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Hiram Reis e Silva

A Terceira Margem – Parte CCLIV - Expedição Centenária Roosevelt-Rondon 1ª Parte – XXXIV


Descalvados (g1.globo.com) - Gente de Opinião
Descalvados (g1.globo.com)

Bagé, 07.07.2021

 

Expedição Centenária Roosevelt-Rondon
1ª Parte – XXXIV

 

Descalvados – I

 

Vamos repercutir o excelente capítulo intitulado “Descalvados: uma Fábrica na Fronteira Oeste” da lavra do professor Domingos Sávio da Cunha Garcia retirado da obra “Território e Negócios na ‘Era dos Impérios’: Os Belgas na Fronteira Oeste do Brasil” editado pela Fundação Alexandre de Gusmão em 2009, para que se possa ter uma real ideia da história daquele formidável empreendimento plantado nos ermos dos sem fim pantaneiros.

 

Descalvados: uma Fábrica na Fronteira Oeste

 

O período que se abriu após a Guerra do Paraguai foi marcado pelas dificuldades criadas pela destruição provocadas pela guerra, que atingiu principalmente a população pobre de Mato Grosso. [...]

 

Assim que a guerra terminou, no entanto, novas possibilidades econômicas se abriram para a Província, estimuladas por diversos fatores. A região beneficiava-se do aumento da demanda de produtos de origem primária no comércio internacional. [...]

 

No plano comercial, a reabertura da navegação do Rio Paraguai e a consequente retomada do fluxo de mercadorias que havia se iniciado antes da guerra, também permitiram o rápido desenvolvimento de alguns setores da economia da Província.

 

Entre esses setores estava a pecuária, que se beneficiou do prolongamento em direção a Mato Grosso do seu crescimento na região do Prata, bem como de um processo inicial de industrialização de derivados de carne bovina que se desenvolvia naquela região e que se destinava ao mercado internacional.

 

Esse processo incentivou o desenvolvimento de charqueadas e fazendas de criação de gado semelhantes àquelas que se espalhavam pela região platina e que encontrou em Mato Grosso as facilidades proporcionadas pela existência de grandes áreas ainda não ocupadas e propícias para a criação de gado de forma extensiva. O desenvolvimento dessas atividades não atraía apenas o capital interno. Elas abriam novas oportunidades para o capital estrangeiro, que já operava no comércio e na extração da borracha em Mato Grosso e que passou a ter na pecuária mais uma possibilidade de investimentos, associando interesses locais ligados ao comércio de gado e a produção de carne e seus derivados.

 

Dessa convergência de fatores irá surgir Descalvados, que se transformará no maior empreendimento agroindustrial de Mato Grosso naquele período, tornando-se também uma referência da presença estrangeira na fronteira oeste do Brasil entre as décadas de 1880 e 1910. O início desse empreendimento liga-se ao desenvolvimento da pecuária ao longo do século XIX em Mato Grosso, em grandes fazendas de criação de gado.

 

Entre essas fazendas, a que mais se destacava era a fazenda Jacobina, localizada a cerca de seis léguas de Vila Maria, atual Cáceres, na estrada que ligava essa cidade a Cuiabá. Jacobina foi fundada por portugueses ainda no período colonial e desenvolveu-se como centro de criação de gado e produção de alimentos.

 

No início do século XIX Jacobina já era a mais importante fazenda da Província e seu proprietário foi progressivamente adquirindo mais e mais terras, a ponto de dizer aos integrantes da Expedição Langsdorf que possuía mais terras que o Rei de Portugal.

 

Quando morreu o seu fundador, Leonardo Soares de Souza, a fazenda Jacobina passou à sua filha única e herdeira, Maria Josepha de Jesus Leite, que havia se casado, no ano de 1813, com o Coronel de milícias de Portugal, João Pereira Leite, então servindo no Comando do Distrito Militar de Vila Maria. Desse casamento nasceram 10 filhos, antes que João Pereira Leite e sua sogra falecessem, no ano de 1833.

 

A partir daí a administração da Fazenda Jacobina e dos negócios da família passaram às mãos de Maria Josepha e, principalmente, de seu segundo filho, João Carlos Pereira Leite, conhecido como “Major João Carlos Pereira Leite”, que progressivamente ascendeu à chefia da família, assim permanecendo até sua morte, em 1880.

 

As terras da Jacobina se estendiam em um vasto território, desde as regiões altas do Oeste de Mato Grosso até o Pantanal Norte, na fronteira com a Bolívia, ultrapassando o Rio Paraguai no sentido Leste-oeste.

