Quarta-feira, 6 de abril de 2022 - 06h05
Bagé, 06.04.2022
O sábio teme o céu sereno; em
compensação, quando vem a tempestade ele caminha sobre as ondas e desafia o
vento. (Confúcio)
Ama as águas! Não te afastes
delas! Aprende o que te ensinam! Ah, sim! Ele queria aprender delas, queria
escutar a sua mensagem. Quem entendesse a água e seus arcanos – assim lhe
parecia – compreenderia muitas coisas ainda, muitos mistérios, todos os
mistérios. (HESSE)
Quando
parto às escuras, lembro-me de minhas jornadas anteriores em que faço sempre
questão de sair antes do amanhecer. Na descida dos Rios Aquidauana-Miranda, no
Mato Grosso do Sul, meu parceiro, menos propenso à “Litania das Horas Mortas”, amedrontado, abandonou a jornada no
terceiro dia.
Gosto
de navegar solitariamente usufruindo das belezas naturais que me cercam e
enfrentar todo tipo de obstáculos acompanhado de longe pelo Supremo Arquiteto.
Saindo antes do amanhecer tenho a rara oportunidade de me entranhar nos sutis
meandros aquáticos, de imergir literalmente no momento mágico que é o despertar
de um novo dia. A uniformidade da flora vai ganhando novos contrastes, novas
cores, novas luzes, numa invulgar explosão que apresenta progressivamente a pujança
extrema da biodiversidade tropical.
A
fauna preguiçosa, acorda entoando uma maravilhosa ode sob a batuta do
Astro-rei, tons diversificados, emitidos pelas mais diversas gargantas,
irmanadas numa sinfonia única acompanhada eventualmente, de longe, pelo som
melancólico dos bugios. Nestas horas adentro solenemente nos umbrais de um
templo sagrado e avisto, extasiado, a “Terceira
Margem do Rio”. Somente os verdadeiros canoeiros são capazes de aprender
humildemente com as águas, com os ventos, e entender suas sutis mensagens
observando as nuvens e os seres da mata. Aprendi com eles a reconhecer minha
capacidade e minhas limitações, a fazer companhia a mim mesmo e me alegrar com
isso, a refletir sobre minhas ações ou omissões. A declamar poesias educando a
respiração enquanto pico a voga. Meu coração e minha mente seguem a par e
passo, literalmente, as estrofes da “Litania
das Horas Mortas” de Da Costa e Silva, o Príncipe dos Poetas Piauienses e
autor da letra do Hino do Piauí.
(Antônio Francisco da
Costa e Silva)
Por estas horas de silêncio e solidão,
Eu gosto de ficar só com o meu coração.
É nestas horas de prazer quase divino
Que eu me sinto feliz com o meu próprio destino.
Por estas horas é que a cisma me conduz
Por estradas de treva e caminhos de luz.
É nestas horas, quando em êxtase medito,
Que sinto em mim a nostalgia do infinito.
Por estas horas, quando a sombra estende os véus,
A fé me leva além dos mais remotos céus.
É nestas horas de tristeza e de saudade
Que desperta em meu ser a ânsia da Eternidade. [...]
É nestas horas de tristeza e esquecimento
Que eu gosto de ficar só com o meu pensamento. [...]
Por estas horas transitórias e imortais
Se desvanecem minhas dúvidas fatais. [...]
Por estas horas, meu instinto morre, com
A intenção de ser justo, o anseio de ser bom. [...]
Por tuas horas silenciosas, benfazejas,
Deusa da Solidão, Noite! bendita sejas!
21.09.2017 – Partindo de Rio Branco
A
estada em Rio Branco foi providencial. As dores musculares diminuíram, fiz
minhas marchas diárias de três horas, ao alvorecer, abandonei a dieta a base de
castanhas e bananas, dormi em uma cama seca, tomei banho quente e bebi água
insípida, inodora e incolor, tudo de bom. Estabelecemos contato com a
Prefeitura de Porto Acre e a Agência Fluvial de Boca do Acre da Marinha do
Brasil, esperando que os apoios sejam concretizados para que possamos pernoitar
um dia em cada uma destas cidades mais confortavelmente. A barraca, que me
abriga contra os mosquitos antes do entardecer transforma-se literalmente em
uma sauna seca. Não existem árvores e os arbustos são raros, é época da seca,
acampo onde, no período da alagação, é o leito do Rio.
Acordei
às 04h22 e parti às 05h15, apoiado, mais uma vez, pelo 7° Batalhão de
Engenharia de Construção. Em vez da costumeira e agradável névoa da
evapotranspiração o que se via e sentia era a macabra fumaça das queimadas que
dificultam a visibilidade, a respiração e irritam os olhos.
