Quarta-feira, 30 de março de 2022 - 08h00
Bagé, 30.03.2022
Ninguém produz riqueza, mas vive com a barriga
cheia e corpo coberto. Hoje, vemos nossos filhos ir para a escola e voltar
porque a escola está aqui na casa dos seringueiros. A cada três horas de
caminhada tem escola e também temos ônibus escolar. [...] É uma vida que nem se
compara com a vida que nós tínhamos aqui há dez, 20, 50 anos.
(Raimundo Mendes de Barros)
13.09.2017
– Entrevista com Raimundão
O Ten BM Marcelo
agendou uma entrevista com o Sr. Raimundo Mendes de Barros, mais conhecido como
Raimundão, primo de Chico Mendes, no Assentamento Rio Branco:
Raimundo Mendes de
Barros
Eu sou Raimundo Mendes de Barros, seringueiro de nascimento e
descendente de nordestino. Minha mãe chegou do Nordeste ainda criança, vinda do
Ceará e meu pai era filho daqui, do Seringal São Francisco, lá do Alto Acre,
onde hoje é o Município de Assis Brasil.
Nasci no Município de Xapuri, Seringal Santa Fé, de uma irmandade de 14
irmãos, sendo que apenas oito deles meus pais conseguiram criar, seis faleceram
ainda muito jovens ou nasceram mortos. Minha vida sempre foi ligada ao
Seringal, com sete anos de idade já andava na floresta junto com meus pais e
meus irmãos tirando leite de seringa, colhendo castanha, alumiando com facho ([1]) de
sernambi ([2]) pra o meu
pai e os meus irmãos riscarem as seringueiras de onde era tirado o leite da
borracha. Antes de a fábrica abrir, conheci um monte de gente que até parou de
cortar seringa. Eu mesmo parei. A fábrica reviveu o corte. Deram o material e o
dinheiro, deram uma animada pra gente recomeçar.
Venho do tempo da borracha coagulada na fumaça e passei para o processo
da borracha coagulada na tigela. Cheguei até aos dias de hoje ao fornecimento
de leite ([3]) pra
fábrica de preservativos ([4]). Mas
voltemos um pouco no tempo e vamos para a época da borracha coagulada, uma
época do domínio dos patrões que, na época da infância dos meus pais, eram
conhecidos como coronéis de barranco.
Coronéis de Barranco
Por que Coronel de barranco? Por que os patrões naquela época compravam
a patente de Coronel e as residências deles eram na barranca dos Rios. Não
havia rodovias, os Rios eram as estradas, eles aportavam nas barrancas dos Rios
onde construíam seus armazéns e residência. No armazém eram colocadas as
mercadorias e a borracha, sendo que a borracha era armazenada em um depósito separado
devido ao cheiro dela.
Essa era uma época de muita exploração. O patrão pesava a borracha de
acordo com o seu critério e pagava conforme seu juízo e assim era feito também
com a mercadoria.
O seringueiro não opinava por preço ou peso de borracha ou de mercadoria
porque se ele se manifestasse o patrão o reprimiria.
A maioria dos seringueiros era analfabeta, poucos tinham algum estudo,
por que o ser humano sabendo ler e escrever fica mais fácil para ele entender
algumas coisas. E o patrão não queria que o seringueiro tivesse muita compreensão
a não ser produzir borracha e comprar a mercadoria dele. Essa trajetória durou
aproximadamente 100 anos até que resolveram trocar, no Acre e em toda a
Amazônia, o extrativismo pela criação de bois.
Se na época dos patrões a vida não era boa como acabei de relatar em
decorrência da dominação, da exploração e o isolamento em que se vivia, no
latifúndio foi pior. Porque na época do patrão quando ele não queria mais que o
seringueiro permanecesse naquela colocação por estar produzindo pouco mandava-o
embora e o seringueiro conseguia uma colocação noutro lugar.
Depois que chegou o latifúndio não, você sai daqui e vai para a beira da
estrada ou para a periferia das cidades porque lá no outro Seringal não tinha
como ser aproveitado porque também tinha gente sendo mandada embora.
Não compravam o produto da gente, que era a borracha e a castanha, e nem
traziam mercadoria, foi uma fase em que muitos pais de família deixaram a
floresta e foram para a periferia das cidades ou para a beira da estrada.
Mas teve um grupo que resolveu resistir e foi se agrupando, primeiro
através da orientação um tanto tímida que a igreja trazia como o conhecimento
do Artigo 4° da Lei 4504/64, que se refere ao Estatuto da Terra, que dizia que
cada cidadão que estiver ocupando uma gleba e não tenha outra, só pode sair
dali se for indenizado ou lhe oferecerem outra terra.
Isso começou a dar um certo Horizonte, uma certa esperança para os
seringueiros e eles foram se juntando mais e mais até que aportou aqui no Acre
a CONTAG, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, propondo a
criação dos sindicatos.
Sindicatos
Os sindicatos começaram então a ser criados, o primeiro a ser criado foi
no município de Brasiléia o segundo foi o de Xapuri e foram se alastrando até atingir
todos os municípios. [...] O Chico foi secretário do Sindicato de Brasileia,
três anos depois de sua criação.
