Quinta-feira, 20 de maio de 2021 - 10h20
Bagé, 20.05.2021
Navegando o Tapajós ‒ Parte XXIV
Redescobrindo o Berço
da Humanidade
História
da Companhia de Jesus
(Padre Serafim Leite)
A partir da virada do século, tive a oportunidade de ler inúmeras citações de vários pesquisadores sobre interessantes trechos do “Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas”, de autoria do Padre João Daniel. Em 2004, visivelmente fascinado com tudo o que lera até então, adquiri a obra editada pela Livraria Contraponto e fiquei mais extasiado ainda com a riqueza de detalhes desta verdadeira Enciclopédia Amazônica considerada, por muitos, como a “Bíblia Ecológica da Amazônia”.
Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas
Fonte: César Benjamin (Editora Contraponto)
A versão manuscrita do Tesouro Descoberto tem 766 páginas. Desde 1810 as
cinco primeiras partes, de um total de seis, estão depositados nos acervos da
Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, para onde foram trazidas, em 1808, por
Dom João VI, preocupado em evitar a captura do precioso texto pelos exércitos
de Napoleão Bonaparte que avançavam sobre Portugal. A sexta parte, dividida em
duas, foi perdida e depois reencontrada na Biblioteca de Évora. Somente em 1976
a Biblioteca Nacional estabeleceu a versão completa e definitiva do manuscrito,
inclusive com a parte depositada em Évora, recebida em microfilme.
Padre João Daniel
Eu gemendo e chorando opresso
com o peso da minha cruz, submergido, e enterrado vivo no funesto sepulcro, e
subterrânea cova da minha prisão vou pedindo a Deus piedade, e misericórdia: e
que com a sua se digne santificar a minha cruz. (DANIEL)
João
Daniel nasceu em Travassos, Província de Beira Alta, Portugal, em 24.07.1722.
No dia 17.12.1739, em Lisboa, Portugal, ingressou na Companhia de Jesus, e dois
anos depois foi enviado para o Maranhão e Grão-Pará, onde completou sua
formação no Colégio Máximo São Luís, dez anos depois. Viveu seis anos na
fazenda Ibirajuba, na época, a melhor possessão dos jesuítas onde conviveu com
nativos de diversas aldeias. João Daniel, durante os 16 anos de sua permanência
na Amazônia, realizou um metódico e profundo trabalho interdisciplinar,
coletando dados sobre a região.
Este
material foi arquivado em incontáveis anotações e gravado na sua memória
prodigiosa que, mais tarde, se tornariam fonte inspiradora de sua monumental
obra.
Em
1757, o Marquês de Pombal determinou que todos os jesuítas fossem presos e
deportados. O Padre João Daniel foi encarcerado no Forte Almeida, Portugal, de
1758 a 1762 e, depois, na Torre Julião, até o dia de seu falecimento em
19.01.1776. Na sua reclusão, o Padre redigiu seus comentários com a ponta de
alfinete no papel de “embrulho das
quartas de tabaco, das folhas mancas dos Breviários que ia arrancando, do
registro dos Santos e das Bulas feitas em tiras”. Sua obra, escrita durante
os 18 anos em que permaneceu cativo, revela com riqueza de detalhes
incomparável três temas fundamentais: a terra, o homem e a cultura da Amazônia
do século XVIII.
Relatos Pretéritos
Barbosa
Rodrigues, Gonçalves Tocantins e Henri Coudreau mencionam nos seus relatos,
sobre a Cosmogania Mundurucu, uma certa Maloca Acupari (Cupari) e a origem das
raças que se originaram de cavernas ou fendas.
Henri Coudreau (1895)
Um dia, diz a lenda Mundurucu, os homens apareceram sobre a terra. Ora,
os primeiros homens que os animais das florestas viram por entre as selvas e as
savanas foram os que fundaram a Maloca de Acupari. Certo dia, entre os homens da Maloca de Acupari, surgiu Caru-Sacaebê, o
Grande Ser. [...]
