Sexta-feira, 9 de julho de 2021 - 06h05
Bagé, 09.07.2021
Expedição Centenária Roosevelt-Rondon
1ª Parte – XXXVI
Descalvados – III
A PEDIDOS
Breve
notícia sobre a grande propriedade do Descalvado, no Estado de Mato Grosso.
É quase desconhecido por nós o Estado do Mato Grosso, cujas
extraordinárias riquezas naturais estão ainda por explorar.
Dotado do feracíssimo solo, cuja seiva alimenta as mais alterosas florestas, de campos criadores extensíssimos e férteis, de abundância de água e de Rios navegáveis, possui ainda ricas jazidas de carvão e de ferro, toda a sorte de minerais preciosos e cristais que oferecem remuneração segura e generosa ao trabalho inteligente em qualquer ramo da indústria, e da agricultura.
Só falta o trabalhador adstrito ao solo, a que tenha ligado o seu
interesse e a estabilidade do seu futuro, para que a terra produza, e se
aproveitem tantos elementos de riqueza, asseguradores de prosperidade imediata
e do infalível progresso; só falta que o encurtamento das distâncias por meio
da construção das vias aceleradas e do melhoramento da navegação, venha pôr
termo a esse quase exílio secular, que tem oprimido e esterilizado tão bela
parte do território brasileiro, tolhendo-lhe as conquistas do progresso e conservando-a
estacionária, quando andam a caminho da riqueza os demais Estados, seus irmãos.
Ainda bem que a picareta protetora, desbravando a estrada,
que tem de aproximar da Capital Federal e dos portos consumidores esse torrão
abençoado, já se avizinha, de Goiás, e dentro em pouco há de ferir a terra
virgem, de cujo seio há de brotar a abundância e o bem estar das gerações que a
povoarem. Será, então, disputada a posse do solo valorizado em progressão
ascendente e maravilhosa, como vimos acontecer em outros Estados, e serão
remunerados a largo juro os adiantamentos atuais sobre o futuro da sua
agricultura e da sua indústria.
Sem o propósito de uma demonstração, que daria a este trabalho um
desenvolvimento inoportuno, limitar-nos-emos a breve notícia de uma parte do
Estado, ocupada pelo seu mais importante estabelecimento, hoje limitado à
exploração, em larga escala, de uma só indústria; mas podendo explorar e
desenvolver outras várias com os extraordinários recursos naturais que contém,
e com os variados e poderosos elementos de que dispõe. Referimo-nos ao extenso
domínio e feitoria do Descalvado, propriedade do grande industrial sr. Jayme
Cibils Buxaréo, cuja atividade incansável e inteligente labor ali criou um
estabelecimento maravilhoso, onde trabalham máquinas possantes e moderníssimas,
e onde se exerce a sua direção, produzindo fecundíssimos resultados, de que
tira a mais farta remuneração. Por muitas vezes o distinto industrial registrou
já o seu nome entre os beneméritos dos “certâmens”
internacionais, recebendo prêmios conferidos à superioridade dos produtos e à
inteligência do trabalho.
Não têm valido para entibiar-lhe o ânimo nem a distância, nem
desconhecimento do país em prol do cujo progresso há tantos anos luta. Os
seguintes dados fornecem aproximada ideia dos terrenos e fábricas que formam o
colossal domínio do ‒ Descalvado, ‒ cujas riquezas mal se podem calcular
precisamente, e cuja grande extensão, se não percorre facilmente.
SITUAÇÃO
Situado no Estado do Mato Grosso, entre as Latitudes 16° e 17°50’ S e
Longitude 57°25’ e 59°30’ a Oeste de Greenwich, a propriedade do Descalvado é
limitada: a Leste, pelo Rio Paraguai, ao Sul pelos Lagos da Gaiva e Uberaba, a
Oeste pela Corixa Grande que a separa da Bolívia, o ao Norte pela Fazenda
Nacional da Caissára e pelo Rio Jauru. As cidades mais próximas são Corumbá,
350 milhas abaixo e Villa Maria ou S. Luiz de Cáceres, 125 milhas acima do seu
território.
SUPERFÍCIE
A propriedade do ‒ Descalvado ‒ conta 350 léguas quadradas de superfície
e tem cultivadas onze estâncias ou sesmarias, duas das quais em território da
Bolívia. Foram medidas essas sesmarias, cada uma das quais tem uma légua de
frente o três de fundos, representando uma área de 150 milhas, não tendo sido
levados em conta os banhados intercalados, conto é de lei, e tendo sido a
medição aprovada pelo Governo.
Sendo contíguas as sesmarias, que formam uma elipse ou quase círculo, há
no centro delas vastos campos de terras devolutas pertencentes ao Estado, e
sobre as quais tem preferência legal o proprietário das sesmarias, ao qual
somente aproveitam. Em épocas periódicas inundam-se esses campos, e o gado
neles encontrado só tem refúgio nas terras altas que os cercam, e que pertencem
ao domínio do ‒ Descalvado.
