Terça-feira, 24 de agosto de 2021 - 06h00
Bagé,
24.08.2021
Luiz Leduc (1907)
Travessia do Rio Papagaio
04.11.1907:
Depois de todas essas dificuldades, extenuados, estropiados, maltrapilhos e
famintos, no dia 4 de novembro, chegamos ao Rio Sauêruiná [Rio Papagaio].
Afinal, chegamos! Nossos soldados puderam, logo, preparar uma boa fogueira, que
permitiu armarmos o acampamento, passando, todavia, a noite, nas mesmas
condições da anterior. A regra, em viagem, é de atravessar o Rio, fazendo-se o
pouso do outro lado, em face de uma possível chuva, que impedisse a travessia
no dia seguinte. Nessa ocasião, foi-nos impossível seguir essa regra, em
virtude do adiantado da hora e do estado deplorável do pessoal. Nesse dia, uma
dúzia de palmitos, sobra ainda do festim de dias passados, acima descrito, mais
algumas frutas, maduras ou não, sãs ou bichadas, foi o jantar. Havia fome e
cansaço, mas ninguém disse o que sentia, em respeito ao raro valor do nosso
Chefe, o Major Rondon, esse grande condutor de homens.
05.11.1907: Felizmente, não havendo chovido, tudo
saiu bem, podendo, logo na manhã seguinte, após ser distribuída a escassa
refeição a que estávamos reduzidos, atravessar o Rio, contentes, já
esperançosos de dias melhores.
Na vinda, havíamos deixado ali uma canoa, desaparecida
nessa ocasião, embora a tivéssemos escondido entre a vegetação ribeirinha. Os
índios teriam-na descoberto, levando-a dali. Mas, quem pode esconder alguma
cousa no mato, que não seja descoberta por esses índios? Para onde levariam os
Nambiquara essas e outras canoas não mais encontradas em nossa marcha de volta?
Teriam-nas arrastado, escondendo-as no mato, ou teriam-nas solto Rio abaixo?
Era preciso passar para a outra margem do Rio. Difícil, mas necessário e não
impossível. Meditávamos. Havia, entre nós, meia dúzia de homens ainda
suficientemente fortes para essa empresa. No entanto, o Chefe repetiu duas ou
três vezes o apelo ao pessoal:
‒ Companheiros,
o tempo não espera! Precisamos passar para a outra margem! Mãos à obra! Já
passa do meio dia! Vamos adiante!
Nos 3 ou 4 cargueiros que nos restavam, não havíamos
deixado perder os couros de bois, que em viagem servem para cobrir a carga,
preservando-a das chuvas. Esse couro serve também para fazer o que se chamava
de “pelotas” que, numa emergência,
substituíam a canoa, para a travessia da bagagem e dos homens que não sabem
nadar. A “pelota”, único instrumento
de que poderíamos nos valer nessa emergência, em pouco estava construída. O
restante de nossas bagagens devia ser atravessada com bastante demora, visto
que a “pelota” não comportava senão
poucos volumes de cada vez. Também na “pelota”
deviam passar os enfermos, que na ocasião pareciam mais depauperados que
doentes, os arreamentos, as bruacas, as cangalhas etc. Nossos companheiros, de
força e ânimo verdadeiramente esgotados, não se ofereciam ao trabalho. Era
necessário o exemplo.
O Major [Rondon] entrou na água e, puxando, por uma
corda presa aos dentes, a “pelota” carregada, levou-a à outra margem. Enquanto
ia e vinha, os homens válidos preparavam a carga para a viagem seguinte,
continuando, assim, até se encontrar tudo na outra margem.
Eram seis horas da tarde quando, terminada a
travessia, pôde o Major descansar, o que ainda não havia feito desde que
iniciara a primeira travessia. Não mostrava sinais de maior fadiga. (LEDUC)
Amílcar Botelho de Magalhães
(1907)
XI – Sauêruiná ou Papagaio – Como os
anteriores, este Rio nasce em plena linha divisória do chapadão formado pelas
cabeceiras Saueruiná-suê e Zolorê-suê. Este nome foi o de um Cacique célebre, e
caracteriza o Caxiniti; um índio Paresí – Caxiniti, ao dar o seu nome,
acrescenta: “filho de Zolorê”.
