Sexta-feira, 23 de julho de 2021 - 06h02
Bagé, 23.07.2021
Expedição Centenária Roosevelt-Rondon
2ª Parte – VII
Cáceres – Ilha da Amizade IV
Relatos Pretéritos - Rio Tenente Lyra ou Sepotuba
Pereira da Cunha (Continuação)
CUNHA: Desde alguns dias, Kermit sofria de acessos palustres, velha
infecção que adquirira no México e que o havia aborrecido e acompanhado em
África, e agora, reentrando em regiões em que a palustre é endêmica,
reaparecia-lhe essa maldita companheira. Esse terrível mal, sério bastante em
qualquer outro, era ainda mais preocupante em Kermit, pois que o medicamento
indicado e indispensável em tal caso, o quinino, não podia ser ministrado ao
nosso Kermit, visto que outra moléstia isso provocaria, como já lhe tinha
sucedido; e foi pensando no perigo a que estava exposto seu filho, perigo que
só poderia aumentar com o internamento pelo Sertão, que, seriamente preocupado,
Roosevelt revelou-me nessa noite as suas apreensões.
Há de ter notado, que falo muito de Kermit, mas ele merece, sei o que ele
vale e a sua dedicação por mim, e, se tentasse qualquer esforço para fazê-lo
retroceder, conheço bem quanto seria isso inútil, pois não me abandonaria,
entretanto, além de ser ele meu filho muito querido, está na flor da idade, é
noivo, já estaria casado se não fosse esta viagem, e seria uma calamidade
transbordante de injustiça se viesse a morrer numa travessia que vamos
empreender.
Pela primeira vez eu via Roosevelt ter apreensões sobre a arriscada
empresa, mas eram elas todas pela sorte de seu filho e não pela sua, e,
continuando, a respeito disso se pronunciava: “Tendo dedicado as minhas energias à exploração científica que
encetamos, nela perderia a vida com glória, como certamente gostaria o meu
amigo de perder a sua em um combate naval; acresce ainda que, mesmo tendo em
conta a minha boa saúde, não posso esperar viver senão mais uns quinze anos, a
minha preocupação, portanto, é toda por Kermit”.
Assim terminava a nossa conversa daquela noite, enquanto, no acampamento,
eram dadas as providências para a primeira caçada de anta, a realizar-se na
manhã seguinte.
Nessa manhã de 8 de janeiro,
depois de sermos fotografados, das sentidas despedidas, e de ter Roosevelt, com
alguns companheiros embarcado para a caçada, despedi-me dos que não tomavam
parte em tal caçada, embarquei por meu turno no “Nyoac”, e,
com um prolongado adeus aos que
ficavam em terra, e, depois, aos que ainda vimos nas canoas, deixamos,
cheios de saudades, Porto do Campo e os bons companheiros, sentindo, com
amargor e tristeza, não poder compartilhar-lhes a sorte na bela e arriscada
exploração através do Brasil. (CUNHA)
Infelizmente
um país sem memória que não valoriza a sua história nem reverencia seus heróis
prefere chamar de Sepotuba ou Cipozal o Rio Tenente Lyra. O Tenente João
Salustiano Lyra, foi encarregado, pelo então Coronel Rondon, de realizar o
levantamento topográfico desta região para a futura instalação das linhas
telegráficas que ligariam Cuiabá a Santo Antônio do Madeira.
Recorreremos
a um capítulo do livro “Impressões da
Comissão Rondon”, do Coronel Amílcar Armando Botelho de MAGALHÃES, para
reportar o acidente fatal que vitimou o valoroso Tenente Lyra e prestar uma
justa homenagem a este herói anônimo de fibra inquebrantável que depois de
tombar nos “ermos sem fim” do Sertão
inóspito cumprindo seu dever emprestou seu nome ao Rio.
Amílcar Armando Botelho de MAGALHÃES (1942)
UMA
PÁGINA DE SAUDADE
1°
Tenente João Salustiano Lyra
Quis um destino caprichoso, imprevisto como todos os destinos, que fosse
perder a vida num pequeno Rio [Sepotuba, afluente da margem direita do Alto
Paraguai] aos 03.04.1917, quando dirigia uma turma independente de Serviço
Geográfico, em trabalhos de levantamento da Carta de Mato Grosso. [...]
No cenário apenas quatro protagonistas, dois que pereceram e dois que se
salvaram; uma corredeira impetuosa onde as águas borbulham e burburinham,
espadanando sobre rochedos; em torno a floresta despovoada, silenciosa e indiferente
como toda massa inerte da natureza... Nesse desvão sem glória, a mão do destino
apaga facilmente uma existência gloriosa e uma juventude viril também preciosa
‒ Lyra e Botelho.
Tem muita força a fatalidade: como conceber de outra forma que dois
grandes nadadores, de fortes músculos, acostumados a esforços mais violentos,
fossem vencidos nessa luta?! Ainda mais quando a calma revelada pelos náufragos levou-os a atirar para
terra as cadernetas de levantamento, para que não se
perdessem na corrente e com elas desaparecesse o resultado do trabalho até aí executado;
quando espontaneamente atiram-se na água, na convicção de que tal iniciativa
evitaria, como evitou, a submersão da pequena canoa [montaria] em que
navegavam!
Esta, flutuou realmente, depois de colher em seu bojo boa porção de
líquido, e, arrastada pela correnteza só pôde ser atracada à margem 200 metros
a jusante, apesar do esforço neste sentido empregado pelo piloto.
