província.
Entre esses setores estava a pecuária, que se beneficiou do prolongamento
em direção a Mato Grosso do seu crescimento na região do Prata, bem como de um
processo inicial de industrialização de derivados de carne bovina que se
desenvolvia naquela região e que se destinava ao mercado internacional.
Esse processo incentivou o desenvolvimento de charqueadas e fazendas de
criação de gado semelhantes àquelas que se espalhavam pela região platina e que
encontrou em Mato Grosso as facilidades proporcionadas pela existência de
grandes áreas ainda não ocupadas e propícias para a criação de gado de forma
extensiva. O desenvolvimento dessas atividades não atraía apenas o capital
interno. Elas abriam novas oportunidades para o capital estrangeiro, que já
operava no comércio e na extração da borracha em Mato Grosso e que passou a ter
na pecuária mais uma possibilidade de investimentos, associando interesses
locais ligados ao comércio de gado e a produção de carne e seus derivados.
Dessa convergência de fatores irá surgir Descalvados, que se transformará
no maior empreendimento agroindustrial de Mato Grosso naquele período,
tornando-se também uma referência da presença estrangeira na fronteira oeste do
Brasil entre as décadas de 1880 e 1910. O início desse empreendimento liga-se
ao desenvolvimento da pecuária ao longo do século XIX em Mato Grosso, em grandes
fazendas de criação de gado.
Entre essas fazendas, a que mais se destacava era a fazenda Jacobina,
localizada a cerca de seis léguas de Vila Maria, atual Cáceres, na estrada que
ligava essa cidade a Cuiabá. Jacobina foi fundada por portugueses ainda no período
colonial e desenvolveu-se como centro de criação de gado e produção de
alimentos.
No início do século XIX Jacobina já era a mais importante fazenda da
Província e seu proprietário foi progressivamente adquirindo mais e mais
terras, a ponto de dizer aos integrantes da Expedição Langsdorf que possuía
mais terras que o Rei de Portugal.
Quando morreu o seu fundador, Leonardo Soares de Souza, a fazenda
Jacobina passou à sua filha única e herdeira, Maria Josepha de Jesus Leite, que
havia se casado, no ano de 1813, com o Coronel de milícias de Portugal, João
Pereira Leite, então servindo no Comando do Distrito Militar de Vila Maria.
Desse casamento nasceram 10 filhos, antes que João Pereira Leite e sua sogra
falecessem, no ano de 1833.
A partir daí a administração da Fazenda Jacobina e dos negócios da
família passaram às mãos de Maria Josepha e, principalmente, de seu segundo
filho, João Carlos Pereira Leite, conhecido como “Major João Carlos Pereira
Leite”, que progressivamente ascendeu à chefia da família, assim permanecendo
até sua morte, em 1880.
As terras da Jacobina se estendiam em um vasto território, desde as
regiões altas do Oeste de Mato Grosso até o Pantanal Norte, na fronteira com a
Bolívia, ultrapassando o Rio Paraguai no sentido Leste-oeste.
A parte das terras da fazenda Jacobina que ficava na margem direita do
Rio Paraguai, até a fronteira natural com a Bolívia, no Pantanal Norte, era
formada por campos, entremeados por pequenos capões de mata fechada. Nessa
região o Major João Carlos Pereira Leite tomou posse de um conjunto de
sesmarias onde teve grande desenvolvimento a criação de gado, que aí se
espalhou rapidamente.
Dessas sesmarias, a mais importante foi aquela a que se deu
o nome de “Fazenda do Cambará”, que
centralizava a criação de gado na parte da antiga Jacobina. No início da década
de 60 do século XIX, já havia mais de 20 mil cabeças de gado na fazenda do
Cambará.
Mais ao Sul dessa Fazenda, também na margem direita do Rio Paraguai,
havia uma região de terras altas chamada “Escalvado”,
onde, ainda no período colonial, costumeiramente se instalava uma Fortificação
Militar para impedir o avanço dos espanhóis, em direção à Vila Maria e Vila
Bella.