As coordenadas da origem da cabeceira principal, a
Saueruiná-suê, são: Latitude 14°30’ S; Longitude [Rio de Janeiro] 15°50’ O. É
seu contravertente o braço mais oriental e setentrional do Jauru, cujas
cabeceiras são a Jauru-suê e a Xiviolonô-suê. [...]
Ao cansaço e enfraquecimento geral do pessoal, veio
juntar-se a grande decepção de não encontrarem a canoa com que contavam para a
travessia e que ali deixaram amarrada à margem esquerda, na ida: os índios,
haviam-na feito desaparecer e provavelmente combinaram alguma ação de guerra
baseada nesse ato de hostilidade, cujo efeito moral repercutiu dolorosamente,
tornando evidente o extremo desânimo de todos, menos do Chefe, cuja energia
máscula ia produzir uma das mais belas páginas de sua vida no Sertão.
Testemunha ocular referiu-me, com cores nítidas, o
quadro desalentador que então se apresentou e que lhe parecia o fim trágico de
toda a Expedição: os homens, desanimados, rojavam-se ([1])
ao solo, sem coragem de empreender o mínimo esforço, dominados por invencível
torpor e como que resignados a ali se deixarem matar pelos silvícolas que
flanqueavam a coluna. Rondon, num seguro relance d’olhos, compreendeu o
esgotamento dos seus homens e, pois, a dupla necessidade de atravessar o curso
d’água, para acampar na margem oposta, interpondo esse formidável desfiladeiro
entre a sua gente e os guerreiros Nambiquara; e, Chefe insubstituível em tão
difícil emergência, lançou-se ele próprio à corrente, para salvar a Expedição
de um fracasso, à custa embora de seu esforço isolado e sobre-humano. Desde as
13h00 até às 18h00 da memorável tarde de novembro, nadou ele ininterruptamente
de uma para outra margem, conduzindo a reboque uma pelota de couro cru, dentro
da qual efetuou a travessia de todo o pessoal e de toda a carga da Expedição! Para
ter mais livres os membros e facilitar, por conseguinte, a natação, servia-se
dos dentes para agarrar a ponta do cabo de reboque!
Só os seus oficiais [“noblesse oblige!”] ([2])
recusaram deixar-se conduzir assim pelo valoroso Chefe. O Ten Lyra, de saudosíssima
memória, que era um de seus prestimosos e competentes ajudantes e como tal
presenciou o lance heroico, afirmou-me que, para incutir no seu pessoal a
convicção de não o fatigar semelhante esforço, Rondon se mantinha dentro
d’água, a evoluir contra a correnteza, mesmo durante o tempo em que a pelota
era encostada à margem quer para o embarque, quer para o desembarque!
Para terminar e para que os leitores tenham uma prova
da modéstia desse homem fora do comum, aqui lhes apresento a forma singela com
que narrou ele essa emocionante passagem em seu relatório:
Os índios haviam lançado Rio abaixo a canoa que tinha
servido para nos transportar da margem direita para a esquerda, na nossa ida.
Mas era preciso avançar, isto é, transpor o pessoal, a tropa e a carga para a
outra margem, o que pude executar nadando de uma hora às seis da tarde,
consecutivamente. (MAGALHÃES, 1942)
Aldeia do Buracão à Fz São
Miguel (09.11.2015)
Partimos às 06h30, o Coronel Angonese tinha acordado,
com o Oriovaldo Dal Ponte ‒ Gerente da Fazenda São Miguel, o apoio de uma
embarcação para a transposição do Rio Buriti exatamente no mesmo local
(13°10’45,6” S / 58°33’43,9” O) em que a Expedição Científica Roosevelt-Rondon,
de 1914, o fizera. Apenas 08 km nos separavam do local da passagem e o percurso
foi vencido com tranquilidade, a trilha ainda era nítida e, como sempre,
extremamente retilínea. Chegamos à margem direita do Rio Buriti antes das 08h30
e aguardamos no local da passagem, até as 10h00, sem verificar nenhum movimento
na margem oposta. Tínhamos feito um embarcadouro a montante do local de
desembarque na margem esquerda e um cercado para que os muares não se evadissem
da área. No início da tarde, como nem mesmo a viatura Marruá tivesse aparecido,
o Coronel Angonese resolveu nadar até a margem oposta e tentar contatar o
Oriovaldo. O Angonese ao retornar informou que o Oriovaldo fora até a cidade
buscar o motor de popa que se encontrava em manutenção, só nos restava, portanto,
continuar aguardando.
