Terça-feira, 3 de agosto de 2021 - 06h00
Bagé, 03.08.2021
Expedição
Centenária Roosevelt-Rondon
2ª Parte – XII
Não estranhes se, às vezes,
sentires que os animais estão mais apegados a ti do que teus semelhantes.
Eles também são teus irmãos.
(Giovanni di Pietro di Bernardone,
mais conhecido como São Francisco de Assis)
Tapirapuã ‒ Pesqueiro do Lídio (26.10.2015)
Partimos
de Tapirapuã, margem esquerda do Rio Tenente Lyra, às 09h55 montados em nossos
muares, dando início a uma jornada bastante diferente da navegação dos 194 km
que percorrêramos desde Cáceres pelos Rios Paraguai e Tenente Lyra e muito mais
humana já que em vez do ruído e poluição provocados pelos motores de popa nos
deslocaríamos no dorso de animais.
O
ritual, que se repetiria no início da manhã e da tarde das duas semanas
seguintes, consistia em colocar os animais em forma orientados pelo cavalinho
polaqueiro e pelo “Boi” – Chefe da
Comitiva de muares. O “Boi” colocava
o freio e o buçal nos animais e nos entregava os mesmos para que os
arreássemos. Fazíamos rodízio dos animais substituindo a montaria usada na
parte da manhã por uma descansada à tarde, de manhã eu montava a Bolita e à
tarde o Roxinho.
Logo
depois de partirmos de Tapirapuã, adentramos na MT-339. A comitiva seguia
tranquilamente pela estrada de chão quando surgiu um pequeno contratempo
provocado por um garanhão negro que provavelmente encantado com a formosura das
mulas pulou uma cerca elétrica tumultuando o andamento da comitiva. O
imprevisto foi sanado graças à intervenção rápida e um tiro de laço certeiro de
nosso amigo “Boi”. O fogoso corcel
fujão foi levado, então, de volta ao cercado e continuamos nossa jornada.
Fizemos
duas paradas para descanso, uma por volta do meio-dia no Sr. Valdomiro
(14°45’13,2” S / 57°46’07,8” O) e outra às 16h00. Entre a primeira e segunda
parada desmontei e puxei o Roxinho pelo cabresto com o intuito de descansar as
pernas durante uma hora. Na última parada paramos em um bar (14°44’49,8” S /
57°46’08,6” O) para beber um refrigerante gelado – o calor era insuportável.
Logo em seguida, adentramos na MT-426 e depois de cavalgarmos por quarenta
minutos caiu uma chuva torrencial forçando-nos a fazer uso das capas de chuva.
A
velha capa de lona dura que estava na garupa do Roxinho estava suja de sangue e
fedia demais. Bastante contrariado usei-a não com o objetivo de me proteger da
chuva, mas para preservar os arreios e os pelegos. Chegamos ao Pesqueiro do
Lídio (14°42’14,3” S / 57°49’24,3” O) localizado na margem esquerda do Rio
Tenente Lyra depois de cavalgarmos 24 km. As mulas foram soltas em um terreno
cercado e com muito capim. Para nós, infelizmente, foi disponibilizado apenas
um celeiro cheio de sacas de milho sobre os quais dormimos.
Relatos Pretéritos
21.01.1914
Rondon
Por fim, às 13h00 do dia 21 de
janeiro, dada a ordem, os que constituíamos a primeira turma da Expedição,
cavalgávamos as nossas montarias e partíamos de Tapirapuã, em direção ao lugar
denominado Salto, ainda no Rio Sepotuba.
Aí chegamos às 16h00, depois de um percurso de 27 quilômetros; armamos o
nosso acampamento e provamos as primeiras sensações da vida errante e incerta
dos sertanistas, tão trabalhosa e cheia de imprevisto, tão exigente do
iniciativas prontas e enérgicas, tão incompatível com o esmorecimento da
vontade e da coragem e tão oposta às comodidades, à calma e à regularidade da
nossa vida civilizada, que se tem de escoar, plácida e aconchegada, entre
diques protetores de todas as fragilidades, para poder desabrochar na
florescência exuberante e bela da poesia, da ciência e da indústria. (RONDON)
Magalhães
No dia 21 pela manhã partiu a
tropa de 54 burros que conduziria as cargas da 1ª turma sob a chefia de honra
do Sr. Coronel Roosevelt.
