Segunda-feira, 6 de junho de 2022 - 06h05
Bagé, 06.06.2022
Relato
da Terceira Expedição ao interior da Guiana: Compreendendo a viagem às fontes
do Essequibo, às Montanhas Carumá e ao Forte São Joaquim, no Rio Branco, em
1837-1838. Por Robert Hermann Schomburgk.
16 a 21 de março de 1838 ‒
Continuando lentamente nossa ascensão pelo Rio, avistamos três corials, despachadas do
Pirara para escoltar o Reverendo Thomas
Youd, o primeiro missionário protestante para os índios no interior da
Guiana ‒ Bartika Point à promissora cena de seu futuro trabalho. Foi
gratificante observar que os dois mais ansiosos para recebê-lo eram um Macuxí e
um Caribe, que tinham sido membros da Missão em Bartika Point, no entroncamento
dos rios Cuyuni e Essequibo. Devido às condições do Rio, encontramos muita
dificuldade na subida, e não cheguei ao Pirara antes do dia 21. Um grande
número de nativos tinha vindo para a Aldeia, todos Macuxís, homens, mulheres e
crianças, ocupados em concluir a construção da capela. A casa do missionário já
estava pronta; e além disso contei 30 cabanas, algumas das quais eram fruto de
uma rara habilidade na sua construção. Decidimos ficar aqui até o retorno de
uma corial, na qual despachara Peterson, meu timoneiro, com destino a
Georgetown para comprar mercadorias para barganhar com os nativos, recompondo o
estoque que havíamos perdido pelo infeliz naufrágio de duas das nossas corials
durante a viajem pelo Essequibo. O clima nas próximas seis semanas foi abafado.
No dia 6 de abril, o termômetro atingiu 33,9°C à sombra: no mesmo período o
barômetro marcou 29,316; enquanto que a média foi de 29,450, mostrando uma
elevação de 183 m acima do nível do mar. O vento predominante era o Leste. Os
Macuxís são uma etnia hospitaleira, e parecem ser menos indolentes do que os
índios em geral: as mulheres executam grande parte do trabalho pesado, mas são
bem tratadas pelo seus maridos. Nunca testemunhei uma briga entre homem e
mulher enquanto eu estava no interior. No litoral, onde eles são segregados
pelos europeus, absorvendo seus vícios e costumes, o índio torna-se apaixonado
e tirânico em sua conduta para com as mulheres, mas não para com as de sua
própria tribo. Vendo que coletávamos objetos para a História Natural, poucos
dias se passaram até que os nativos começassem a nos trazer um pássaro, um
inseto, uma planta, ou algumas frutas, como o pinhão, castanha de caju ou o
fruto da palma de buriti. Uma espécie de cigarra, que eu acredito ser a Cicada
tibicen, é aqui muito comum: é maior que a chamada razor-grinder ([1])
pelos colonos, emitindo uma nota singular, musical e agradável que pode ser
ouvida a uma grande distância. O som não é produzido pela probóscide ([2]),
como se imaginava, mas por meio de um singular tímpano estriado, que ocupa
quase metade do seu abdômen. O som é ouvido durante dia, mais frequentemente ao
pôr-do-Sol. O razor-grinder é diferente da Fulgora lanternaria ([3])
que emite um som semelhante ao de lâminas de barbear. Durante a noite ouvimos
uma infinidade de sons estranhos; o mugir de um touro selvagem, a milhas de
distância; o coaxar das rãs que habitam o Lago; o gemido da coruja [...]
