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Hiram Reis e Silva

A Terceira Margem – Parte CCXX - Navegando o Tapajós ‒ Parte XXIV - Redescobrindo o Berço da Humanidade


Imagem 01 – B. da Humanidade (02.2011 e 11.2013) - Gente de Opinião
Imagem 01 – B. da Humanidade (02.2011 e 11.2013)

Bagé, 20.05.2021

 

Navegando o Tapajós ‒ Parte XXIV

Redescobrindo o Berço da Humanidade

 

História da Companhia de Jesus

(Padre Serafim Leite)

 

É notável, em particular, a sagacidade e instruções que dá para a agricultura amazônica, hoje ultrapassadas, mas verdadeiro tratado de economia agrícola, bem
superior às ideias do seu tempo; refere-se já à
indústria hidráulica aplicada, utilização dos ventos;
sobre os Índios e crendices populares [os homens marinhos] e sobre a etnografia de inúmeras tribos, tatuagem,
relações sociais, culto indígena e ciumeira dos maridos, variadas notícias, produto de inigualável observação,
direta e amena. Além disto, indicações locais,
geográficas e históricas, que, ao menos no
tocante aos fatos de seu tempo, se constituem
genuínas fontes para a história geral do grande Rio.
João Daniel enquadra-se no grupo admirável de escritores que deixaram o seu nome ligado à história do Amazonas. (LEITE)

 

A partir da virada do século, tive a oportunidade de ler inúmeras citações de vários pesquisadores sobre interessantes trechos do “Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas”, de autoria do Padre João Daniel. Em 2004, visivelmente fascinado com tudo o que lera até então, adquiri a obra editada pela Livraria Contraponto e fiquei mais extasiado ainda com a riqueza de detalhes desta verdadeira Enciclopédia Amazônica considerada, por muitos, como a “Bíblia Ecológica da Amazônia”.


Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas

Fonte: César Benjamin (Editora Contraponto)

 

A versão manuscrita do Tesouro Descoberto tem 766 páginas. Desde 1810 as cinco primeiras partes, de um total de seis, estão depositados nos acervos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, para onde foram trazidas, em 1808, por Dom João VI, preocupado em evitar a captura do precioso texto pelos exércitos de Napoleão Bonaparte que avançavam sobre Portugal. A sexta parte, dividida em duas, foi perdida e depois reencontrada na Biblioteca de Évora. Somente em 1976 a Biblioteca Nacional estabeleceu a versão completa e definitiva do manuscrito, inclusive com a parte depositada em Évora, recebida em microfilme.

 

Padre João Daniel

 

Eu gemendo e chorando opresso com o peso da minha cruz, submergido, e enterrado vivo no funesto sepulcro, e subterrânea cova da minha prisão vou pedindo a Deus piedade, e misericórdia: e que com a sua se digne santificar a minha cruz. (DANIEL)

 

João Daniel nasceu em Travassos, Província de Beira Alta, Portugal, em 24.07.1722. No dia 17.12.1739, em Lisboa, Portugal, ingressou na Companhia de Jesus, e dois anos depois foi enviado para o Maranhão e Grão-Pará, onde completou sua formação no Colégio Máximo São Luís, dez anos depois. Viveu seis anos na fazenda Ibirajuba, na época, a melhor possessão dos jesuítas onde conviveu com nativos de diversas aldeias. João Daniel, durante os 16 anos de sua permanência na Amazônia, realizou um metódico e profundo trabalho interdisciplinar, coletando dados sobre a região.

 

Este material foi arquivado em incontáveis anotações e gravado na sua memória prodigiosa que, mais tarde, se tornariam fonte inspiradora de sua monumental obra.

 

Em 1757, o Marquês de Pombal determinou que todos os jesuítas fossem presos e deportados. O Padre João Daniel foi encarcerado no Forte Almeida, Portugal, de 1758 a 1762 e, depois, na Torre Julião, até o dia de seu falecimento em 19.01.1776. Na sua reclusão, o Padre redigiu seus comentários com a ponta de alfinete no papel de “embrulho das quartas de tabaco, das folhas mancas dos Breviários que ia arrancando, do registro dos Santos e das Bulas feitas em tiras”. Sua obra, escrita durante os 18 anos em que permaneceu cativo, revela com riqueza de detalhes incomparável três temas fundamentais: a terra, o homem e a cultura da Amazônia do século XVIII.

 

Relatos Pretéritos

 

Barbosa Rodrigues, Gonçalves Tocantins e Henri Coudreau mencionam nos seus relatos, sobre a Cosmogania Mundurucu, uma certa Maloca Acupari (Cupari) e a origem das raças que se originaram de cavernas ou fendas.

