Terça-feira, 17 de agosto de 2021 - 06h01
Bagé, 17.08.2021
Percorre, a “Rondônia”, um
caminho que vai da objetividade daquelas páginas, um tanto insípidas para os
profanos, em que o cientista técnico faz a biometria de tribos inteiras, ou
daquelas em que a meticulosidade do médico, nunca deslembrado do seu ofício,
descreve o fenômeno de dermatose esfoliativa observada nos índios locais até o
surgimento do escritor de humana sensibilidade e excelente forma de expressão.
Citemos, a propósito, um trecho da sua página mais afamada entre os
leigos, de efeito mais literário a página “A
Morte do Cavalo” certamente julgada antológica, que merecia, ouço dizer, a
preferência do próprio Roquette-Pinto:
Em pé, pernas abertas para não cair, arquejante, o pelo riscado por
alguns fios de sangue a jorrar do pescoço, da anca e da barriga, um triste
pedrês ([1]),
magro e pisado, tremia num arrepio imenso, como se fosse um grande cavalo de
gelatina. Das feridas surgiam, oscilantes, ensanguentadas também, longas
flechas retidas no corpo do animal pelas farpas agudas. Extraímo-las do mísero
cavalo.
E seguimos lentamente, dando-lhe tempo para que nos acompanhasse no seu passo
de moribundo. Sempre a tremer, ia arrastando o corpo. Parava um pouco.
Depois continuava com esforço, como desejando livrar-se, em último
arranco, daquele meio fúnebre. Um quilômetro adiante, deteve-se, dobrou os
joelhos, deitou-se sobre o flanco; pôs-se a tremer ainda mais, e lá ficou
morrendo... [...]
São feios, efetivamente, aqueles sertanejos; muitos, além disso, vivem
trabalhando, trabalhados pela doença. Pequenos e magros, enfermos e
inestéticos, fortes todavia, foram eles conquistando as terras ásperas por onde
hoje se desdobra o caminho enorme que une o Norte ao Sul do Brasil, como um
laço apocalíptico, amarrando os extremos da pátria. É preciso ir lá para
retemperar a confiança nos destinos da raça, e voltar desmentindo os pregoeiros
da sua decadência. Não é, nem pode ser nação involuída, a que tem meia dúzia de
filhos capazes de tais heroísmos. Como são pequeninas estas observações
científicas, diante da grandeza da construção daquela gente! (LINS)
Rondônia (1935) ‒ Edgard Roquette-Pinto
Roquette-Pinto
acompanhou a Comissão de Rondon à Serra do Norte, nos idos de julho a novembro
de 1912, desempenhando as funções de antropólogo, arqueólogo, botânico,
cineasta, etnógrafo, farmacêutico, folclorista, fotógrafo, geógrafo, legista,
linguista, médico, sociólogo e zoólogo.
Percorrendo
os ermos dos sem fim daquela inóspita região, descreveu, de maneira notável, o
relevo, a hidrografia, a geologia e os mais diversos elementos da fauna e da
flora. Analisou criteriosa e minuciosamente a anatomia dos Paresí e Nambiquara,
suas manifestações culturais, atividades sociais, crenças, ritos, língua e
endemias.
Recolheu
artefatos indígenas, filmou o cotidiano nativo e gravou os cantos dos íncolas
Nambiquara e Paresí. Os Nambiquara, no tempo de Roquette-Pinto, como ele mesmo
relata, viviam na Idade Lítica, usavam machados de pedra e facas de madeira,
não dominavam arte da cerâmica, desconheciam as técnicas de construir
embarcações e, por isso mesmo, usavam talos de Buriti ([2])
para atravessar os Rios e não sabendo tecer redes ‒ dormiam no chão.
Todos os índios da Serra do Norte viviam, até agora, em plena Idade
Lítica, usando machados de pedra mal polida, facas de madeira, ignorando a
navegação, dormindo diretamente sobre o solo, ignorando a fabricação da
cerâmica e a rede de dormir. [...]