Em seguida, olhando para as plumas que plantara em redor da Aldeia,
ergueu a mão de um horizonte ao outro. A este apelo, moveram-se as montanhas, e
o terreno onde se localizava a antiga Maloca
tornou-se uma enorme caverna. [...] Aí,
como Pompeu, bateu com o pé no chão. Uma larga fenda se abriu. O velho Caru
dela tirou um casal de todas as raças: um de Mundurucu, um de Índios [porque os
Mundurucu não pertencem à mesma raça que os Índios, mas são de uma essência
superior], um casal de brancos e um de negros. (COUDREAU)
João Daniel (1758-1776)
Embora
o Padre João Daniel faça relatos distintos a respeito de dois monumentos
naturais na Bacia do Tapajós, alguns pesquisadores, dentre eles eu e o Padre
Sidney Augusto Canto, advogam a possibilidade de que se trate do mesmo local.
João Daniel, certamente, coletou estes relatos de fontes diversas, daí a
divergência na indicação da localização correta dos referidos monumentos
naturais, ora junto à catadupa do Rio Tapajós, denominado Convento ou Fábrica,
ora no Rio Cupari, citado como uma Igreja.
VOLUME
I – PARTE PRIMEIRA
CAPÍTULO 10°
DE
ALGUMAS COISAS NOTÁVEIS DO AMAZONAS
[...] Entre os mais Rios e Ribeiras que recolhe o Tapajós é um o Rio
Cupari, a pouca mais distância de três dias e meio de viagem da banda de Leste
no alegre sítio chamado Santa Cruz; é célebre este Rio, mais que pelas suas riquezas,
de muito cravo, por uma grande lapa feita, e talhada por modo de uma grande “Igreja”, ou “Templo”, que bem mostra foi obra de arte, ou prodígio da natureza.
É grande de cento e tantos palmos no comprimento; e todas as mais medidas
de largura e altura são proporcionadas segundo as regras da arte, como informou
um missionário jesuíta, dos que missionavam no Rio Tapajós, que teve a
curiosidade de lhe mandar tomar bem as medidas. Tem seu portal, corpo de “Igreja”, Capela-mor com seu arco; e de
cada parte do arco, uma grande pedra por modo de dois Altares colaterais, como
hoje se costuma em muitas Igrejas; dentro do arco e Capela-mor, tem uma porta
para um lado, para serventia da sacristia. O missionário que aí quiser fundar
missão já tem bom adjutório ([1]) na
Igreja, e não o desmerece o lugar, que é muito alegre. [...] (DANIEL)
.........................................................
CAPÍTULO 11°
PROSSEGUE-SE
A MESMA MATÉRIA DAS COISAS NOTÁVEIS DO AMAZONAS
Junto à catadupa do Rio Tapajós, acima da sua Foz, pouco mais de cinco
dias de viagem, está uma fábrica, a que os portugueses chamam “Convento”, por ter o feitio dele.
Consiste este em um comprido corredor com seus cubículos por banda, e com suas
janelas conventuais em cada ponta do corredor. É “Fábrica”, segundo me parece das poucas notícias que dão os Índios
brutais em cujas terras estão, de pedra e cal, e conforme a sua
muita antiguidade, mostra ser feito por mãos de bons mestres. É todo de
abóbada, e muito proporcionado nas suas medidas, e não é feito, ou cavado em
rochedo por modo de lapa, ou concavidade, como são os templos supra, mas obra
levantada sobre a terra.
Alguns duvidam se toda a “Fábrica”
conste de uma só pedra, porque não se lhe
veem as junturas: famoso calhau se assim é e, na verdade, só sendo um inteiro
calhau parece podia durar tanto, pois segundo o ditame da razão se infere que
ou é obra antes do universal dilúvio, ou ao menos dos primeiros povoadores da América
que, por tão antigos, ainda se não sabe decerto donde foram, e donde procedem.