15 de maio de 1838 ‒ Celebramos
a chegada do Reverendo Sr. Thomas Youd que tinha ido fundar uma Missão; ele foi
recebido de braços abertos na Aldeia, e todos se esforçaram para agradá-lo. Mas
a alegria de sua chegada foi diminuída pela notícia trágica do falecimento de
Sir J. Carmichael Smyth, Governador da Guiana Britânica. Nele eu perdi não só um
caro amigo, mas um patrono determinado e poderoso para a Expedição. Desde a
minha primeira viajem a Colônia até a minha partida para esta jornada, fui
contemplado com sua urbanidade, bondade, e empenho pessoal para agilizar o
encaminhamento dos artefatos coletados pela Expedição. Por mais que eu
quisesse, não seria capaz de enumerar aqui os diversos atos públicos para o
desenvolvimento da Colônia, mas posso ressaltar que sob seu governo a Guiana
Britânica prosperou de uma maneira inigualável, mais do que qualquer período
anterior. [...]
03 a 04 de junho de 1838 ‒ Aiyukante,
meu guia Macuxí, machucou o pé e só pudemos dar início à jornada de retorno ao
Pirara no dia 3 de junho, e chegamos à essa Aldeia, por uma rota mais direta,
na tarde de 4 de junho.
06 de junho de 1838 ‒ As
corials que havíamos despachado para o litoral em busca de provisões e
mercadorias e tinham nos deixado muito preocupados em consequência de seu
longo atraso, chegaram finalmente no dia 6. Não perdi tempo em despachar um
mensageiro para o Forte São Joaquim, informando ao Comandante que estávamos
prontos para partir do Pirara para a Fortaleza, onde pretendíamos passar o
resto da estação chuvosa. Meu objetivo era ter, durante esse período, pelo
menos a oportunidade de determinar astronomicamente as coordenadas daquele
sítio, que era considerado o limite Oriental da Guiana brasileira. O nosso
mensageiro encontrou o Comandante que vinha para Pirara, sendo portador de
cartas do chefe civil e militar de Alto Amazonas, capitão Ambrósio P. Ayres, em
que lhe transmitia nos termos mais lisonjeiros a sua permissão para residirmos
durante a estação das chuvas no Forte São Joaquim, ordenando ao Comandante da
Fortaleza que nos prestasse todo o auxílio, e informando-o de que mandara seu
irmão, o Sr. Pedro Ayres, representá-lo e receber a nossa Expedição na
fronteira do Brasil.
27 a 30 de junho de 1838 ‒ Acompanhados
do Sr. Thomas Youd, saímos de Pirara sob a escolta do Comandante, Sr. Gato, e
na tarde do dia 30 chegamos ao Forte São Joaquim. O senhor Pedro Ayres nos
recebeu com toda a civilidade, oferecendo-nos seus serviços para a consecução
de nossos intentos. Duas casas confortáveis, fora do Forte, foram-nos
disponibilizadas como nossos aposentos pelo tempo que achássemos conveniente. Esta
recepção de um Governo que sabíamos estar naquele período totalmente empenhado
em reprimir uma insurreição ([4])
que durava havia mais de cinco anos, e que, portanto, tinha poucas condições
para dedicar atenção a objetivos científicos, ultrapassou minhas esperanças
mais otimistas e me sinto verdadeiramente grato pela gentileza e civilidade que
me dispensaram. O Forte São Joaquim está situado na costa Oriental do Rio
Tacutu, a pouca distância de sua confluência com o Rio Branco, Parima ou
Urariquera. Um destacamento de espanhóis de Nova Guiana chegou no Rio Branco,
em 1775, pelo Caroni e o Urariquera, e se fortificaram nas proximidades da
confluência do Rio Yurumé. Eles foram dispersados pelos portugueses, que
ergueram, contra as incursões dos espanhóis e holandeses, na fronteira, o Forte
São Joaquim. É construído de arenito vermelho, encontrado nos arredores, tem
oito canhões, em condições toleráveis. É guarnecido por um Comandante e dez
membros da milícia provincial. Uma pequena capela e cinco casas constituem a
Aldeia. Um Padre visita a Fortaleza a cada dois ou três anos, para atender às
necessidades espirituais dos seus habitantes. Em 1796, dois indivíduos, Antônio
Amorini e Évora, começaram a criar, nas proximidades do Forte, cinquenta
cabeças de gado, esses animais rapidamente reproduziram-se, mas, em
consequência da má administração, os proprietários se endividaram com o
governo, que tomou as fazendas e, desde então, detêm sua posse.