Fora lançado na água, ao primeiro desequilíbrio da canoa, o proeiro, que
nadou para a margem e nada mais viu, porque tratara apenas de se salvar. O
piloto, no último olhar que lançou para a retaguarda, viu ainda os dois
oficiais à tona da água; quando saltou em terra e correu margem acima ao local
do sinistro, nenhum vestígio mais deles encontrou: haviam desaparecido. Aos
gritos do piloto, na esperança de que os oficiais, arrastados pela velocidade
das águas, pudessem ter saído mais abaixo, apenas o eco respondeu... Por terra,
trilhando caminhos diferentes, a tropa diariamente vinha à beira do Rio, ao
encontro da turma de levantamento, em pontos previamente determinados pelo
Chefe da Expedição ‒ Tenente Lyra.E era essa justamente a última etapa a
vencer, para amarrar o serviço a Tapirapuã, porto da margem esquerda do
Sepotuba [hoje Rio Tenente Lyra] até onde, desde a foz, a Comissão havia já
executado o levantamento desse curso de água. A última etapa correspondeu,
assim, o último dia de vida dos dois distintos oficiais. (MAGALHÃES, 1942)
Mais
uma vez Esther de Viveiros se equivoca afirmando, desta feita, que os
expedicionários trocaram de embarcação em Cáceres. Relata Viveiros:
Deixando Cáceres, deixamos também o “Nyoac”
‒ não poderia
ele ir além. Começamos a subir o Sepotuba [Tapir], que eu explorara
cientificamente em 1908. Rio claro, descendo do planalto para as florestas das
terras baixas, só era navegável no tempo das águas. Subimos até Porto Campo,
onde pousamos a 7 de janeiro de
1914. (VIVEIROS)
Rondon,
nas suas “Conferências Realizadas nos
dias 5, 7 e 9 de outubro de 1915 pelo Sr. Coronel Cândido Mariano da Silva
Rondon no Teatro Fênix do Rio de Janeiro sobre Trabalhos da Expedição Roosevelt
e da Comissão Telegráfica no Teatro Fênix”, afirma:
Daí saímos na manhã seguinte, continuando a subir o Paraguai, em demanda do
Porto do Campo, no Rio Sepotuba, onde chegamos
depois das 3 horas da tarde de 7 de
janeiro. O “Nyoac” não podia ir além; desembarcamos e pela primeira vez
armamos as barracas [...]. Permanecemos nesse acampamento até o dia 13 não só afim de dar tempo à lancha “Anjo da
Ventura”, propriedade da Casa Dulce, de Cáceres, para fazer o transporte de toda a carga e de parte do
contingente de Porto do Campo para Tapirapuã, como também para completar a coleção de grandes mamíferos que o Sr. Roosevelt
estava fazendo. (RONDON)
Ratifica
essa afirmativa o Capitão Magalhães:
As 15 horas do dia 6 partiu o “Nyoac”, Rio
Paraguai acima, penetrando em seguida pelo
curso do Sepotuba [...] Nesse 1° acampamento permanecemos até o dia 13, data em que às 11 horas partimos na
lancha “Anjo
da Ventura” e em uma chata a reboque, afim de prosseguir o acesso do
Sepotuba, em demanda de Tapirapuã, onde desembarcamos às 11 horas e 30 minutos
de 16 e acampamos pela segunda vez. (MAGALHÃES, 1916)
Concluímos
nossa tese com o relato bastante contundente do Comandante Heitor Xavier
Pereira da Cunha nas suas “Viagens e
Caçadas em Mato Grosso”:
De fato, não estando no porto a lancha para conduzir a Expedição,
resolveu-se que o “Nyoac”
subisse mais o Paraguai e penetrasse no Sepotuba, até Porto do Campo, onde
Roosevelt aguardaria a lancha, caçando antas e porcos [...]. Entramos pelo
Sepotuba, e logo foi a nossa primeira observação a limpidez de suas águas, e a
sua forte correnteza que a custo era vencida pelo pequeno “Nyoac”, [...] (CUNHA)
Filmete
https://www.youtube.com/watch?v=-ek3beISFFA&t=456s
Bibliografia
CUNHA, Comandante Heitor
Xavier Pereira da. Viagens e Caçadas em
Mato Grosso: Três Semanas em Companhia de Th. Roosevelt – Brasil – Rio de
Janeiro, RJ – Livraria Francisco Alves, 1922.
MAGALHÃES, Amílcar A.
Botelho de. Anexo n° 5 – Relatório
Apresentado ao Sr. Coronel Cândido Mariano da Silva Rondon – Chefe da
Comissão Brasileira – Brasil – Rio de Janeiro, RJ, 1916
MAGALHÃES, Amílcar A.
Botelho de. Impressões da Comissão
Rondon – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Companhia Editora Nacional, 1942.
RONDON, Cândido Mariano da
Silva. Conferências Realizadas nos dias
5, 7 e 9 de Outubro de 1915 pelo Sr. Coronel Cândido Mariano da Silva Rondon no
Teatro Phœnix do Rio de Janeiro Sobre os Trabalhos da Expedição
Roosevelt-Rondon e da Comissão Telegráfica ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ –
Tipografia do Jornal do Comércio, de Rodrigues & C., 1916.
VIVEIROS, Esther de. Rondon Conta Sua Vida ‒ Brasil ‒ Rio de
Janeiro, RJ ‒ Livraria São José, 1958.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
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Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
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Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
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Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H