Essa região alta foi progressivamente mudando o nome para Descalvados [provavelmente
“do Escalvado” e depois “D’Escalvado”, antes de Descalvados],
assim que foi sendo ocupada pelo Major João Carlos Pereira Leite, como uma das
suas sesmarias de criação de gado.
Durante a Guerra do Paraguai o Major João Carlos Pereira Leite participou
das tentativas de expulsão dos paraguaios do Sul de Mato Grosso. Mas seu
principal feito durante a guerra foi impedir a passagem pela fazenda Jacobina
de pedestres vindos de Cuiabá, no período vivendo grande epidemia de varíola,
contraída por soldados que haviam participado da primeira tentativa de expulsão
dos paraguaios de Corumbá. Essa sua decisão teria evitado que a epidemia se
alastrasse por Vila Maria e pela região Oeste de Mato Grosso.
Terminada a Guerra do Paraguai, afluiu para Mato Grosso importante leva
de argentinos, uruguaios e europeus, principalmente aqueles que atuavam como
fornecedores das tropas e que haviam acumulado certo montante de capital na
atividade comercial.
Entre esses estrangeiros estava o argentino Rafael Del Sar que comprou,
em 1876, a sesmaria de Descalvados do Major João Carlos Pereira Leite e montou
nela uma charqueada rudimentar, seguindo o modelo daquelas que se desenvolviam
em grande número na região platina.
A venda da sesmaria de Descalvados para Rafael Del Sar e a sua
transformação em uma charqueada foi um bom negócio para o Major João Carlos
Pereira Leite. Ele passou a ter um mercado próximo para seu gado, sem precisar
levá-lo em longas caminhadas para ser vendido na região de Uberaba, na
Província de Minas Gerais, como fazia até aquele momento. Por outro lado, para
Rafael Del Sar a vantagem estava na matéria prima, próxima e barata.
Ao mesmo tempo em que fornecia o gado que Rafael Del Sar abatia na sua
charqueada em Descalvados, o major João Carlos Pereira Leite procurava
desenvolver a sua criação de gado, importando para isso cavalos do Paraguai.
Essa importação era necessária para suprir as suas fazendas na região, naquele
período já infestada por uma doença que atacava o rebanho cavalar, dizimando-o
e impedindo que o gado fosse manejado, o que, com o tempo, tornava-o bravio e
de difícil abate. Rafael Del Sar também importava cavalos e utensílios
utilizados nas Charqueadas de Descalvados.
O Major João Carlos Pereira Leite morreu em outubro de 1880 e seus bens
foram a leilão, em hasta pública. A totalidade de suas terras, localizadas na
margem direita do Rio Paraguai, foi arrematada por um uruguaio, Jaime Cibils
Buxareo. Junto com essas terras, Buxareo também comprou a charqueada de
Descalvados, pertencente a Rafael Del Sar. Falemos um pouco de Buxareo e suas
atividades.
Jaime Cibils Buxareo era uruguaio, descendente de famílias de imigrantes
catalães, que vieram para o Uruguai na primeira metade do século XIX. Da união
de duas dessas famílias, os Cibils e os Buxareo, resultou o casamento de Jaime
Cibils e Plácida Buxareo.
Jaime Cibils construiu fortuna em Montevidéu, dedicando-se a atividades
mercantis nas áreas de saladeira, bancária e armadora, vindo a morrer muito
rico, em 1888. De seu casamento resultaram 13 filhos, dos quais Jaime Cibils
Buxareo era o primogênito.
Jaime Cibils Buxareo acompanhou o pai em suas atividades mercantis e se
casou em 1862 com Florentina de las Carreras Moore, passando a viver em Buenos
Aires. Ele havia dedicado largo período de seu trabalho às atividades de
Saladeria no Uruguai, atividades que tiveram grande desenvolvimento naquele
país ao longo da primeira metade do século XIX, quando o Uruguai tornou-se
grande fornecedor de charque para o Brasil e para Cuba. Por volta dos anos 70
do século XIX, somente duas empresas produziam carnes conservadas e extrato de
carne no Uruguai: “The Liebig’s Company
Extract of Meat” e “La Trinidad”.