Às 13h00, partia o pessoal técnico da 1ª turma ao qual acompanhei até
meia légua de distância, retrocedendo então a Tapirapuã, depois de apresentar
as minhas despedidas à Comissão Americana e demais membros componentes da
primeira turma. (MAGALHÃES, 1916)
Roosevelt
Em Tapirapuã dividimos a bagagem e a nossa comitiva. Mandamos à frente,
num carro puxado por seis bois, a canoa canadense, com seu motor e algumas
caixas de gasolina e cem latas fechadas, cada uma com rações diárias para seis
homens. Tinham sido arranjadas em Nova York, sob a direção especial de Fiala,
para serem utilizadas quando chegássemos a lugar onde quiséssemos ter alimento
variado e bom, em volume reduzido. Todas as peles, crânios e espécimes em
álcool, assim como toda a bagagem que não era de absoluta necessidade, foram
remetidas pelo Rio Paraguai abaixo, para Nova York, aos cuidados de Harper.
A tropa cargueira, sob a direção do Capitão Amílcar, fora organizada para
seguir formando um destacamento separado. O grosso da Expedição, composto pelos
membros americanos, Coronel Rondon, Tenente Lyra e Dr. Cajazeiras, com a
bagagem de todos e com provisões, formava outro destacamento. [...] A partir de
Tapirapuã nosso percurso se dirigia para o Norte, subindo e atravessando o
planalto deserto do Brasil. Das fraldas desta zona elevada, que é
geologicamente muito antiga, defluem para o Norte os tributários do Amazonas, e
os do Prata para o Sul, fazendo imensos volteios e desvios sem conta. Dois dias
antes de nossa partida, as bestas de carga com muitos bois de carga seguiram
levando as provisões, ferramentas e outras coisas de que não iríamos necessitar
antes de um mês ou mês e meio, quando iniciássemos a descida para o Vale do
Amazonas. Eram cerca de 70 bois, muitos deles bem mansos, mas havia cerca de
uma dúzia deles inteiramente bravios ou rebeldes. Com muita dificuldade era a
carga colocada neles, que corcoveavam como cavalos selvagens.
Seguidamente esparramavam as cargas pelo curral ou no começo da estrada.
Os tropeiros, porém, de pele cor de cobre, pretos e mulatos, não só eram
senhores de seu ofício, como de têmpera inalterável; quando mostravam
severidade, era por ser necessário mostrá-la, mas não porque estivessem
zangados. Finalmente conseguiram carregar todos os chifrudos animais e com eles
ganharam a picada.
Á 21 de janeiro, partíamos nós
com a tropa de bestas de carga. É claro que, como sempre acontece em tais
jornadas, houve certa confusão até que os tropeiros e os animais de carga se
adaptassem à sua tarefa rotineira. Além das bestas de carga, levávamos bestas de
sela para todos nós. No primeiro dia viajamos 22 km, e, atravessando então o
Sepotuba, acampamos junto a ele, abaixo de uma série de corredeiras.
(ROOSEVELT)
Pesqueiro do Lídio ‒ São Jorge (27.10.2015)
Partimos
às 08h20, depois da formatura matinal da comitiva. A cavalgada pela manhã
transcorria sem alteração até que uma das mulas começou a apresentar sinais de
estar sofrendo fortes cólicas ‒ estancando e rolando constantemente. O animal
deve ter comido alguma erva para ela desconhecida e agora padecia de
indigestão. No dia seguinte, felizmente já havia se recuperado do mal-estar. Fizemos,
por volta das 12h00, uma parada no sítio da simpática família do Sr. Ciro.
Deitamos à sombra de um babaçu (Orbignya phalerata) de quase vinte metros de
altura asfixiado cruelmente por uma figueira. O tronco estava tão tomado pela
trepadeira que só me dei conta de que se tratava da elegante palmeira depois de
verificar uma grande quantidade de seus característicos cocos espalhados pelo
chão.
