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Hiram Reis e Silva

A Terceira Margem – Parte CCVII - Navegando o Tapajós ‒ Parte XXI - Cerâmica Santarena VIII


A Terceira Margem – Parte CCVII - Navegando o Tapajós ‒ Parte XXI - Cerâmica Santarena VIII - Gente de Opinião

Bagé, 03.05.2021

 

Navegando o Tapajós ‒ Parte XXI

 

Cerâmica Santarena VIII

 

Simbolismo da Cerâmica Santarena 


Pouco depois de nascer, recebe o bebê um nome, tirado de planta ou animal; esse nome, porém, muda-o ele diversas vezes em sua vida, logo que realiza alguma façanha heroica, na guerra ou na caça. Acontece tomar assim a mesma pessoa cinco ou seis nomes, um após outro.
(SPIX & MARTIUS)

 

A ocorrência da representação de animais na decoração de alguns utensílios e principalmente em urnas funerárias, e a identificação dessas espécies na fauna da região, possibilitou que se atribuísse um caráter mágico-religioso a essas representações, que estariam ligadas a histórias míticas, com base em analogias etnográficas. (SCHAAN)

 

Símbolos

 

Os pesquisadores, ao longo dos tempos, tentaram em vão identificar o simbolismo dos adereços antropomorfos e zoomorfos que compõem a refinada Arte de Santarém. Cada traço, cada representação geométrica ou imagem têm o seu significado, a sua motivação. Os animais representados em cada peça não foram selecionados aleatoriamente, alguns deles são seres místicos cultuados pelos nativos, outros identificam o clã a que pertenceram os ancestrais reverenciados nas urnas funerárias ou mesmo o nome do morto ou alguma façanha heroica, na guerra ou na caça que marcou sua passagem terrena.

 

Depois de comparar, analisar os Costumes, Organizações Sociais e Ritos Fúnebres de diversas etnias, vou esboçar uma teoria a respeito dos ícones cultuados pelos incríveis Tapajó. Infelizmente os desbravadores e religiosos do passado se preocuparam mais em condenar sua “idolatria” do que entender sua cultura, do contrário não estaríamos aqui, hoje, tentando montar este intrincado mosaico na tentativa de interpre­tar sua magnífica arte Cerâmica e seus elaborados ritos pretéritos.

 

[...] linguagem, às vezes bem expressiva que nos vai contando hábitos, crenças, gostos, lendas, preferências desse povo extinto. (BARATA, 1950)

 

Alguns elementos são muito constantes nos vasos de gargalo e cariátides tais como: o Urubu-Rei, o Mutum-cavalo, o Jacaré, o Morcego e fundamentalmente a Rã. Estes animais são reverenciados, respeitados ou temidos, por diversas etnias, por uma série de razões que elencarei a seguir. Logicamente os Tapajó consideravam estes seres tão importantes quanto as demais tribos tendo em vista se encontrar muita semelhança nas lendas e costumes destes povos.

 

Urubu-Rei

 

O urubu-Rei recebe destaque especial no imaginário indígena que o considera como o dono do fogo, chefe das demais aves e o mestre dos ventos. Ele faz parte do repertório das Lendas e Mitos de diversos povos como os Parintintins, os Kamaiurá, os Kuikúru, os Tembé e certamente estava incorporado às Lendas Tapajó. No ritual de passagem ele é o guia responsável por acolher o espírito do morto e encaminhá-lo para outras esferas – um verdadeiro Hermes Tupiniquim.

 

Nos vasos de cariátides ou de gargalo encontramo-lo pousado na voltado para o centro da peça de asas fechadas numa posição de espera preparando-se para acolher alma do defunto e, depois, de asas abertas voltado para fora da peça voando para conduzi-la ao reino eterno.

 

Mutum-cavalo

 

Algumas etnias consideram que a constelação do “Cruzeiro do Sul” é na verdade um enorme mutum no vasto campo do céu, outras acham que a Cobra Grande, que representa o Criador, pode nascer de um ovo de mutum. Segundo os Mayoruna, que antes só comiam terra, o Mestre Mutum os levou para sua terra onde ele lhes ensinou o que comer e como preparar os alimentos.

 

Jacaré-açu

 

O Jacaré-açu pode chegar até setes metros de comprimento e o seu tamanho descomunal, ainda nos dias de hoje, provoca medo e respeito nos povos ribeirinhos.

 

O magnífico réptil, além de ocupar o topo da cadeia alimentar, não encontrava adversários, à sua altura, nem mesmo entre os formidáveis guerreiros Tapajó. Ele era temido, respeitado, adorado até e, por isso mesmo, tão presente nos adornos dos vasos rituais.