Nas décadas de 70 e 80 começaram a aparecer as novas tecnologias de
conservação de carne, por resfriamento ou congelamento, abrindo novas
possibilidades de exportação para o mercado europeu. Mas até esse momento era
dominante a Saladeria, dedicada à produção de charque. Entre as grandes
empresas desse setor estava o Saladeiro de Jaime Cibils, que havia inclusive
expandido as suas atividades, adquirindo novas instalações nas cercanias de
Montevidéu e ampliando-as.
O fim da escravidão ensejava perspectivas negativas em relação às
exportações para o Brasil e para Cuba o que levou Jaime Cibils e seu filho a
procurarem novas possibilidades de expansão de suas atividades. Tinham como
objetivo não só diversificar e modernizar a produção, mas também buscar
alternativa para o fornecimento do gado a ser abatido em regiões mais afastadas
de Montevidéu, reforçando o tráfico de mercadorias pelo porto da capital
uruguaia, naquele momento já sofrendo forte concorrência do porto de Buenos
Aires, mais moderno e em franco desenvolvimento.
Agindo nessa direção, construíram uma fábrica de extrato de carne,
charque e derivados bovinos em Salto, às margens do Rio Uruguai, em 1875, a
partir de um antigo Saladeiro. Essa fábrica já adotava modernos métodos de
produção que era em grande parte destinada à exportação. Jaime Cibils havia
feito a opção pela produção por métodos que não utilizassem o congelamento da
carne. Na direção de sua nova unidade de produção estava o químico francês Dr.
Emilio Soulez.
A partir daí Jaime Cibils procurou novos centros fornecedores de gado,
que garantissem a qualidade adequada para o produto que queria fabricar.
Necessitava de gado mais magro e mais rústico. É então que surge a
possibilidade de arrematar as terras do Major João Carlos Pereira Leite, em
Mato Grosso, que, em 1881, iriam a leilão em hasta pública. O conhecimento
desse leilão por Jaime Cibils e seu filho, Jaime Cibils Buxareo, demonstra a
intensa circulação de informações, de possibilidades de negócios e de
transações comerciais que existia nesse período, entre a então Província de
Mato Grosso e os países da região do Prata, que estava entrando em rápido
desenvolvimento econômico.
Esse processo era facilitado pela crescente presença de estrangeiros nas
atividades comerciais de Mato Grosso, que também experimentou grande incremento
no período posterior à Guerra do Paraguai, como observamos. Jaime Cibils
Buxareo se dirige então para Mato Grosso acompanhado do químico Dr. Emilio
Soulez, na perspectiva de participar do leilão das terras do Major João Carlos
Pereira Leite. O empreendimento que haveria de iniciar em Mato Grosso era de
retorno arriscado, mas, segundo Jaime Cibils Buxareo, o capital investido
poderia ser recompensado com um produto de boa qualidade, que encontraria
mercado na Europa.
A viagem de Jaime Cibils Buxareo até Cáceres [que então se chamava Vila
Maria], o arremate das terras do espólio do Major João Carlos Pereira Leite, o
reconhecimento que empreendeu dos campos da Fazenda do Cambará, onde
Descalvados era uma das sesmarias, bem como os planos que começou a fazer para
o seu novo empreendimento, estão em um diário que escreveu durante a sua viagem
e primeira estadia em Mato Grosso. (CUNHA GARCIA)
Filmete
https://www.youtube.com/watch?v=_fCg7y98JIU
https://www.youtube.com/watch?v=GPT99KsJjD8&t=38s
https://www.youtube.com/watch?v=z6sVrma9a24
https://www.youtube.com/watch?v=zlPfAYWRGpA&t=18s
Bibliografia
CUNHA GARCIA, Domingos Sávio
Da. Território e Negócios na “Era dos
Impérios”: Os Belgas na Fronteira Oeste do Brasil – Descalvados: uma Fábrica na
Fronteira Oeste – Brasil – Brasília, DF – Fundação Alexandre de Gusmão,
2009.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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