 

A parte das terras da fazenda Jacobina que ficava na margem direita do Rio Paraguai, até a fronteira natural com a Bolívia, no Pantanal Norte, era formada por campos, entremeados por pequenos capões de mata fechada. Nessa região o Major João Carlos Pereira Leite tomou posse de um conjunto de sesmarias onde teve grande desenvolvimento a criação de gado, que aí se espalhou rapidamente.

 

Dessas sesmarias, a mais importante foi aquela a que se deu o nome de “Fazenda do Cambará”, que centralizava a criação de gado na parte da antiga Jacobina. No início da década de 60 do século XIX, já havia mais de 20 mil cabeças de gado na fazenda do Cambará.

 

Mais ao Sul dessa Fazenda, também na margem direita do Rio Paraguai, havia uma região de terras altas chamada “Escalvado”, onde, ainda no período colonial, costumeiramente se instalava uma Fortificação Militar para impedir o avanço dos espanhóis, em direção à Vila Maria e Vila Bella.

 

Essa região alta foi progressivamente mudando o nome para Descalvados [provavelmente “do Escalvado” e depois “D’Escalvado”, antes de Descalvados], assim que foi sendo ocupada pelo Major João Carlos Pereira Leite, como uma das suas sesmarias de criação de gado.

 

Durante a Guerra do Paraguai o Major João Carlos Pereira Leite participou das tentativas de expulsão dos paraguaios do Sul de Mato Grosso. Mas seu principal feito durante a guerra foi impedir a passagem pela fazenda Jacobina de pedestres vindos de Cuiabá, no período vivendo grande epidemia de varíola, contraída por soldados que haviam participado da primeira tentativa de expulsão dos paraguaios de Corumbá. Essa sua decisão teria evitado que a epidemia se alastrasse por Vila Maria e pela região Oeste de Mato Grosso.

 

Terminada a Guerra do Paraguai, afluiu para Mato Grosso importante leva de argentinos, uruguaios e europeus, principalmente aqueles que atuavam como fornecedores das tropas e que haviam acumulado certo montante de capital na atividade comercial.

 

Entre esses estrangeiros estava o argentino Rafael Del Sar que comprou, em 1876, a sesmaria de Descalvados do Major João Carlos Pereira Leite e montou nela uma charqueada rudimentar, seguindo o modelo daquelas que se desenvolviam em grande número na região platina.

 

A venda da sesmaria de Descalvados para Rafael Del Sar e a sua transformação em uma charqueada foi um bom negócio para o Major João Carlos Pereira Leite. Ele passou a ter um mercado próximo para seu gado, sem precisar levá-lo em longas caminhadas para ser vendido na região de Uberaba, na Província de Minas Gerais, como fazia até aquele momento. Por outro lado, para Rafael Del Sar a vantagem estava na matéria prima, próxima e barata.

 

Ao mesmo tempo em que fornecia o gado que Rafael Del Sar abatia na sua charqueada em Descalvados, o major João Carlos Pereira Leite procurava desenvolver a sua criação de gado, importando para isso cavalos do Paraguai. Essa importação era necessária para suprir as suas fazendas na região, naquele período já infestada por uma doença que atacava o rebanho cavalar, dizimando-o e impedindo que o gado fosse manejado, o que, com o tempo, tornava-o bravio e de difícil abate. Rafael Del Sar também importava cavalos e utensílios utilizados nas Charqueadas de Descalvados.

 

O Major João Carlos Pereira Leite morreu em outubro de 1880 e seus bens foram a leilão, em hasta pública. A totalidade de suas terras, localizadas na margem direita do Rio Paraguai, foi arrematada por um uruguaio, Jaime Cibils Buxareo. Junto com essas terras, Buxareo também comprou a charqueada de Descalvados, pertencente a Rafael Del Sar. Falemos um pouco de Buxareo e suas atividades.

 

Jaime Cibils Buxareo era uruguaio, descendente de famílias de imigrantes catalães, que vieram para o Uruguai na primeira metade do século XIX. Da união de duas dessas famílias, os Cibils e os Buxareo, resultou o casamento de Jaime Cibils e Plácida Buxareo.

 

Jaime Cibils construiu fortuna em Montevidéu, dedicando-se a atividades mercantis nas áreas de saladeira, bancária e armadora, vindo a morrer muito rico, em 1888. De seu casamento resultaram 13 filhos, dos quais Jaime Cibils Buxareo era o primogênito.