Na sua maior extensão a superfície do solo cobre-se de uma camada plana
do aluviões, quase sempre de primeira ordem e variando raramente até a areia
pura; e há por toda a parte espalhadas colinas calcárias ou do grés, povoadas
de abundantes matas. Duas dessas colinas estão encostadas à grande fábrica do
estabelecimento, uma pelo lado do Norte e outra pelo lado do Sul.
Há uma longa facha de terra denominada ‒ Cordilheira ‒ coberta de matas,
que atravessa a parte Noroeste dos campos, e nestes se sucedem alternativamente
os bosques e as clareiras. Os campos nada sofrem na estação da seca, porque é
constante a vegetação, e a própria flora abundante e variada em todo o ano.
PROPRIEDADE
É inatacável a propriedade do Sr. Jayme Cibils Buxaréo, que a houve por
compra feita em praça judicial dos herdeiros de João Carlos Pereira leite e de
alguns de seus parentes em 1882, tendo adquirido na mesma ocasião a grande
Charqueada de Del Sar, que se juntou ao domínio do ‒ Descalvado.
CLIMA
É tropical o clima, chegando o calor às vezes a 40° centígrados no verão
e temperado em seis meses no ano, baixando consideravelmente a temperatura de
abril a julho, em que se sente frio.
Não há geadas e, segundo atesta o viajante C. H. Krabbe, que fez
minuciosa descrição de sua passagem por aquelas regiões, o clima é “maravilhosamente saudável” [wonderfully
healthy], não havendo ali nem mesmo as febres intermitentes ou palustres, que
são comuns na parte Norte de Mato Grosso.
POPULAÇÃO
É escassa a população e de boa índole. A indígena se compõe dos índios
Bororós, que são mansos e se prestam de boa mente ao trabalho, mediante módica
retribuição. Em épocas certas do ano procuram trabalho no Descalvado os índios
Chiquitanos, habitantes indígenas da Bolívia, das antigas missões dos jesuítas,
e que são homens fortes e aptos para os mais rudes trabalhos, que aceitam sem
repugnância.
MADEIRAS
É rico o domínio de todas as qualidades de madeira, inclusive as de lei;
abundando o angico, a aroeira, a piúva e congêneres nas densas maltas do “plateau” e colinas; espalhando-se por
todo o domínio as qualidades próprias para a construção de ranchos, cercas,
etc, e para lenha.
ÁGUA
Limitado pelos Rios Paraguai e Jauru a Leste e ao Norte, todo o domínio
do ‒ Descalvado ‒ é abundante de nascentes. Nos Pontos mais baixos, as chuvas
formam banhados, que secam depressa, beneficiando os campos por meio dessa rega
periódica e demorada.
MEIOS DE COMUNICAÇÃO
A grande propriedade comunica-se com S. Luiz de Cáceres a Corumbá por
meio de pequenos vapores que fazem a navegação do Paraguai. A comunicação com
Montevidéu é feita pelos vapores do Lloyd Brasileiro, que vão ter agora duas
viagens por mês, não só do Uruguai como do Rio de Janeiro para Corumbá. Situada
a grande fábrica do estabelecimento à margem do Paraguai, não há despesas para
o embarque fácil de seus produtos e são relativamente pequenos os fretes
exigidos. O estabelecimento possui um vapor que faz o transporte dos produtos,
diminuindo-se assim a verba dispendida com os fretes pagos aos vapores do
Lloyd.
GADO
O principal valor do domínio do ‒ Descalvado ‒ está representado na
grande quantidade de gado que existe em seus campos ubérrimos; não foi possível
ainda precisar-lhe o número, apesar das tentativas feitas, com sacrifício de
grande número de cavalos. Dependo isso da divisão dos campos em cercados onde
se pudesse encerrar o gado dividido em tropas manejáveis.
A opinião, porém, dos que o trabalham consecutivamente e o apartam para
as matanças, e a opinião do capataz dos campos, que os percorre em todas as
direções e a longas distâncias é que excede de 300.000 cabeças o número atual
dos bois apropriados ao corte. Sejam, porém, 250.000 cabeças, é certo que a tal
respeito afirma o Sr. Krabbe em sua notícia escrita em outubro de 1888 que do
gado existente nos campos do ‒ Descalvado ‒ se poderiam abater sistematicamente
em cada ano de 50 a 60 mil cabeças, sem diminuir o “stock”.
Calculada, pois, a existência, então, de 250.000 cabeças e avaliada a procriação
na razão mínima de 30%, teríamos em outubro de 1889 o extraordinário número de
325.000 cabeças e o de 400.000 em outubro de 1890, salvos os claros abertos
pela matança nesses dois anos.
