Segunda-feira, 3 de maio de 2021 - 10h36
Bagé, 03.05.2021
Navegando
o Tapajós ‒ Parte XXI
Cerâmica Santarena VIII
Simbolismo da Cerâmica Santarena
Pouco depois de nascer, recebe o bebê um nome,
tirado de planta ou animal; esse nome, porém, muda-o ele diversas vezes em sua
vida, logo que realiza alguma façanha heroica, na guerra ou na caça. Acontece
tomar assim a mesma pessoa cinco ou seis nomes, um após outro.
(SPIX & MARTIUS)
A ocorrência da representação de animais na
decoração de alguns utensílios e principalmente em urnas funerárias, e a
identificação dessas espécies na fauna da região, possibilitou que se
atribuísse um caráter mágico-religioso a essas representações, que estariam
ligadas a histórias míticas, com base em analogias etnográficas. (SCHAAN)
Símbolos
Os pesquisadores, ao
longo dos tempos, tentaram em vão identificar o simbolismo dos adereços antropomorfos
e zoomorfos que compõem a refinada Arte de Santarém. Cada traço, cada
representação geométrica ou imagem têm o seu significado, a sua motivação. Os
animais representados em cada peça não foram selecionados aleatoriamente,
alguns deles são seres místicos cultuados pelos nativos, outros identificam o
clã a que pertenceram os ancestrais reverenciados nas urnas funerárias ou mesmo
o nome do morto ou alguma façanha heroica, na guerra ou na caça que marcou sua
passagem terrena.
Depois de comparar, analisar
os Costumes, Organizações Sociais e Ritos Fúnebres de diversas etnias, vou
esboçar uma teoria a respeito dos ícones cultuados pelos incríveis Tapajó. Infelizmente
os desbravadores e religiosos do passado se preocuparam mais em condenar sua “idolatria” do que entender sua cultura,
do contrário não estaríamos aqui, hoje, tentando montar este intrincado mosaico
na tentativa de interpretar sua magnífica arte Cerâmica e seus elaborados
ritos pretéritos.
[...] linguagem, às vezes bem expressiva que
nos vai contando hábitos, crenças, gostos, lendas, preferências desse povo
extinto. (BARATA, 1950)
Alguns elementos são
muito constantes nos vasos de gargalo e cariátides tais como: o Urubu-Rei, o
Mutum-cavalo, o Jacaré, o Morcego e fundamentalmente a Rã. Estes animais são
reverenciados, respeitados ou temidos, por diversas etnias, por uma série de
razões que elencarei a seguir. Logicamente os Tapajó consideravam estes seres
tão importantes quanto as demais tribos tendo em vista se encontrar muita
semelhança nas lendas e costumes destes povos.
Urubu-Rei
O urubu-Rei recebe
destaque especial no imaginário indígena que o considera como o dono do fogo,
chefe das demais aves e o mestre dos ventos. Ele faz parte do repertório das
Lendas e Mitos de diversos povos como os Parintintins, os Kamaiurá, os Kuikúru,
os Tembé e certamente estava incorporado às Lendas Tapajó. No ritual de
passagem ele é o guia responsável por acolher o espírito do morto e
encaminhá-lo para outras esferas – um verdadeiro Hermes Tupiniquim.
Nos vasos de cariátides
ou de gargalo encontramo-lo pousado na voltado para o centro da peça de asas
fechadas numa posição de espera preparando-se para acolher alma do defunto e,
depois, de asas abertas voltado para fora da peça voando para conduzi-la ao reino
eterno.
Mutum-cavalo
Algumas etnias
consideram que a constelação do “Cruzeiro
do Sul” é na verdade um enorme mutum no vasto campo do céu, outras acham
que a Cobra Grande, que representa o Criador, pode nascer de um ovo de mutum.
Segundo os Mayoruna, que antes só comiam terra, o Mestre Mutum os levou para
sua terra onde ele lhes ensinou o que comer e como preparar os alimentos.
Jacaré-açu
O Jacaré-açu pode
chegar até setes metros de comprimento e o seu tamanho descomunal, ainda nos
dias de hoje, provoca medo e respeito nos povos ribeirinhos.
O magnífico réptil,
além de ocupar o topo da cadeia alimentar, não encontrava adversários, à sua
altura, nem mesmo entre os formidáveis guerreiros Tapajó. Ele era temido,
respeitado, adorado até e, por isso mesmo, tão presente nos adornos dos vasos
rituais.