A
maioria dos exemplares que avistamos na região estava tomada pelas figueiras
que Theodore Roosevelt, em 1914, descrevera magistralmente quando caçava na
Fazenda Porto do Campo.
Em um Capão, as figueiras estavam asfixiando as palmeiras assim como na
África matam os pés de sândalo. À sombra desse Capão não havia flores nem
arbustos. O ar era pesado, o solo escuro coberto de folhas secas.
Cada palmeira servia de suporte a uma figueira que apresentava todos os
estágios de desenvolvimento. As mais novas subiam pelos estípites ([1])
como simples trepadeiras.
No estágio seguinte, a trepadeira já encorpada estendia seus rebentos,
envolvendo o tronco em um amplexo mortal; alguns destes abraçavam-no como
tentáculos de enorme polvo. Outros pareciam garras, cravadas em cada fenda, em
torno de qualquer saliência.
No estágio que a este se sucedia, a palmeira já fora morta e seu
esqueleto sem vida aparecia entre os fortes braços da grossa trepadeira nela
enroscada; afinal, em outros casos, a palmeira já desapareceu e as grossas
hastes se uniram para formar uma grande figueira.
Havia negros poços d’água aos pés das árvores mortas e de suas
assassinas. Algo de sinistro e diabólico pairava na penumbra silenciosa do
Capão, como se, naquele ermo, seres conscientes estivessem envolvendo e estrangulando
outras criaturas conscientes. (ROOSEVELT)
Apuizeiro (Ficus fagifolia)
Navegando
e me deixando navegar pelo Rio-mar, penetrando suas entranhas, Explorando
Igarapés, Igapós, Lagos, Furos e Paranás, numa intimidade ancestral, colhi
impressões, focalizei paisagens, e interpretei os fenômenos da prodigiosa
natureza que me acalentava no seu ritmo telúrico. Mergulhado na hileia,
vivenciei uma experiência singular, mista de encantamento, respeito e devoção.
A selva guarda no seu seio imagens únicas de infinitos matizes. Os gigantes da
floresta, sisudos, imponentes irradiam sua secular sabedoria. Sua diversidade
tem impressionado ingênuos cronistas nos últimos 500 anos e seus segredos vêm
sendo desvendados pelos obstinados desbravadores e apaixonados naturalistas,
extasiados diante de sua exuberância.
A
imersão no útero da mãe terra estimula e amplia os sentidos mais sutis. Cada
ente mineral, animal ou vegetal se transforma num catalisador desse processo
mágico. Começamos a ter uma percepção maximizada e atemporal da realidade que
nos envolve com o seu sagrado manto verde. Dentre as inúmeras formas que
impressionaram minha retina e estimularam minha imaginação, uma delas marcou
meu inconsciente não apenas por sua beleza, mas sobretudo pela energia e pela
crueldade que se esconde por detrás de cada tentáculo do apuizeiro ([2]),
que sufoca progressivamente a árvore hospedeira até matá-la. A descrição do
autor Raymundo Moraes deste belo exemplar de fícus é a mais completa e a mais
real que já tive, até hoje, a oportunidade de ler, por isso mesmo, repercuto
alguns parágrafos:
[…] o apuizeiro, de tamanho reduzido, a brotar da entrecasca, da coroa,
do nódulo, da forquilha, de qualquer parte enfim da árvore onde a terra, levada
pelos alísios e pelos pássaros, tenha formado um pequenino vaso de madeira viva
– assemelha-se a qualquer raminho inocente, obra ornamental e decorativa da
jardinaria japonesa. Camuflado de arbusto, aparentemente fraco, sem a menor
importância, o perigoso inimigo não deixa adivinhar a rijeza tremenda de suas
antenas, a ação envolvente e compressora de seus fios maravilhosos, plásticos,
estranguladores. […] como no caso bíblico, de David de Golias, aqui o mais
forte não é o maior, mas o mais ágil, do que tem na funda belicosa a pedra pronta
e certeira. E o pequeno apuizeiro, quando joga, pela força dos ventos, o bago
da sua semente ao peito abroquelado dos colossos da mata, não revive somente as
santas escrituras, sintetiza também a verdade científica do “de natura rerum” ([3]),
vagamente surpreendida, antes dos naturalistas do século XX, pelo olho poético
de Lucrécio ([4]). (MORAES)
Voltemos
à nossa parada no sítio do Sr. Ciro. As pequeninas filhas do Sr. Ciro nos
presentearam com saborosas mangas coração de boi. As frutas tinham pouca fibra,
eram grandes e arredondadas, apresentavam uma casca de tonalidade vermelho
escura e uma polpa tenra e aromática. A esposa do Ciro preparou-nos um
delicioso almoço e o Ciro mostrou-se visivelmente indignado quando o Dr. Marc,
parece que esquecido da natural generosa hospitalidade brasileira, ofereceu-lhe
dinheiro em troca. Depois de cavalgarmos vinte e cinco quilômetros, chegamos ao
Distrito de São Jorge.