 

Henri Coudreau (1895)

 

Um dia, diz a lenda Mundurucu, os homens apareceram sobre a terra. Ora, os primeiros homens que os animais das florestas viram por entre as selvas e as savanas foram os que fundaram a Maloca de Acupari. Certo dia, entre os homens da Maloca de Acupari, surgiu Caru-Sacaebê, o Grande Ser. [...]

 

Em seguida, olhando para as plumas que plantara em redor da Aldeia, ergueu a mão de um horizonte ao outro. A este apelo, moveram-se as montanhas, e o terreno onde se localizava a antiga Maloca tornou-se uma enorme caverna. [...] Aí, como Pompeu, bateu com o pé no chão. Uma larga fenda se abriu. O velho Caru dela tirou um casal de todas as raças: um de Mundurucu, um de Índios [porque os Mundurucu não pertencem à mesma raça que os Índios, mas são de uma essência superior], um casal de brancos e um de negros. (COUDREAU)

 

João Daniel (1758-1776)

 

Embora o Padre João Daniel faça relatos distintos a respeito de dois monumentos naturais na Bacia do Tapajós, alguns pesquisadores, dentre eles eu e o Padre Sidney Augusto Canto, advogam a possibilidade de que se trate do mesmo local. João Daniel, certamente, coletou estes relatos de fontes diversas, daí a divergência na indicação da localização correta dos referidos monumentos naturais, ora junto à catadupa do Rio Tapajós, denominado Convento ou Fábrica, ora no Rio Cupari, citado como uma Igreja.

 

VOLUME I – PARTE PRIMEIRA

CAPÍTULO 10°

 

DE ALGUMAS COISAS NOTÁVEIS DO AMAZONAS

 

[...] Entre os mais Rios e Ribeiras que recolhe o Tapajós é um o Rio Cupari, a pouca mais distância de três dias e meio de viagem da banda de Leste no alegre sítio chamado Santa Cruz; é célebre este Rio, mais que pelas suas riquezas, de muito cravo, por uma grande lapa feita, e talhada por modo de uma grande “Igreja”, ou “Templo”, que bem mostra foi obra de arte, ou prodígio da natureza.

 

É grande de cento e tantos palmos no comprimento; e todas as mais medidas de largura e altura são proporcionadas segundo as regras da arte, como informou um missionário jesuíta, dos que missionavam no Rio Tapajós, que teve a curiosidade de lhe mandar tomar bem as medidas. Tem seu portal, corpo de “Igreja”, Capela-mor com seu arco; e de cada parte do arco, uma grande pedra por modo de dois Altares colaterais, como hoje se costuma em muitas Igrejas; dentro do arco e Capela-mor, tem uma porta para um lado, para serventia da sacristia. O missionário que aí quiser fundar missão já tem bom adjutório ([1]) na Igreja, e não o desmerece o lugar, que é muito alegre. [...] (DANIEL)

 

.........................................................

 

CAPÍTULO 11°

 

PROSSEGUE-SE A MESMA MATÉRIA DAS COISAS NOTÁVEIS DO AMAZONAS

 

Junto à catadupa do Rio Tapajós, acima da sua Foz, pouco mais de cinco dias de viagem, está uma fábrica, a que os portugueses chamam “Convento”, por ter o feitio dele. Consiste este em um comprido corredor com seus cubículos por banda, e com suas janelas conventuais em cada ponta do corredor. É “Fábrica”, segundo me parece das poucas notícias que dão os Índios brutais em cujas terras estão, de pedra e cal, e conforme a sua muita antiguidade, mostra ser feito por mãos de bons mestres. É todo de abóbada, e muito proporcionado nas suas medidas, e não é feito, ou cavado em rochedo por modo de lapa, ou concavidade, como são os templos supra, mas obra levantada sobre a terra.