As fazendas São José, São Bento e São Marcos, nas proximidades da
confluência dos Rios Tacutu e Branco, estão sob o comando de um administrador,
que recebe um quarto de todo o gado que ele marca com o selo do governo. O
número de bovinos foi-me dito consistir em 3.000 cabeças registradas, 5.000
cabeças selvagens e 500 cavalos. Acredito que estes, no entanto, sejam
superestimados. Vinte e dois mantenedores de gado, que estão alistados entre os
índios, e dizem ter salários e rações iguais a um soldado, cuidam do gado.
[...] O tempo sombrio do inverno tropical foi gasto em São Joaquim com a
organização das notas de nossa antiga Expedição e com a confecção do mapa do
Alto Essequibo. Toda oportunidade que o tempo oferecia para observações
astronômicas era imediatamente aproveitada. No entanto, mesmo assim, durante
uma estadia de quase três meses, estes momentos eram muito escassos. Os
resultados das minhas observações astronômicas me deram 3°01’46”N. de Latitude,
e 60°03’O de Longitude para a localização do Forte São Joaquim. [...] Contos,
um tanto vagos, dos índios sobre a Serra Grande ou Carumá, situado a cerca de
50 km abaixo do Forte de São Joaquim, há muito tinham despertado em mim o
desejo de visitá-la, e combinei com o senhor Pedro Ayres uma excursão até lá.
Os índios diziam existir naquela região um grande Lago de águas negras, no qual
os botos eram tão comuns como no Rio Branco, e que seria necessário apenas
alguns grandes navios navegando em sua superfície para transformá-lo em outro
Lago Parime. [...]
21 de agosto de 1838 ‒ [...]
Imaginem meu pavor quando descobri que dos 40 escravos havia apenas nove
homens, três dos quais com mais de 60 anos de idade, e que o resto consistia de
treze mulheres, e dezoito crianças menores de 12 anos, seis delas lactentes.
Apurei que os caçadores de escravos haviam cruzado Rupununi, e descobri, também,
através do meu intérprete que eles eram Wapisianas e Atorais, das montanhas
Ursato, do Leste ou margem direita do Tacutu. Eles permaneceram apenas um curto
período na Nossa Senhora da Liberdade, mas, o suficiente para descobrimos que
os caçadores de escravos mantinham estreitas relações com alguns de nossos
anfitriões.
22 de agosto de 1838 ‒ Andrés Miguel, não chegou hoje de
manhã. Chegamos, depois de uma forte tempestade, ao Forte de São Joaquim, às
17h00, onde, havia chegado, uma hora antes, a Expedição escravocrata. Eles
foram aquartelados no Forte, e todas as medidas tinham sido tomadas para nos
fazer acreditar que os pobres índios abandonaram suas casas e campos
voluntariamente. No entanto, encontramos a oportunidade de verificar o
contrário, com alguns que foram autorizados a sair, enquanto outros eram
mantidos no Forte. Eles nos fizeram uma visita e verifiquei que nenhum membro
de nossa equipe pertencia ao grupo que os tinham capturado. Mostrei-lhes que
conhecia algumas palavras de sua língua, proporcionando-lhes grande alegria.