Morcego
Franz Kreuther Pereira,
no seu livro Painel de lendas & mitos da Amazônia faz o seguinte relato a
respeito do morcego:
O Cãoera é uma espécie de “morcegão”,
um morcego muito grande do porte de um urubu, que pode sugar todo o sangue de
uma pessoa adormecida sem que ela desperte e, em seguida, devorá-la. Adélia
Engrácia dá-nos três versões desse mito, recolhidas junto aos Índios Mura. Nela
encontramos a informação que o Cãoera habita os buracos na terra e surge quando
se faz “misturado de jabuti e outras
carnes, no mato” ou “quando se queima
pelos ou penas de animais”. Também pode surgir – adverte Adélia – quando “se joga espinha de peixe n’água” ou até
quando “se grita na mata”.
Aparentemente a área de abrangência do mito é a região fronteiriça às Guianas,
território das famílias Aruak, Karib e também Tupi, porém a estudiosa dos Mura
ressalta que, em suas viagens pelos Rios Negro e Xingu, jamais ouviu qualquer
referência a esse ser sobrenatural. (PEREIRA)
Rãs
(Muiraquitã)
É fácil entender por
que a pequena rã amazônica recebia tanto destaque na Cerâmica ritual de
Santarém. A secreção peçonhenta do pequeno batráquio intimidava os adversários
e permitia aos Tapajó sobrepujarem facilmente todos os seus oponentes no campo
de batalha. Eles eram os únicos, naquela região, a dominar a tecnologia de
envenenar as flechas e isso os colocava em condições de vantagem sobre as
demais tribos. O veneno, certamente, não era o curare pelos motivos que vou
expor a seguir.
Curare
Carvajal, Acuña,
Heriarte, dentre outros cronistas e pesquisadores pretéritos, mencionam o uso
de flechas envenenadas por diversas tribos da Amazônia.
A maioria dos relatos
menciona que o veneno utilizado era o curare. A primeira referência escrita que
existe sobre o curare aparece nas cartas do historiador e médico italiano
Pietro Martire d’Anghiera (1457-1526). As cartas foram impressas parcialmente
em 1504, 1507 e 1508, e sua obra completa foi publicada em 1516 com o nome “De Orbe Novo”. Pietro fala de um soldado
mortalmente ferido por flechas envenenadas durante uma Expedição ao Novo Mundo
e escreve uma carta ao Papa Leão X falando das propriedades do curare que
reproduzo um trecho abaixo:
O Curare
tem uma característica especial – própria do veneno americano – bloquear a
transmissão neuromuscular nas sinapses e, portanto, causar a morte por
paralisia dos músculos respiratórios. Usado, antes, apenas como veneno, hoje,
está sendo aplicado na medicina: seus princípios ativos sintetizados são
coadjuvantes essenciais e universalmente difundidos como anestésicos nas
cirurgias. (MOTTIN)
José Monteiro de
Noronha, em 1768, faz o seguinte relato:
121. Dos Índios, que habitam no Japurá, só são
antropófagos os das nações Miranya, e Umauá. Para a caça, usam todos de
esgravatana ([1]) e, para
a guerra, de escudos cobertos de peito de jacaré ou couro de anta; cuidarus,
que são uns paus de cinco palmos, mais e menos, de comprido, chatos, bem
levigados ([2]),
esquinados ([3]) de 2
polegadas de largo, e mais largos na ponta e lanças feitas de pau vermelho,
cujas pontas, e também as das flechas, que despedem com as esgravatanas são
envenenadas.
O veneno é
feito da cortiça de certo cipó, ou pau flexível chamado “uirari”, de superfície escabrosa, um palmo mais e menos de
diâmetro, e folhas como as da maniva. Moída a casca, ou cortiça do dito cipó e
borrifados os pós com água, os põem a destilar, e o sumo, que corre, fervem ao
fogo até ficar na consistência de extrato, ou unguento. Ao dito “uirari” ajuntam os sumos de outros
cipós, e vários venenos, que conhecem, para o fazerem mais ativo. (NORONHA)
O naturalista alemão
Alexander Von Humboldt e seu companheiro francês Aimé Bonpland, em 1800,
exploraram o Rio Orenoco e Rio Negro, demonstrando que as bacias do Orenoco e
da Amazônica comunicam-se entre si pelo Canal do Cassiquiare. Na oportunidade,
ele faz um interessante relato sobre o curare, reproduzido na interessante obra
“O Cosmos de Humboldt”:
O principal artigo de exportação de Esmeralda era uma forma particularmente
fina de curare, que era vendida a um preço elevado. Quando Humboldt chegou, a
maioria dos Índios acabava de voltar de uma Expedição de coleta de plantas
usadas na produção do veneno. Sua volta foi marcada por um grande festival
entre os homens, com dois dias de banquete à base de macaco assado e dança ao
som da música de toscas flautas de caniço. Enquanto seus vizinhos se
embriagavam, o Índio velho, encarregado de fabricar o veneno fazia seu trabalho
mortal, permitindo que Humboldt levasse para a Europa a primeira receita
detalhada da droga. Primeiro, o Mestre do veneno pegava a casca dos cipós, já
previamente retirada e esmagada em fibras. A isso, acrescentava água, filtrada
lentamente através da casca num cone feito de folhas de bananeira e palmeira.