No 4° ano ele veio para Xapuri porque ele era daqui e a gente queria que
ele viesse para Xapuri porque o Sindicato daqui andava meio fraco e a gente
confiava muito nele porque ele era uma pessoa muito serena, muito séria, muito
segura, um homem zeloso, dedicado, corajoso, uma pessoa muito pacata mas muito
corajosa. [...]
Através do sindicato o Chico conseguiu apoio para começar um processo
alfabetização de adultos com participação das crianças. [...]
Hoje, graças a Deus, conseguimos o reconhecimento do Estado e do próprio
Município e consideramos que a vida aqui é muito melhor que na cidade.
Estamos aqui na tranquilidade, na convivência, na disciplina, produzindo
uma agricultura de subsistência, mandioca, arroz, melancia, extraímos também a
castanha, a borracha, já iniciamos a criação de peixes, abelhas e aqueles que
querem trabalhar com o gado podem ter de 15 a 20 cabeças porque isso é o que se
pode criar dentro das regras da reserva.
Antigamente levávamos de 6 a 7 horas até a cidade e hoje eu o faço
apenas em meia hora, no passado só se tomava água gelada quando era época do
frio, hoje temos geladeira, a escola está bem pertinho, em tudo que é canto tem
escola e transporte escolar para levar os alunos, hoje a vida nem se compara
com a dos meus tempos de criança.
Mas é de fundamental importância que se diga que tudo o que se tem hoje
não se conseguiu de graça, foi com muito sacrifício, foram noites de sono
perdido, dias de barriga seca, perda de vidas preciosas, acusações de que nós
éramos um bando de desocupados, de invasores do alheio, que o Chico era um
comodista, um vagabundo que só prestava para fazer agitação, esse era o tipo de
tratamento que a gente recebia, mas nós tínhamos consciência de que se nós não
lutássemos nossa vida ia piorar muito. [...]
Reflorestamento
A seringueira nativa já está cansada ela é muito dispersa dentro da
floresta e essa nova geração é muito desligada, o que eles aprendem na escola
não é uma educação ligada às coisas da floresta [...], isso é muito ruim é um
aprendizado desligado da realidade de onde vivemos [...]
Esse projeto de reflorestamento é uma coisa super boa a seringa gosta de
uma sombrinha a gente aproveita o terreno, primeiro bota o milho, o arroz, a
mandioca, banana e depois bota seringa, a castanha, o açaí e vai se montando
uma espécie de mosaico com árvores frutíferas. [...]
Assassinato de Chico
Mendes
Os assassinos do Chico tinham matado gente no Paraná, Minas Gerais e
pararam de matar aqui no Acre. Eles eram contratados pelos fazendeiros como
jagunços, compraram uma fazenda onde havia um Projeto de Colonização, com
certeza já encomendado, porque já tinha iniciado a luta dos seringueiros com os
fazendeiros que, ao chegar na região, começaram a comprar algumas colônias ao
redor de forma intimidatória. A briga deles com Chico se deu a partir da
resistência do Chico e dos meus primos lá do Seringal Cachoeira porque um tal
de Japonês queria desmatar o cachoeira. O Cachoeira é um Seringal muito rico,
de muita castanha, muita seringa boa de leite onde o Chico tinha uma família
muito grande.
No Seringal Cachoeira tinha uma colocação chamada Brasil e Brasilzinho
tinha duas famílias de seringueiros Agripino e Zé Brito. O Zé Brito começou
arrumar uma amizade com os fazendeiros. Quem sabe de que forma eles conseguiram
isso? O Japonês queria entrar no Seringal Cachoeira, e o Zé Brito se rebelou
contra o Agripino resolvendo vender a colocação. O Agripino correu para a
cidade e foi avisar o Chico Mendes:
– Chico, pelo
amor de Deus! O Zé Brito está arranjando uma confusão desgraçada! Diz que vai
vender a colocação para o pessoal da Fazenda Paraná.
O Chico manda o Agripino voltar e reunir o pessoal todo. Na reunião o Zé
Brito diz não era nada daquilo que falou em vender num momento de raiva.
Um mês depois o mesmo boato surge e o Zé Brito afirma ao Chico que não era nada daquilo, mas, na verdade ele já tinha vendido a colocação. O Chico desconfia da tramoia e começa a averiguar a vida do Darcy e Darly e verifica que eles tinham matado muita gente lá no Sul e que eram tidos pela polícia como mortos. [...]
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Facho: lanterna.
[2] Sernambi: pedaços de placas não defumadas de látex coagulado nas tigelas e não prensadas.
[3] Leite: látex. (Hiram Reis)
[4] Natex: é a primeira fábrica no mundo a produzir preservativos a partir do látex de seringal nativo. A produção da Natex atende a 20% do mercado de preservativos distribuídos gratuitamente no Brasil pelo Ministério da Saúde. Das 2.500 famílias residentes da Reserva Chico Mendes, aproximadamente 500 colhem o látex e repassam para a Cooperacre que transporta o produto até a fábrica.
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