Sexta-feira, 18 de junho de 2021 - 06h02
Bagé, 18.06.2021
Expedição
Centenária Roosevelt-Rondon
1ª Parte – XXI
Forte Coimbra – III
João
Severiano da Fonseca (1875)
(Continuação)
No alto, via-se a porta,
como um pedaço de céu, dando um suave contentamento aos olhos e coração, e
permitindo perceber pendentes do teto, como filigranas enormes, as tão
caprichosas concreções: no chão, ora pedregoso, ora de finíssima areia branca,
poças de água salobra eminentemente carregada de carbonato calcário, essa mesma
água que, merejando ([1])
das abóbadas, tinha sido a produtora de tão notáveis maravilhas, dissolvendo as
terras, decompondo-se ao contato do ar e perdendo parte do ácido carbônico que
a satura; espessando-se pouco a pouco, ficando suspensa às abóbadas ou caindo
em grossas gotas cheias daquele sal, as quais, gradualmente se solidificando e
se justapondo, vão “pari-passu”
crescendo o engrossando de volume, graças à nova “lympha” que incessantemente sobre elas desce e às novas gotas que
aí cristalizam.
Descemos uns quarenta
companheiros; e os primeiros que baixamos gozamos, ainda, de um agradável
espetáculo que não foi dado à todos fruir. Era curioso e importante ver, tênue
luz dessa penumbra, os retardatários agarrados às asperezas das rochas com uma
mão, enquanto na outra sustinham a lanterna ou o archote ainda apagados,
descendo a escadaria, pondo em prática todas as leis do equilíbrio para não se
despenharem nos abismos, cujas enormes goelas viam negras e medonhas,
escancaradas à direita e à esquerda.
Como já o disse, pequenas
poças d’água salitrada, rasas e de fina e branca areia, aparecem aqui e ali,
entre o pedregal que assoalha o terrapleno. Numa dessas poças encontramos um
crânio de jacaré, já muito antigo e gasto pela ação das águas; talvez o de
algum descendente do que o ajudante de Coimbra, F. Rodrigues do Prado, aqui
encontrou há oitenta anos, já com um braço de menos, que alguma onça lhe
roubara.
Contornando para a
esquerda as pedras da descida, e olhando-se para cima, vê-se a avantajada
altura do precipício que ladeia a escadaria, e que começa com ela, desde a
porta. Nesse primeiro piso, que é a antessala de tão maravilhosa estância há
várias saídas para outras tantas cavernas, que suponho pequeninas e sem
interesse, visto que não tem sido praticadas. Os guias e práticos do local que
conduzem os visitantes, encaminham-nos logo para a grande caverna, que
denominam salão e nenhuma notícia dão sobre elas; entretanto não é por medo,
visto que têm-se animado à maiores cometimentos, como o da passagem de uma
estreita e comprida galeria, mais soterrada que as outras cavernas, com as
quais estabelece a comunicação, escuríssima e completamente alagada e quase sem
ar, o que impede-lhe o uso da luz artificial. Se fosse o perigo a causa de não
serem visitadas, se acabassem em precipícios e abismos, disso restaria memória,
a tradição. Um dos nossos companheiros, o Sr. farmacêutico Mello e Oliveira,
penetrou alguns passos num desses escuríssimos antros, que ficava quase
fronteiro à descida mas não se aventurou além.
Formam as paredes das
diferentes grutas vastas concreções estalactiformes manifestadas sob formas as
mais curiosas. Aqui e ali caem em panos como formosas cascatas, que a natureza
tivesse petrificado, ou como acinzentadas cortinas, com as suas dobras, os seus
fofos ([2])
e apanhados, cobrindo em parte as falhas do rochedo – que são as portas que
comunicam as diferentes grutas, ou melhor salas.
Não fantasio, nem se
julgue que minhas comparações sejam frutos da imaginação ajoviada ([3])
pelas maravilhas que vê: são verdadeiros simulacros de cascatas, são cortinas,
colunas, coxins e rendilhados esses processos calcários.
Causam admiração e prazer
vê-los; e vendo-os o espírito é obrigado ao recolhimento e à reflexão. Está-se,
numa dessas ocasiões em que na frase de Vitor Hugo, qualquer que seja a posição
do homem, a alma está de joelhos.
Transposta uma dessas
cortinas, à direita, e se me não engano, a que recobre a Porta maior, entra-se
numa escavação atulhada de penedos irregulares, postos a nu pela desagregação e
dissolução das terras, e em seguida no salão, o salão nobre desse estupendo
palácio, que, sem dúvida alguma, é um “espécimen”
de tudo o que há de mais bizarro e caprichoso nas maravilhas da natureza.
Apesar dos inúmeros
fogachos que levávamos, não se podia descortinar tudo à satisfação; acendeu-se
uma tigelinha de sinais, única que trazíamos, cuja luz brilhantíssima,
patenteou-nos, sob novos prismas, esse quadro assombroso.
O clarão das luzes dava um
tom irizado indescritível à atmosfera da gruta, variando desde o deslumbrante
escarlate do fogo, até o violate e o azul-marinho. Parecia que nas paredes
treluziam constelações de rutilantes gemas. Miríades de estrelas de cambiante
fulgor caíam em chuvas de fogo, reproduzindo de uma maneira fascinante, e em
maravilhosa escala esse fenômeno celeste, tão comum nas nossas noites de verão,
das estrelas cadentes; ou antes, parecia que invisíveis fadas abriam inesgotáveis
escrínios e despejavam a nossos pés diamantes, rubis, safiras, esmeraldas. Tudo
brilhava… e ainda as poças e veios d’água que tínhamos aos pés, e umectavam as
pedras do chão, reproduziam e estrelavam os mil fulgores que enchiam os ares.