Para atravessar modestos Rios arranjam uma pinguela, derrubando uma
árvore da margem e ajeitando a queda do madeiro de modo conveniente. Se o Rio é
largo, fazem um molho de palmas de Buriti, à maneira de flutuante, e deixam-se
levar pela corrente, cruzando o curso d’água em diagonal. Não conhecem canoa,
nem praticam a navegação. (ROQUETTE-PINTO)
Para atravessar o Rio, um deles colocou por baixo dos braços duas boias
finas de talos de buriti, enquanto o outro, firmado nos pés do primeiro, foi
por este rebocado até onde estávamos. (MAGALHÃES, 1941)
Esta
experiência fantástica foi reportada, com maestria, por Edgard Roquette-Pinto
no seu livro “Rondônia” do qual
repercutimos algumas observações relativas aos índios Nambiquara.
VIII
Infelizmente, em 1912, os Nambiquara ainda não se achavam bastante
acostumados com a presença de estranhos naquelas serranias. Apesar de sua
condescendência, a custa de brindes conseguida, minhas pesquisas foram
recebidas com justificável desconfiança. Os índios examinados pertenciam aos
grupos: Kôkôzú, Anunzê, Tagnani e Tauitê. Dos Uaintaçú, grupo ainda hostil, só
consegui uma observação, essa mesmo incompleta. O estado de excitação em que o
índio se encontrou, durante o tempo em que o examinei, não permitiu melhor
resultado.
A pele é de cor amarelo-siena queimada, escura nos Kôkôzú, clara nos
outros. Nos Tagnanis o colorido, em certos indivíduos, chega ao róseo. Muitos
tipos quase pretos são encontrados entre os do Juruena e do Juína; são os
índios mais escuros do Brasil. [...] Epiderme grossa, enrugada.
Os pelos são retilíneos, duros [lissótricos] ([3]).
Em certos indivíduos há cabelos largamente ondulados [“waved” dos
antropólogos ingleses], semelhantes aos dos Polinésios. Os índios, em geral,
arrancam os pelos do corpo e da face e cortam os cabelos, na fronte, com uma
concha de lamelibrânquio ([4]).
Raros indivíduos deixam fios de bigode; alguns consentem na presença da barba
do mento ([5]).
Quase todos deixam crescer livremente as unhas; à hora da comida são
utensílios valiosos para dilacerar as carnes. As plantas dos pés nunca se
espessam em calosidades extensas, como nos indivíduos de raça negra, que andam
descalços. Os pés são relativamente grandes. Pernas finas e musculosas. Abdômen
saliente. Mãos pequenas; membros torácicos encordoados, pouco volumosos. [...]
A estatura das mulheres, portadoras de pélvis assim reduzida, é bem pequena: as
Nambiquara medem 1,47 m de altura, contra 1,62 m que têm os homens. Sendo admitido,
em geral, que a estatura feminina é sempre menor que a masculina, cerca de 7%,
a altura das Nambiquara deveria andar por 1,51 m. Grosso modo, pode dizer-se
que a estatura feminina tem menos de 12 cm que a do outro sexo. [...]
O exame das proporções do corpo, realizado em alguns tipos que
representavam o conjunto dos caracteres somáticos mais nítidos da mulher
Nambiquara, revelou fatos interessantes, cujo conhecimento é indispensável para
o trabalho de comparação antropológica. [...] O tronco é quadrangular, sem
depressão lombar, nem vislumbre de esteatopigia ([6]).
Os seios, nas moças púberes, são pequenos, em forma de taça [...]. Nas mulheres
mães, são grandes, de auréola dirigida para fora, mamilo levantado, nem sempre
muito afastados um do outro. O espaço intermamário, em algumas das mulheres
mães, tem o valor da metade do diâmetro de uma das mamas. O meio do corpo
acha-se acima da sínfise pubiana ([7]).
Mede a distância jugo-xifoidiana – [da fúrcula esternal ao apêndice
xifóide] – metade da distância xifo-pubiana; sendo, assim, a altura do abdômen
igual ao dobro da altura do tórax. Por sua vez, a distância xifo-umbilical é
igual ao dobro da linha umbílico-pubiana. Do que se conclui que a mulher
Nambiquara tem o umbigo mais próximo do púbis. Pinard já tinha notado a
importância prática do conhecimento dessas relações, na semiologia ([8])
da prenhes.