A tradição, ou fábula, que de pais a filhos corre nos Índios, é que ali
moraram, e viveram nossos primeiros pais, de quem todos descendem, brancos e
Índios; porém que os Índios descendem dos que se serviam pela porta, que
corresponde às suas Aldeias, e que por isso saíram diferentes na cor aos
brancos, que descendem dos que tinham saído pela porta correspondente à Foz, ou
Boca do Rio [...] (DANIEL)
Georreferenciando o Berço da Humanidade
(04°09’32,8” S /
55°25’ O)
Quando
estive no Tapajós, em janeiro de 2011, tentei chegar por água ao “Berço da Humanidade”, subindo o Rio
Cupari. A tentativa foi frustrada por uma queda d’água impossível de
ultrapassar com a voadeira que nos transportava. Quando aportamos na margem
direita do Rio, preparando-nos para voltar, ouvi o som de motores de caminhão
nas proximidades e georreferenciei a posição. Retornando a Santarém localizei a
posição marcada no Google Earth e verifiquei que a mesma ficava muito próxima
da Rodovia Transamazônica (BR-230), decidi, então, realizar uma nova tentativa
pela estrada. No dia 02.02.2011, dia de “Nossa
Senhora dos Navegantes”, encontrei, ainda que parcialmente encoberta pelas
águas, estávamos no inverno amazônico, as cavernas mencionadas pelo Padre João
Daniel e presentes na Cosmogonia Mundurucu.
Determinado
a reconhecê-las, programei uma ida, na estiagem, para realizar nova investida.
Berço da Humanidade
Realizei
neste ano (2013) a tão aguardada navegação pelo Tapajós, em pleno verão
amazônico com o intuito de pesquisar, novamente, o local na vazante do Rio
Cupari.
No
dia 04.10.2013, visitei a área acompanhado de meus caros amigos
expedicionários, do Grupo Fluvial do 8°BEC, Cabo de Engenharia Mário Elder
Guimarães Marinho e o Soldado Eng Marçal Washington Barbosa Santos e conduzidos
pelo motorista do Subcomandante do Batalhão – TCel Eng Artur Clécio Aragão de
Miranda, o Sd Eng Ademario César Guerra Costa Neto. Chegamos por volta das onze
horas e, mesmo em jejum, não consegui ingerir qualquer alimento tal era minha
ansiedade.
Tomei
um copo de refrigerante, desci célere pela trilha até as cavernas e fiquei
satisfeito com o que vi – as águas estavam suficientemente baixas para que
pudéssemos adentrar nas furnas de montante, submersas em 2011.
A
grande lapa mencionada por Daniel é uma grande caverna de arenito calcário
contendo grandes quantidades de óxido de ferro que há milhares de anos sofreu
infiltração d’água (ele menciona que a formação é de pedra e cal) criando
estalactites e estalagmites de beleza singular de cor avermelhada em virtude da
presença do óxido ferroso.
As
grandes colunas e corredores de calcário de tons avermelhados suavemente
matizados, magnificamente torneados estimularam nossos sentidos e fizeram
emergir de nosso íntimo os sentimentos mais elevados e, evidentemente, esta
sensação não deve ter sido diferente da experimentada pelos observadores
pretéritos. É lógico que a grandiosidade e perfeição destas formações naturais
tenham estimulado a imaginação das pessoas produzindo relatos fantásticos que,
por fim, chegaram aos ouvidos atentos do Padre João Daniel.
Estalactites e Estalagmites
As
formações que partem do teto da caverna para baixo são denominadas estalactites,
e estalagmites quando crescem a partir do chão para cima. Ambas são produzidas
pelo gotejamento d’água através das fendas das paredes das cavernas de rocha
calcária, carregando consigo parte deste calcário. Um ínfimo anel de calcita,
quando em contato com o ar, precipita-se na base de cada gota. Cada uma dá
origem a um novo e diminuto anel, consolidando formas cônicas e pontiagudas
denominadas estalactites. As estalagmites, por sua vez, possuem forma mais
grosseira, mais arredondada e menos pontiaguda com a tendência de se unir à
estalactite dando origem a uma coluna.
O
processo de crescimento destes elementos é demorado e ininterrupto variando
entre 0,01 mm a 3 mm por ano dependendo da quantidade d’água, velocidade de
gotejamento, pureza do calcário e temperatura. Quando as estalactites seguem as
frestas do teto da caverna atingem dimensões bem maiores como as que observamos
no Berço da humanidade, formando verdadeiros corredores.
Filmete
http://desafiandooriomar.blogspot.com/2013/12/
Solicito
Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é
Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante,
Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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