 

Alguns duvidam se toda a “Fábrica” conste de uma só pedra, porque não se lhe veem as junturas: famoso calhau se assim é e, na verdade, só sendo um inteiro calhau parece podia durar tanto, pois segundo o ditame da razão se infere que ou é obra antes do universal dilúvio, ou ao menos dos primeiros povoadores da América que, por tão antigos, ainda se não sabe decerto donde foram, e donde procedem. A tradição, ou fábula, que de pais a filhos corre nos Índios, é que ali moraram, e viveram nossos primeiros pais, de quem todos descendem, brancos e Índios; porém que os Índios descendem dos que se serviam pela porta, que corresponde às suas Aldeias, e que por isso saíram diferentes na cor aos brancos, que descendem dos que tinham saído pela porta correspondente à Foz, ou Boca do Rio [...] (DANIEL)

 

Georreferenciando o Berço da Humanidade
(04°09’32,8” S / 55°25’ O)

 

Quando estive no Tapajós, em janeiro de 2011, tentei chegar por água ao “Berço da Humanidade”, subindo o Rio Cupari. A tentativa foi frustrada por uma queda d’água impossível de ultrapassar com a voadeira que nos transportava. Quando aportamos na margem direita do Rio, preparando-nos para voltar, ouvi o som de motores de caminhão nas proximidades e georreferenciei a posição. Retornando a Santarém localizei a posição marcada no Google Earth e verifiquei que a mesma ficava muito próxima da Rodovia Transamazônica (BR-230), decidi, então, realizar uma nova tentativa pela estrada. No dia 02.02.2011, dia de “Nossa Senhora dos Navegantes”, encontrei, ainda que parcialmente encoberta pelas águas, estávamos no inverno amazônico, as cavernas mencionadas pelo Padre João Daniel e presentes na Cosmogonia Mundurucu.

 

Determinado a reconhecê-las, programei uma ida, na estiagem, para realizar nova investida.

 

Berço da Humanidade

 

Realizei neste ano (2013) a tão aguardada navegação pelo Tapajós, em pleno verão amazônico com o intuito de pesquisar, novamente, o local na vazante do Rio Cupari.

 

No dia 04.10.2013, visitei a área acompanhado de meus caros amigos expedicionários, do Grupo Fluvial do 8°BEC, Cabo de Engenharia Mário Elder Guimarães Marinho e o Soldado Eng Marçal Washington Barbosa Santos e conduzidos pelo motorista do Subcomandante do Batalhão – TCel Eng Artur Clécio Aragão de Miranda, o Sd Eng Ademario César Guerra Costa Neto. Chegamos por volta das onze horas e, mesmo em jejum, não consegui ingerir qualquer alimento tal era minha ansiedade.

 

Tomei um copo de refrigerante, desci célere pela trilha até as cavernas e fiquei satisfeito com o que vi – as águas estavam suficientemente baixas para que pudéssemos adentrar nas furnas de montante, submersas em 2011.

 

A grande lapa mencionada por Daniel é uma grande caverna de arenito calcário contendo grandes quantidades de óxido de ferro que há milhares de anos sofreu infiltração d’água (ele menciona que a formação é de pedra e cal) criando estalactites e estalagmites de beleza singular de cor avermelhada em virtude da presença do óxido ferroso.

 

As grandes colunas e corredores de calcário de tons avermelhados suavemente matizados, magnifica­mente torneados estimularam nossos sentidos e fizeram emergir de nosso íntimo os sentimentos mais elevados e, evidentemente, esta sensação não deve ter sido diferente da experimentada pelos observadores pretéri­tos. É lógico que a grandiosidade e perfeição destas formações naturais tenham estimulado a imaginação das pessoas produzindo relatos fantásticos que, por fim, chegaram aos ouvidos atentos do Padre João Daniel.

 

Estalactites e Estalagmites

 

As formações que partem do teto da caverna para baixo são denominadas estalactites, e estalagmites quando crescem a partir do chão para cima. Ambas são produzidas pelo gotejamento d’água através das fendas das paredes das cavernas de rocha calcária, carregando consigo parte deste calcário. Um ínfimo anel de calcita, quando em contato com o ar, precipita-se na base de cada gota. Cada uma dá origem a um novo e diminuto anel, consolidando formas cônicas e pontiagudas denominadas estalactites. As estalagmites, por sua vez, possuem forma mais grosseira, mais arredondada e menos pontiaguda com a tendência de se unir à estalactite dando origem a uma coluna.

 

O processo de crescimento destes elementos é demorado e ininterrupto variando entre 0,01 mm a 3 mm por ano dependendo da quantidade d’água, velocidade de gotejamento, pureza do calcário e temperatura. Quando as estalactites seguem as frestas do teto da caverna atingem dimensões bem maiores como as que observamos no Berço da humanidade, formando verdadeiros corredores.

 

Filmete

 

http://desafiandooriomar.blogspot.com/2013/12/

 

 Solicito Publicação

 

 (*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

·      Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

·      Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);

·      Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

·      Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

·      Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

·      Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

·      Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

·      Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

·      Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

·      Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

·      Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

·      Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

·      Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

·      E-mail: hiramrsilva@gmail.com.



[1]    Adjutório: auxílio.

Galeria de Imagens

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