Finalmente a Marruá, com nossa equipe de apoio do 2° B
Fron, e, quase que imediatamente, uma comitiva chefiada pelo Oriovaldo chegaram
dando-se imediatamente início à transposição. A travessia da primeira mula foi
complicada, a correnteza forte e uma galhada a jusante do embarcadouro
dificultaram a operação. A partir do segundo animal, o Oriovaldo conseguiu
dominar a contento a pequena embarcação permitindo que o Angonese embarcado na
voadeira conduzisse, cada um dos animais, à soga. O processo era simples, o “Boi” trazia os muares e eu e o Sgt Yuri
os conduzíamos até a água de onde atirávamos a corda que estava amarrada ao
cabresto dos animais para o Angonese. O Dr. Marc, na margem direita e o Soldado
Eder, na esquerda filmavam toda a operação. Percorremos 11 km desde o Rio
Buriti até a sede Fazenda São Miguel onde depois de colocarmos a tropa no
cercado, sermos confortavelmente alojados e tomarmos um bom banho fomos
desfrutar do excelente restaurante da Fazenda S. Miguel. A Fazenda São Miguel
faz parte do Grupo Scheffer que possui 11 unidades de produção no Sudoeste e
meio Norte de Mato Grosso num total de 108 mil ha de terras.
Concluímos a 2ª Parte da 2ª Fase da Expedição
Científica R-R cavalgando 395 km em 17 dias (com um de descanso). O ponto alto
foi, sem sombra de dúvida, o apoio fantástico do Comando Militar do Oeste
(CMO), através do 2° B Fron, Cáceres, MT. Tanto o Sgt YURI Vicente Cândido como
o Soldado Paulo ÉDER Pereira Dias, nosso cozinheiro e condutor da viatura
Agrale Marruá foram incansáveis em proporcionar-nos o maior conforto possível
em todos os momentos agindo com uma competência e um profissionalismo
singulares.
Nossa Expedição, até agora, tinha sido muito
tranquila, sem grandes transtornos ou desafios, nenhum desgaste físico
importante, mas carregada de novas e extremamente gratificantes experiências.
Relatos Pretéritos do Rio Buriti
Edgard Roquette-Pinto (1912)
No passo do Rio Buriti existe um posto, guardado por
dois soldados incumbidos da canoa. Havia cerca de dois anos que ali estavam.
(ROQUETTE-PINTO)
Cândido Mariano da Silva Rondon
(1914)
Fomos, depois acampar à margem do Rio Buriti, que
atravessamos em uma balsa, manobrada por dois Paresí, funcionários da Comissão
e tão possuídos do espírito de nossa divisa que, certa vez, atacados pelos Nambiquara,
se limitaram a disparar as armas para o ar. (VIVEIROS)
Theodore Roosevelt (1914)
Acampamos na margem Ocidental do Rio Buriti, onde há
uma balsa movida por dois índios Paresí, funcionários da Comissão sob as ordens
do Coronel Rondon. Cada um deles tinha uma casa coberta de palha e duas esposas
‒ todos aqueles índios eram polígamos. As mulheres manobravam a balsa tão bem
quanto os homens. Não tinham lavoura e durante semanas inteiras viviam apenas
de caça e mel de pau. Com alegria saudaram nossa chegada e o arroz e feijão que
o Coronel lhes deixou além de alguma carne. Estiveram em festa quase a noite
toda. Tinham nas casas redes, cestas e outros objetos; criavam galinhas. Em uma
das casas havia um periquito muito manso, mas pouco amigo de estranhos.