O líquido amarelo resultante era então fervido em panelas grandes e rasas,
sendo provado de vez em quando pelo Mestre do veneno e ficando cada vez mais
amargo à medida que fervia. [Humboldt também provou o veneno, que era atóxico,
desde que não entrasse em contato direto com o sangue; na verdade, era bebido
como um paliativo para o estômago, o que era absolutamente seguro – desde que a pessoa não tivesse cortes nem feridas
abertas na boca ou no aparelho digestivo]. Quando o líquido atingia a
concentração desejada, o Mestre do veneno coava-o em folhas de bananeira
enroladas para remover a matéria fibrosa. Mesmo nessa forma concentrada, o
veneno ainda era muito ralo para aderir a uma ponta de flecha, então era
misturado em seguida com o sumo viscoso de outra planta para encorpar; isso
também dava ao curare sua cor alcatroada característica. A preparação acabada
era então vertida em pequenas cabaças, nas quais era vendida. Enquanto
trabalhava, o Mestre do veneno admoestou seus visitantes. “Sei”, disse ele:
que os
brancos têm o segredo de fazer sabão...
Cujos mistérios ele parecia achar que só ficavam atrás dos do curare:
e aquele pó
preto que tem o defeito de fazer barulho quando usado para matar animais. O
curare, que preparamos de pai para filho, é superior a qualquer coisa que vocês
podem fazer lá embaixo. É o sumo de uma erva que mata em silêncio, sem ninguém
saber de onde vem o golpe.
Aplicado à ponta de uma flecha e lançado por um canudo comprido, o curare
maximizava a produtividade do caçador, uma vez que vários macacos podiam cair
silenciosamente no chão antes que o resto do bando desconfiasse; com uma
espingarda, podia-se caçar no máximo um animal por vez, porque os outros se
dispersavam ao primeiro tiro.
O curare matava uma ave em dois ou três minutos e um porco em dez a doze.
Segundo os missionários, a carne abatida de outra maneira simplesmente não era
tão saborosa. Produzindo seus sintomas característicos de tonteira, náusea,
sede extrema e dormência generalizada, o curare também era bem capaz de matar
seres humanos, como haviam descoberto os conquistadores. O próprio Humboldt
logo teve uma experiência que lhe serviu de lição sobre o cuidado com que se
devia manipular o veneno. Ao deixar Esmeralda, ele guardara uma cabaça com
curare ao lado de suas roupas. Com o calor, o veneno derretera e molhara uma
meia. Quando já ia calçar a meia, por acaso ele sentiu o líquido gelatinoso a
tempo: uma vez que seus pés estavam cobertos de picadas de insetos, o curare
certamente teria entrado em sua corrente sanguínea, com um efeito fatal.
(HELFERICH)
Bibliografia
BARATA,
Frederico. A Arte Oleira dos Tapajó: I
– Brasil
– Belém, PA – Revista do Instituto de Antropologia e
Etnologia do Pará, 1950.
HELFERICH, Gerard. O Cosmos de Humboldt – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Editora Objetiva, 2005.
MOTTIN, Antônio J. S. Italianos no Brasil: Contribuições na
Literatura e nas Ciências: Séculos XIX e XX – Brasil – Porto Alegre, RS –
EDIPUCRS, 1999.
PEREIRA,
Franz Kreuther. Painel de Lendas &
Mitos da Amazônia – Brasil – Belém, PA – Editora Academia
Paraense de Letras, 2001.
SCHAAN,
Denise Pahl. A Linguagem Iconográfica da
Cerâmica Marajoara – Brasil – Porto Alegre, RS – EDIPUCRS, 1997.
SPIX
& MARTIUS, Johann Baptist Von Spix & Carl Friedrich Philipp Von
Martius. Viagem pelo Brasil (1817 –
1820) – Brasil – São Paulo, SP – Edições Melhoramentos, 1968.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
· Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul
(1989)
· Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA)
(2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do
Exército (DECEx);
· Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar
do Sul (CMS)
· Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira
(SAMBRAS);
· Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil
– RS (AHIMTB – RS);
· Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande
do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER –
RO)
· Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do
Sul (AMLERS)
· Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola
Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H