A princípio, deslumbrado
com o brilho da luz da tigelinha, não pude fazer uma ideia perfeita do que se
apresentava a meus olhos, e somente, quando coloquei-a longe de mim, ao ouvir
as estrepitosas exclamações dos companheiros, é que pude melhor apreciar o
espetáculo sobrenatural e indizível que apresentava esse “palácio de
fadas”. Mas sua
duração foi pouca para satisfazer meus desejos: quando apagou-se ainda era
brilhante e esplendida a caverna, alumiada à luz de tantos archotes; Mas o
deslumbramento e o fulgor de sua fascinadora magnificência tinham-se amortecido
de muito.
A maior parte dos
companheiros deu-se por satisfeita e voltou; eu e outro, o Sr. João Cândido de
Faria, negociante do Rio Grande do Sul, seguindo dois soldados do Forte que
quiseram servir-nos de guias, aventuramo-nos a percorrer outras dependências da
majestosa caverna. Passamos à terceira sala, ora subindo, ora descendo as
asperezas de uma espécie de muralha de rochedos, de uns três metros de alto.
Era a sala
por demais irregular e atravancada de penedos que ocultavam socavões lôbregos ([4]),
escuros e talvez profundos, e que não pudemos vantajosamente apreciar por
dispormos de poucas luzes.
Aí, entre aquela muralha e
um grande bloco isolado, à direita, tem começo a galeria de que acima falei,
verdadeiro túnel que liga essa sala com outras da direita, isto é, o primeiro
grupo de cavernas e o menos conhecido, com o segundo e quase geralmente
ignorado.
Tínhamos vindo bem
acondicionados para o frio, que diziam ser excessivo na gruta: achamos o
contrário e estávamos em junho. Tiramos as roupas pesadas, e eu conservei o
colete, não só para conduzir o relógio, como para não me desagasalhar muito o
tórax.
Entramos no túnel, que aí
seria de uns dois metros de alto e mais de cem de largo, e logo reconhecemos
que seu leito baixava em relação ao solo das outras cavernas. A água, que aí
não chegava ao terço inferior da perna, em pouco subiu aos joelhos, e a cada
passo que dávamos ia-se elevando até chegar à cintura, pelo que vi-me na
necessidade de ir suspendendo e dobrando o colete para evitar que o relógio se
molhasse. Não tinha previsto essa emergência... e veio-me então um tal ou qual
arrependimento de, pelo menos, não ter-me também livrado daquela peça do traje.
Contudo essa inadvertência foi-me de proveito.
Após alguns passos, já
caminhávamos curvados para não batermos com as cabeças nas asperezas da parede
superior do túnel, tanto ia este baixando na altura ao tempo que a água
continuava a subir.
Compreendi que o túnel ia
soterrando-se cada vez mais: ocorreu-me retroceder, mas pode mais em mim a
curiosidade de continuar essa maravilhosa viagem e de conhecer esses segredos
do que o receio de perder o relógio.
A passagem tornava-se cada
vez mais difícil, abaixando-se mais e mais na altura: mas agora a água
decrescia também, o que notei com espanto e muita satisfação; diminuindo tanto,
que ocasião houve de só podermos caminhar de rastros, e ainda assim batendo a
cada passo com a cabeça nas asperezas da abóbada; e, entretanto, logrei a
felicidade de conservar ileso o relógio. Sem dúvida, agora o solo do túnel se
elevava também e era o que fazia a angustura do passo.
Graças àquele incidente,
pude facilmente estabelecer essas comparações de profundidade, altura e
horizontalidade da galeria; mas infelizmente não me é dado rigorizar a sua
extensão nem a direção que segue.
Para atender à primeira
faltou-me a isenção de ânimo, pela ânsia e mesmo susto, difícil de evitar à
quem por aí passa, e mormente pela primeira vez, como eu; para a segunda
fora-me necessário uma bússola. Será, porém, de uns trinta metros e segue quase
numa linha angular. À meio, mais ou menos, do seu percurso avistam-se as duas
aberturas, de entrada e de saída, brancas de uma luz crepuscular, mas ainda
assim bastante sensível na espessa escuridão do túnel.
Filmete
https://www.youtube.com/watch?v=_fCg7y98JIU
Bibliografia
FONSECA, João Severiano da. Viagem
ao redor do Brasil 1875-1878 (Tomo I) – Brasil – Rio de Janeiro, RJ –
Tipografia de Pinheiro & C., 1880-1881.
Solicito
Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro,
Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador,
Escritor e Colunista;
·
Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
·
Ex-Professor do
Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
·
Ex-Pesquisador do
Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
·
Ex-Presidente do
Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
·
Ex-Membro do 4°
Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
·
Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
·
Membro da Academia de
História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
·
Membro do Instituto
de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
·
Membro da Academia de
Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
·
Membro da Academia
Vilhenense de Letras (AVL – RO);
·
Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
·
Colaborador Emérito
da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
·
Colaborador Emérito
da Liga de Defesa Nacional (LDN).
·
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Galeria de Imagens
* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
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