Tentamos,
sem sucesso, conseguir, com os moradores, um local cercado para as mulas e por
fim resolvemos deixá-las nas proximidades do galpão paroquial que ficava atrás
da Escola perto do “redondo” um local
cercado ideal para abrigar os quatro burros fujões. Na secretaria da Escola a
coordenadora Professora Ângela fez uma prece desejando sucesso à nossa
empreitada. Por estes estranhos desígnios do destino, logo que desfizemos
aquele simulacro de “Cadeia de União”
([5])
vimos aproximar-se do Portão de entrada do Colégio o Sargento Matheus YURI
Vicente Cândido (Chefe da viatura) e o Soldado Paulo ÉDER Pereira Dias
(motorista e cozinheiro) conduzindo a viatura Agrale Marruá do 2° B Fron.
Acantonamos, eu o Angonese e o Dr. Marc, na Escola Estadual Ministro Portella
Nunes (14°39’41,7” S / 57°56’42,1” O) e o restante do pessoal pernoitou no
Galpão Paroquial, de olho nas mulas.
Filmete
https://www.youtube.com/watch?v=-ek3beISFFA&t=456s
https://www.youtube.com/watch?v=rECpPlEurDI&t=23s
Bibliografia
MAGALHÃES, Amílcar A. Botelho de. Anexo
n° 5 – Relatório Apresentado ao Sr. Coronel Cândido Mariano da Silva Rondon
– Chefe da Comissão Brasileira – Brasil – Rio de Janeiro, RJ, 1916
MORAES Raymundo – Na Planície Amazônica ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Livraria Itatiaia
Editora Ltda ‒ Editora da Universidade de São Paulo, 1987.
ROOSEVELT, Theodore. Através do Sertão do Brasil ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒
Companhia Editora Nacional, 1944.
Solicito
Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro,
Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante,
Historiador, Escritor e Colunista;
·
Campeão do II Circuito
de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
·
Ex-Professor do
Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
·
Ex-Pesquisador do
Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
·
Ex-Presidente do
Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
·
Ex-Membro do 4°
Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
·
Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
·
Membro da Academia de
História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
·
Membro do Instituto
de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
·
Membro da Academia de
Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
·
Membro da Academia
Vilhenense de Letras (AVL – RO);
·
Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
·
Colaborador Emérito
da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
·
Colaborador Emérito
da Liga de Defesa Nacional (LDN).
·
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Estípites: caules das palmeiras.
[2] Apuizeiro: Ficus fagifolia.
[3] “De natura rerum”: sobre
a natureza das coisas.
[4] Lucrécio: poeta e filósofo latino.
[5] Cadeia de União: os termos cadeia e prisão são sinônimos e,
portanto, “Cadeia de União” quer dizer “prisioneiros de um amor fraterno universal”, lembrando que os maçons
encontram-se presos aos seus Irmãos na solidariedade do bem comum e do
crescimento espiritual. Quando da formação da “Cadeia de União”, o contato mental é
instantâneo, o que quer dizer: nenhum “elo” permanecerá isolado e fora do todo, tendo
essa formação mental e a Palavra Semestral o dom mágico de unir elos esparsos.
(www.revistauniversomaconico.com.br)
Galeria de Imagens
* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H