 

Morcego

 

Franz Kreuther Pereira, no seu livro Painel de lendas & mitos da Amazônia faz o seguinte relato a respeito do morcego:

 

O Cãoera é uma espécie de “morcegão”, um morcego muito grande do porte de um urubu, que pode sugar todo o sangue de uma pessoa adormecida sem que ela desperte e, em seguida, devorá-la. Adélia Engrácia dá-nos três versões desse mito, recolhidas junto aos Índios Mura. Nela encontramos a informação que o Cãoera habita os buracos na terra e surge quando se faz “misturado de jabuti e outras carnes, no mato” ou “quando se queima pelos ou penas de animais”. Também pode surgir – adverte Adélia – quando “se joga espinha de peixe n’água” ou até quando “se grita na mata”. Aparentemente a área de abrangência do mito é a região fronteiriça às Guianas, território das famílias Aruak, Karib e também Tupi, porém a estudiosa dos Mura ressalta que, em suas viagens pelos Rios Negro e Xingu, jamais ouviu qualquer referência a esse ser sobrenatural. (PEREIRA)

 

Rãs (Muiraquitã)

 

É fácil entender por que a pequena rã amazônica recebia tanto destaque na Cerâmica ritual de Santarém. A secreção peçonhenta do pequeno batráquio intimidava os adversários e permitia aos Tapajó sobrepujarem facilmente todos os seus oponentes no campo de batalha. Eles eram os únicos, naquela região, a dominar a tecnologia de envenenar as flechas e isso os colocava em condições de vantagem sobre as demais tribos. O veneno, certamente, não era o curare pelos motivos que vou expor a seguir.

 

Curare

 

Carvajal, Acuña, Heriarte, dentre outros cronistas e pesquisadores pretéritos, mencionam o uso de flechas envenenadas por diversas tribos da Amazônia.

 

A maioria dos relatos menciona que o veneno utilizado era o curare. A primeira referência escrita que existe sobre o curare aparece nas cartas do historiador e médico italiano Pietro Martire d’Anghiera (1457-1526). As cartas foram impressas parcialmente em 1504, 1507 e 1508, e sua obra completa foi publicada em 1516 com o nome “De Orbe Novo”. Pietro fala de um soldado mortalmente ferido por flechas envenenadas durante uma Expedição ao Novo Mundo e escreve uma carta ao Papa Leão X falando das propriedades do curare que reproduzo um trecho abaixo:

 

O Curare tem uma característica especial – própria do veneno americano – bloquear a transmissão neuromuscular nas sinapses e, portanto, causar a morte por paralisia dos músculos respiratórios. Usado, antes, apenas como veneno, hoje, está sendo aplicado na medicina: seus princípios ativos sintetizados são coadjuvantes essenciais e universalmente difundidos como anestésicos nas cirurgias. (MOTTIN)

 

José Monteiro de Noronha, em 1768, faz o seguinte relato:

 

121. Dos Índios, que habitam no Japurá, só são antropófagos os das nações Miranya, e Umauá. Para a caça, usam todos de esgravatana ([1]) e, para a guerra, de escudos cobertos de peito de jacaré ou couro de anta; cuidarus, que são uns paus de cinco palmos, mais e menos, de comprido, chatos, bem levigados ([2]), esquinados ([3]) de 2 polegadas de largo, e mais largos na ponta e lanças feitas de pau vermelho, cujas pontas, e também as das flechas, que despedem com as esgravatanas são envenenadas.

 

O veneno é feito da cortiça de certo cipó, ou pau flexível chamado “uirari”, de superfície escabrosa, um palmo mais e menos de diâmetro, e folhas como as da maniva. Moída a casca, ou cortiça do dito cipó e borrifados os pós com água, os põem a destilar, e o sumo, que corre, fervem ao fogo até ficar na consistência de extrato, ou unguento. Ao dito “uirari” ajuntam os sumos de outros cipós, e vários venenos, que conhecem, para o fazerem mais ativo. (NORONHA)

 

O naturalista alemão Alexander Von Humboldt e seu companheiro francês Aimé Bonpland, em 1800, exploraram o Rio Orenoco e Rio Negro, demonstrando que as bacias do Orenoco e da Amazônica comunicam-se entre si pelo Canal do Cassiquiare. Na oportunidade, ele faz um interessante relato sobre o curare, reproduzido na interessante obra “O Cosmos de Humboldt”:

 

O principal artigo de exportação de Esmeralda era uma forma particularmente fina de curare, que era vendida a um preço elevado. Quando Humboldt chegou, a maioria dos Índios acabava de voltar de uma Expedição de coleta de plantas usadas na produção do veneno. Sua volta foi marcada por um grande festival entre os homens, com dois dias de banquete à base de macaco assado e dança ao som da música de toscas flautas de caniço. Enquanto seus vizinhos se embriagavam, o Índio velho, encarregado de fabricar o veneno fazia seu trabalho mortal, permitindo que Humboldt levasse para a Europa a primeira receita detalhada da droga. Primeiro, o Mestre do veneno pegava a casca dos cipós, já previamente retirada e esmagada em fibras. A isso, acrescentava água, filtrada lentamente através da casca num cone feito de folhas de bananeira e palmeira.