CAVALOS
Depende em muito de boa cavalhada o progresso da indústria de criação;
tem havido, entretanto, falta dela; depois que a epizootia, denominada ‒ peste
das cadeiras, ‒ dizimou grande número dos cavalos primitivamente adquiridos
pelo proprietário do Descalvado.
Hoje está evitado o mal, e iniciada a criação dos utilíssimos animais,
graças à intervenção da ciência, a que recorreu o ativo industrial. Aconselhou
o distinto médico do Rio de Janeiro, Dr. Lacerda, o emprego do arseniato de
soda, e isso bastou para salvar 90% dos cavalos atacados de tão pernicioso mal.
Os que existem em número superior a 600, além de 200 jumentos, sete
garanhões, e muitos potros, são tratados a milho comprado pelo estabelecimento,
que possui excelentes terras para o cultivo do tão útil cereal, bem como para
qualquer outro e para café, e engordam facilmente nos excelentes campos, que
percorrem em todas as direções.
ARAMADOS
O estabelecimento possui lá grande extensão de campos divididos por
cercas de arame, que permitem encurralar o gado para ser cuidado convenientemente;
são, porém, insuficientes os cercados existentes, e indispensável a construção
doe muitos outros, pois compensam a despesa as vantagens que deles se tiram. Há
cerca de 40 léguas lineares de cercados construídos que podem conter perto de
44 mil cabeças de gado, sendo os principais em Cerro Boiada, Presidente,
Intermédio, Cangiqueiro, Paratudal, Carandazal, Sucuri, S. Bento, Jauru e
Florida.
EDIFÍCIOS
O estabelecimento possui, na sua parte principal, uma excelente casa para
morada, com dependência que serve de escritório, e casas próprias para
residência do administrador, do capataz dos campos e dos operários com suas
famílias. Tem, além disso, uma padaria em casa apropriada, um galpão para
couros, um outro maior, coberto de ferro galvanizado, de 40x130 jardas para o
trabalho de matança, um outro de 40x40 jardas ocupado por oficinas, e uma
igreja recentemente construída. O cais é ligado ao depósito, oficinas e
fábricas por trilhos. No Cambará, Tremedal, Jauru, etc, há casas cobertas de
telhas e em 40 ou 50 outros lugares, há outras menores para peões e operários.
MAQUINISMOS
No galpão para oficinas está a máquina a vapor, que põe em movimento uma
grande serra vertical para cortar toros de madeira; duas outras circulares com
suas banquetas; um grande torno de metal completo; máquinas e pedras para
amolar e separar a ferramenta, que é completa, dispondo as oficinas de forjas e
todo o necessário para o trabalho a que se destinam.
Em um dos compartimentos há prensas para a extração de peotonal vegetal;
e na parte externa do galpão há currais para o gado que tem de ser abatido, e
que são construídos segundo o plano geralmente seguido nas charqueadas,
terminando em um corredor, que é percorrido por vagões sobre trilhos. O serviço
de matança nada deixa a desejar. Há um plano entijolado para o escoamento do
sangue; pilhetas para o envenenamento dos couros, e o necessário para a
separação dos intestinos dos animais e à direita ganchos e estendedores para a
carne retalhada. Há em um plano inclinado três grandes caldeiras, servidas por
um vagão sobre trilhos que lhes leva o sebo. Há uma pequena máquina a vapor que
faz passar a carne desembaraçada dos nervos e das partes inúteis, por
cilindros, de onde sai tirado por elevadores, que depositam em seis grandes
caldeiras, onde é cozida.
Há pilhetas de evaporação, bombas centrifugas para elevar o caldo
concentrado em filtros acima dos evaporadores. Há uma oficina de funileiro,
onde se fabricam as embalagens de folhas para o extrato de carne destinado à
exportação; há outra de tonoaria para as tintas e barris destinados às línguas
e outros produtos para a exportação. Fornalhas, caldeiras horizontais, tubos a
vapor, cozinhadores de carne, de geradores, e bombas suplementares que trazem a
água do Rio a reservatórios de ferro, e postes e varais para a seca dos couros
completam os elementos de que dispõe a grande fábrica, a mais importante
daquele Estado. (CUNHA GARCIA)
Filmete
https://www.youtube.com/watch?v=_fCg7y98JIU
https://www.youtube.com/watch?v=GPT99KsJjD8&t=38s
https://www.youtube.com/watch?v=z6sVrma9a24
https://www.youtube.com/watch?v=zlPfAYWRGpA&t=18s
Bibliografia
CUNHA GARCIA, Domingos Sávio
Da. Território e Negócios na “Era dos
Impérios”: Os Belgas na Fronteira Oeste do Brasil – Descalvados: uma Fábrica na
Fronteira Oeste – Brasil – Brasília, DF – Fundação Alexandre de Gusmão,
2009.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H