Eles me bombardearam com uma algaravia, mas, ai de mim, minha fluência no
dialeto foi suficiente apenas para entender que eles tinham sido atacados de
surpresa à noite, suas cabanas incendiadas, e os que não conseguiram fugir
foram capturados e tiveram as suas mãos amarradas às costas. A conduta dos
celerados para com as mulheres e crianças foi o que mais revoltou os Wapisianas
e Atorais. Eles trouxeram criancinhas de 5 e 6 anos, e mostraram as marcas das
cordas nos pulsos das mesmas. Uma senhora idosa, mãe de um dos rapazes e avó de
seis crianças, que tinha insultado os facínoras, tinha sido duramente
maltratada. Os olhos de seu filho, um jovem e bonito índio, mostravam os sinais
de revolta com o tratamento dispensado à sua mãe. Eles disseram a Sororeng,
nosso intérprete, que seis homens, várias mulheres e algumas crianças, tinham
escapado na confusão tendo em vista que o ataque, feito por volta da
meia-noite, por serem as cabanas muito dispersas e os bandidos não terem número
suficiente de homens para cercá-los. Depois de imobilizarem as vítimas eles
invadiram as cabanas e roubaram o que consideravam de valor – papagaios,
algodão, cachorros, etc. Como o número de crianças era grande, a marcha até as
corials foi lenta, faltaram mantimentos e os nativos foram conduzidos como
gado, cercados por criminosos armados. No sexto dia chegaram às corials que se
encontravam no Igarapé da Serra Grande. Comuniquei esses fatos ao senhor Ayres,
que disse que desde a chegada da Expedição, esta não lhe despertara qualquer
interesse e que dificilmente daria crédito essas atrocidades. Eu convoquei, no
entanto, meu intérprete, a quem foram feitas várias perguntas, e as suas
respostas revelaram a verdade. Afirmou que os oficiais subalternos usavam o
pretexto de recrutar índios para a Marinha de Guerra como desculpa para vender
jovens e velhos, que tinham sido dispensados, com o intuito de vendê-los para
seus aliados. Ele prometeu relatar estes fatos para o seu irmão, o Comandante
de Assuntos Civis e Militares da Comarca [Distrito], e me afiançou que apenas
aqueles que realmente pudessem servir à Marinha seriam selecionados, enquanto
os idosos, mulheres e crianças seriam liberados. Sem dúvida, o relatório
impedirá que os seus subalternos os eliminem. Para o viajante que passar da
Aldeia do Pirara para o local de embarque, no Riacho Pirara, seus guias poderão
mostrar-lhe que aquele sítio exibe vestígios de uma povoação. Vestígios de
fogueiras, cajueiros, algodoeiros, é tudo o que resta desta Aldeia Macuxí. Os
guias dirão que em uma noite escura um bando de sequestradores, vindos do Rio
Branco, surpreendeu os pobres nativos e, depois de atear fogo às cabanas,
levaram jovens e velhos para morrerem longe de sua terra natal em servidão e
escravidão. O mesmo destino também ameaçou a jovem Missão do Pirara ‒ que o
leitor julgue como a minha boa sorte evitou o desastre. Para o senhor Ayres
embora o raio tenha caído noutro lugar, a jovem Missão inglesa foi salva e pode
ensinar o índio que:
“Onde
o poder da Grã-Bretanha é sentido,
A humanidade também sentirá suas bênçãos”
Que chegue a hora em que as fronteiras da
rica e produtiva Colônia da Guiana
Britânica sejam decididas por uma pesquisa
do governo! só então a paz e a
felicidade podem ser asseguradas àqueles que se estabelecem no lado britânico
da fronteira.
Depois das corials serem reforçadas para torná-las mais espaçosas, os
brasileiros deixaram o Forte com suas presas humanas no dia 25 de agosto. Como
foi angustiante para mim, antes de partirem, muitos destes pobres seres vieram
até mim e imploraram que eu impedisse de serem levados! Ai! Minhas mãos estavam
atadas tanto quanto as delas quando levadas de suas cabanas em chamas! [...]
Os gemidos
dos pais, os gritos das crianças inocentes e aqueles suspiros profundos do seio
viril são registrados pelo “anjo vingador”. (SCHOMBURGK,
1841)
Bibliografia
SCHOMBURGK, Robert Hermann. Relato da Terceira Expedição ao interior da Guiana ‒ Inglaterra –
Londres ‒ The Journal of the Royal Geographical Society of London, Volume The
Tenth, 1841.
(*)
Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas,
Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
·
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H