 

O líquido amarelo resultante era então fervido em panelas grandes e rasas, sendo provado de vez em quando pelo Mestre do veneno e ficando cada vez mais amargo à medida que fervia. [Humboldt também provou o veneno, que era atóxico, desde que não entrasse em contato direto com o sangue; na verdade, era bebido como um paliativo para o estômago, o que era absolutamente seguro – desde que a pessoa não tivesse cortes nem feridas abertas na boca ou no aparelho digestivo]. Quando o líquido atingia a concentração desejada, o Mestre do veneno coava-o em folhas de bananeira enroladas para remover a matéria fibrosa. Mesmo nessa forma concentrada, o veneno ainda era muito ralo para aderir a uma ponta de flecha, então era misturado em seguida com o sumo viscoso de outra planta para encorpar; isso também dava ao curare sua cor alcatroada característica. A preparação acabada era então vertida em pequenas cabaças, nas quais era vendida. Enquanto trabalhava, o Mestre do veneno admoestou seus visitantes. “Sei”, disse ele:

 

que os brancos têm o segredo de fazer sabão...

 

Cujos mistérios ele parecia achar que só ficavam atrás dos do curare:

 

e aquele pó preto que tem o defeito de fazer barulho quando usado para matar animais. O curare, que preparamos de pai para filho, é superior a qualquer coisa que vocês podem fazer lá embaixo. É o sumo de uma erva que mata em silêncio, sem ninguém saber de onde vem o golpe.

 

Aplicado à ponta de uma flecha e lançado por um canudo comprido, o curare maximizava a produtividade do caçador, uma vez que vários macacos podiam cair silenciosamente no chão antes que o resto do bando desconfiasse; com uma espingarda, podia-se caçar no máximo um animal por vez, porque os outros se dispersavam ao primeiro tiro.

 

O curare matava uma ave em dois ou três minutos e um porco em dez a doze. Segundo os missionários, a carne abatida de outra maneira simplesmente não era tão saborosa. Produzindo seus sintomas característicos de tonteira, náusea, sede extrema e dormência generalizada, o curare também era bem capaz de matar seres humanos, como haviam descoberto os conquistadores. O próprio Humboldt logo teve uma experiência que lhe serviu de lição sobre o cuidado com que se devia manipular o veneno. Ao deixar Esmeralda, ele guardara uma cabaça com curare ao lado de suas roupas. Com o calor, o veneno derretera e molhara uma meia. Quando já ia calçar a meia, por acaso ele sentiu o líquido gelatinoso a tempo: uma vez que seus pés estavam cobertos de picadas de insetos, o curare certamente teria entrado em sua corrente sanguínea, com um efeito fatal. (HELFERICH)

 

Bibliografia

 

BARATA, Frederico. A Arte Oleira dos Tapajó: IBrasil – Belém, PA – Revista do Instituto de Antropologia e Etnologia do Pará, 1950.

 

HELFERICH, Gerard. O Cosmos de HumboldtBrasil – Rio de Janeiro, RJ – Editora Objetiva, 2005.

 

MOTTIN, Antônio J. S. Italianos no Brasil: Contribuições na Literatura e nas Ciências: Séculos XIX e XX – Brasil – Porto Alegre, RS – EDIPUCRS, 1999.

 

PEREIRA, Franz Kreuther. Painel de Lendas & Mitos da Amazônia Brasil Belém, PA Editora Academia Paraense de Letras, 2001.

 

SCHAAN, Denise Pahl. A Linguagem Iconográfica da Cerâmica Marajoara – Brasil – Porto Alegre, RS – EDIPUCRS, 1997.

 

SPIX & MARTIUS, Johann Baptist Von Spix & Carl Friedrich Philipp Von Martius. Viagem pelo Brasil (1817 – 1820) – Brasil – São Paulo, SP – Edições Melhoramentos, 1968.

 

Solicito Publicação

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

·     Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

·     Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);

·     Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

·     Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

·     Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

·     Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

·     Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

·     Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

·     Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

·     Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

·     Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

·     Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

·     Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

·     E-mail: hiramrsilva@gmail.com.



[1]    Esgravatana: zarabatana.

[2]    Levigados: lisos.

[3]    Esquinados: angulosos.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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