Existem nas proximidades Nambiquara bravios que
recentemente haviam ameaçado atacar os dois balseiros, chegando mesmo a
lançar-lhes algumas flechadas. Os Paresí conseguiram afugentá-los disparando
suas carabinas para o ar e receberam do Coronel os esperados aplausos pela sua
prudência, pois o Coronel fazia tudo o que podia para persuadir os índios a
desistirem de suas lutas sangrentas. As carabinas eram Winchester leves, de
cano curto, do tipo comumente usado pelos seringueiros e por outros que se aventuram
nos ermos selváticos do Brasil.
Existia certo número de seringueiras naquelas
redondezas. Deleitamo-nos com um bom banho no Rio Buriti, embora fosse
impossível nadar contra a violenta correnteza.
Poucos pernilongos mas, por outro lado, piuns de várias
espécies eram um tanto excessivos; variavam de tamanho entre o pólvora e a
grande mutuca preta. As pequenas abelhas sem ferrão não se amedrontavam e com
dificuldade são afastadas quando pousam na mão ou no rosto, mas nunca picam, só
fazendo cócegas na pele. Apareciam também abelhas grandes que havendo pousado,
não ofendiam se não fossem molestadas; no caso contrário enterravam o ferrão
cruel. Os insetos não eram de ordinário inconveniente sério, mas em certas
horas se tornavam tão numerosos que eu tinha de escrever de luvas e com a gaze
na cabeça. Na noite de nossa chegada ao Buriti choveu copiosamente; no dia
seguinte continuou a chover. Pela manhã os muares foram passados na balsa, ao
passo que os bois atravessaram o Rio a nado. Meia dúzia de nossos homens,
brancos, índios e negros ‒ todos nus e dando gritos extravagantes ‒ tocavam os
bois para o Rio, e com braçadas vigorosas nadavam ao lado e atrás deles, cortando
obliquamente a correnteza.
Era um atraente espetáculo ver os chifrudos e grandes
bois espantados nadando valentemente, enquanto os possantes camaradas nus os
tocavam para a frente, inteiramente à vontade na violenta correnteza.
(ROOSEVELT)
Major Amílcar Botelho de
Magalhães (1941)
O Zolaharuiná ou Buriti também nasce na linha
divisória, um pouco mais ao Norte das nascentes do Papagaio, na Latitude Sul
14°20’ e Longitude Oeste 16°. Pelas suas cabeceiras, Zolaharuiná-suê e
Taloré-sue, contravertem com o braço mais ocidental do Jauru e com o mais
oriental do Guaporé. É afluente da margem esquerda do Papagaio. (MAGALHÃES, 1942)
Filmete
https://www.youtube.com/watch?v=-ek3beISFFA&t=456s
https://www.youtube.com/watch?v=rECpPlEurDI&t=23s
https://www.youtube.com/watch?v=wxA1AJchYFM&list=UU49F5L3_hKG3sQKok5SYEeA&index=23
Expedição
Centenária R-R - III Parte - Fase I - YouTube
https://www.youtube.com/watch?v=3bt42u-sGtA&list=UU49F5L3_hKG3sQKok5SYEeA&index=20
Bibliografia
LEDUC,
Luiz. Luiz Leduc e a Saga na Comissão
Rondon ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒
www.luizleducjr.com.br/1parte-historia4.html, 2008.
MAGALHÃES,
Amílcar A. Botelho de. Impressões da
Comissão Rondon – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Companhia Editora Nacional,
1942.
ROQUETTE-PINTO,
Edgard. Rondônia ‒ Brasil ‒ Rio, RJ
‒ Companhia Editora Nacional, 1938.
ROOSEVELT,
Theodore. Através do Sertão do Brasil
‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Companhia Editora Nacional, 1944.
VIVEIROS,
Esther de. Rondon Conta Sua Vida ‒
Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Livraria São José, 1958.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da Academia
de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H