Mostrou quanto andaria errado quem fosse aplicar, a todas as raças,
elementos de pesquisas que só para umas tantas podem servir. Vi algumas Nambiquara
grávidas. A prenhes evoluía já adiantada, mas não consentiram num exame sério;
nada posso, destarte, dizer a respeito. Vem, todavia, a propósito referir que
nenhuma era lanhada pelos sulcos intradérmicos, devidos à distensão forçada do
abdômen, frequentes na mulher branca. Aliás, a pele não tem sempre o mesmo
coeficiente de extensibilidade. A dos índios é favorecida por condições
especiais, mal conhecidas. Martius figurou no seu Atlas um índio Miranha cujas
narinas, perfuradas, atingiam insólita extensão; o indivíduo conseguia
passá-los ao redor do pavilhão da orelha do lado respectivo. O lábio dos
botocudos é outro exemplo disso.
No tipo masculino, os três segmentos principais da cabeça seguem a mesma
norma. O segmento digestivo é maior que os outros dois. Também a altura do
tórax é igual à metade da altura abdominal. As mesmas relações encontradas
entre tórax e abdômen e entre as partes deste último, no tipo feminino,
acham-se nos homens.
Por essas relações toracoabdominais ([9]),
e pela altura do umbigo sobre o púbis, pode dizer-se que o homem Nambiquara tem
tronco de mulher; e, levando mais longe a consideração dessas interessantes
disposições recíprocas, ainda não seria errado afirmar que, no adulto, nessa
gente, permanecem caracteres morfológicos próprios à infância: altura do
umbigo, por exemplo.
Um caráter diferencial dos sexos é a situação do meio do corpo: nos
homens ele se encontra na borda inferior da sínfise pubiana. É que as mulheres
têm membros inferiores mais longos; e os homens, o tronco mais comprido; elas
são, antes, macrosquélicas ([10]),
e eles braquisquélicos ([11]).
Notemos que observações de Ales Hrdlicka ([12]),
entre adolescentes, na América do Norte, encontraram fenômeno inverso nas
populações brancas. (ROQUETTE-PINTO)
Filmete
https://www.youtube.com/watch?v=-ek3beISFFA&t=456s
https://www.youtube.com/watch?v=rECpPlEurDI&t=23s
https://www.youtube.com/watch?v=wxA1AJchYFM&list=UU49F5L3_hKG3sQKok5SYEeA&index=23
Expedição
Centenária R-R - III Parte - Fase I - YouTube
https://www.youtube.com/watch?v=3bt42u-sGtA&list=UU49F5L3_hKG3sQKok5SYEeA&index=20
Bibliografia
LINS, Álvaro de Barros. Estilo
Literário e Estilo Científico: Estudo
da Obra de Roquette-Pinto ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ – Jornal de
Crítica, Edições O Cruzeiro ‒ Sétima Série, 1963.
MAGALHÃES, Amílcar A.
Botelho de. Impressões da Comissão
Rondon – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Companhia Editora Nacional, 1942.
ROQUETTE-PINTO, Edgard. Rondônia ‒ Brasil ‒ Rio, RJ ‒ Companhia
Editora Nacional, 1938.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Pedrês: branco
e preto.
[2] Buriti:
Mauritia flexuosa.
[3] Lissótricos:
cabelos lisos.
[4] Lamelibrânquio:
moluscos bivalves.
[5] Mento: queixo.
[6] Esteatopigia: hipertrofia das nádegas por acúmulo de gordura.
[7] Sínfise pubiana: articulação que une o púbis formando a cintura
pélvica.
[8] Semiologia: estudo dos sinais.
[9] Toracoabdominais: que pertencem ao tórax e ao abdômen.
[10] Macrosquélicas: macroscélicas – possuem pernas compridas.
[11] Braquisquélicos: braquiscélicos – possuem pernas curtas.
[12] Ales Hrdlicka: antropólogo tcheco criador da teoria
monogenista-Asiática ‒ doutrina que defende ter o gênero humano origem Asiática.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H