 

Jaime Cibils Buxareo acompanhou o pai em suas atividades mercantis e se casou em 1862 com Florentina de las Carreras Moore, passando a viver em Buenos Aires. Ele havia dedicado largo período de seu trabalho às atividades de Saladeria no Uruguai, atividades que tiveram grande desenvolvimento naquele país ao longo da primeira metade do século XIX, quando o Uruguai tornou-se grande fornecedor de charque para o Brasil e para Cuba. Por volta dos anos 70 do século XIX, somente duas empresas produziam carnes conservadas e extrato de carne no Uruguai: “The Liebig’s Company Extract of Meat” e “La Trinidad”.

 

Nas décadas de 70 e 80 começaram a aparecer as novas tecnologias de conservação de carne, por resfriamento ou congelamento, abrindo novas possibilidades de exportação para o mercado europeu. Mas até esse momento era dominante a Saladeria, dedicada à produção de charque. Entre as grandes empresas desse setor estava o Saladeiro de Jaime Cibils, que havia inclusive expandido as suas atividades, adquirindo novas instalações nas cercanias de Montevidéu e ampliando-as.

 

O fim da escravidão ensejava perspectivas negativas em relação às exportações para o Brasil e para Cuba o que levou Jaime Cibils e seu filho a procurarem novas possibilidades de expansão de suas atividades. Tinham como objetivo não só diversificar e modernizar a produção, mas também buscar alternativa para o fornecimento do gado a ser abatido em regiões mais afastadas de Montevidéu, reforçando o tráfico de mercadorias pelo porto da capital uruguaia, naquele momento já sofrendo forte concorrência do porto de Buenos Aires, mais moderno e em franco desenvolvimento.

 

Agindo nessa direção, construíram uma fábrica de extrato de carne, charque e derivados bovinos em Salto, às margens do Rio Uruguai, em 1875, a partir de um antigo Saladeiro. Essa fábrica já adotava modernos métodos de produção que era em grande parte destinada à exportação. Jaime Cibils havia feito a opção pela produção por métodos que não utilizassem o congelamento da carne. Na direção de sua nova unidade de produção estava o químico francês Dr. Emilio Soulez.

 

A partir daí Jaime Cibils procurou novos centros fornecedores de gado, que garantissem a qualidade adequada para o produto que queria fabricar. Necessitava de gado mais magro e mais rústico. É então que surge a possibilidade de arrematar as terras do Major João Carlos Pereira Leite, em Mato Grosso, que, em 1881, iriam a leilão em hasta pública. O conhecimento desse leilão por Jaime Cibils e seu filho, Jaime Cibils Buxareo, demonstra a intensa circulação de informações, de possibilidades de negócios e de transações comerciais que existia nesse período, entre a então Província de Mato Grosso e os países da região do Prata, que estava entrando em rápido desenvolvimento econômico.

 

Esse processo era facilitado pela crescente presença de estrangeiros nas atividades comerciais de Mato Grosso, que também experimentou grande incremento no período posterior à Guerra do Paraguai, como observamos. Jaime Cibils Buxareo se dirige então para Mato Grosso acompanhado do químico Dr. Emilio Soulez, na perspectiva de participar do leilão das terras do Major João Carlos Pereira Leite. O empreendimento que haveria de iniciar em Mato Grosso era de retorno arriscado, mas, segundo Jaime Cibils Buxareo, o capital investido poderia ser recompensado com um produto de boa qualidade, que encontraria mercado na Europa.

 

A viagem de Jaime Cibils Buxareo até Cáceres [que então se chamava Vila Maria], o arremate das terras do espólio do Major João Carlos Pereira Leite, o reconhecimento que empreendeu dos campos da Fazenda do Cambará, onde Descalvados era uma das sesmarias, bem como os planos que começou a fazer para o seu novo empreendimento, estão em um diário que escreveu durante a sua viagem e primeira estadia em Mato Grosso. (CUNHA GARCIA)

 

 

Filmete

 

https://www.youtube.com/watch?v=_fCg7y98JIU

 

https://www.youtube.com/watch?v=GPT99KsJjD8&t=38s

 

https://www.youtube.com/watch?v=z6sVrma9a24

 

https://www.youtube.com/watch?v=zlPfAYWRGpA&t=18s

 

Bibliografia

 

CUNHA GARCIA, Domingos Sávio Da. Território e Negócios na “Era dos Impérios”: Os Belgas na Fronteira Oeste do Brasil – Descalvados: uma Fábrica na Fronteira Oeste – Brasil – Brasília, DF – Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.

 

Solicito Publicação

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

·      Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

·      Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);

·      Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

·      Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

·      Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

·      Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

·      Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

·      Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

·      Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

·      Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

·      Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

·      Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

·      Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

·      E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

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