Um
costume ancestral arraigado nos corações e mentes dos trabalhadores rurais que
teimosamente persistem nesta prática extremamente criminosa. O reflexos desta
deletéria prática são, a longo prazo, o empobrecimento do solo, degradando e
afetando sua fertilidade, e, em consequência, diminuindo a produção agrícola
em virtude da eliminação de nutrientes essenciais como nitrogênio, potássio e
fósforo, além de reduzir a umidade da terra acarretando sua compactação,
desencadeando, com isso, um processo erosivo, que, certamente, estará
comprometendo o futuro e a segurança alimentar da humanidade. Outro grande
malefício oriundo desta infeliz prática é a liberação de uma grande quantidade
de CO2, ‒ principal gás do efeito estufa, sem mencionar os efeitos
altamente nocivos à saúde humana e à sobrevivência de nossa biofauna.
Avistei
um ribeirinho que carregava sua canoa com bananas para vendê-las em Rio Branco
e comprei-lhe duas pencas por quatro reais. As bananas que ganhei em Xapuri, do
amigo Duda Mendes, tinham acabado. Um enorme boto vermelho fez uma evolução a
bombordo do caiaque balançando a embarcação. Mais adiante, a uns 2 km, não sei
se o mesmo boto realizou manobra semelhante a bombordo e boreste.
Avistei,
ao longe, três homens em uma canoa e, ao me aproximar, identifiquei dois
idosos, um na proa e outro na popa e um rapaz de pé empunhando uma espingarda
calibre vinte (09°53’35,90” S / 67°38’13,70” O). A cachorrada latindo em ambas
as margens chamou minha atenção para um enorme capincho macho (Hydrochaeris
hydrochaeris) que nadava rapidamente no talvegue do Rio tentando escapar dos
seus vis algozes.
Acampei,
na margem esquerda (09°47’37,70” S / 67°34’57,80” O), adiante do ponto marcado,
e montei a barraca à sombra de uma embarcação encalhada no banco de areia.
Conversei, aos berros, com o Sr. Cid e esposa, que moram na margem direita
defronte ao meu acampamento, eles empoleirados no alto do barranco eu na praia
da margem esquerda.
Mais
tarde o Cid apareceu para conversar e me mostrou uma gigantesca cabeça de Jau
que ele tinha encontrado. Estávamos conversando animadamente quando, por volta
das 16h00, de repente, o tempo mudou e caiu uma tremenda borrasca.
Consegui
escorar a barraca para que ela não fosse arrastada pela força do vento. Entrei
na barraca e segurei firmemente os estais para que não dobrassem. Meia hora
depois a chuva acalmou. A vantagem da repentina chuvarada foi que a temperatura
amainou e pude relaxar um pouco.
Total 10° Dia – Rio Branco / AC 07a = 63,2 km
Total Geral ‒ Iñapari / AC 07a = 588,9 km
22.09.2017 – AC 07a – Porto Acre
Depois
da chuvarada da tarde passada a temperatura ficou bem mais agradável e dormi
bem. Alvorada às 04h20, como sempre começo arrumando a tralha de dormir na
mochila vermelha. O aprestamento foi lento e minucioso, tinha previsto minha
chegada em Porto Acre antes das 13h00, portanto, não havia pressa, eram pouco
mais de 50 km. Parti às 05h10, graças à chuva o ar estava bem mais puro embora
volta e meia ainda se pudesse sentir o cheiro da vegetação queimada.
Deixei
o celular ligado para que ele identificasse os raros locais onde tivesse sinal
e com isso conseguir saber se o Cb Rogério da Silva Ribeiro, do 7° BEC, que
mora em Porto Acre, tinha conseguido contatar a Srtª Leidiany Honório Rodrigues
a respeito do apoio da Prefeitura em alojamento e alimentação.
Hospitalidade
(Jayme Caetano Braun)
No linguajar barbaresco
E xucro da minha gente
Teu sentido é diferente,
Substantivo bendito,
Pois desde o primeiro grito
De “o de casa” dado aqui,
O Rio Grande fez de ti
O mais sacrossanto rito!
Não há rancho miserável
Da nossa terra querida,
Onde não sejas cumprida
No mais campeiro rigor,
Porque Deus Nosso Senhor
Quando te botou carona,
Já te largou redomona
Sem baldas de crença ou cor! [...]
Hospitalidade é o mate
Da chaleira casco preto,
É a graxa que do espeto
Vai respingando na brasa,
É o truco, que a casa vasa,
Sempre está pintando "Flor",
É Rancho do corredor
E sombra de oitão de casa! [...]
É o charque de carreteiro
Picado sobre a carona;
É o lamento da acordeona
Que se perde campo fora;
É a china linda que chora
Num derradeiro repique
Pedindo que a gente fique
Até que se rompa a aurora!
Mas porém, sintetizada,
Num traste de uso machaço
A hospitalidade é um laço
Bem grosso e de armada grande
Que Deus trançou, pra que ande,
Apresilhado ao cinchão
Nos tentos do Coração
Dos gaúchos do Rio Grande!
A
viagem transcorreu sem alteração. Os ribeirinhos são desconfiados e muitas
vezes não respondem a um simples bom dia ou a um aceno de mão. Que diferença
do nosso Gaudério que já mandaria o Taura passar para diante, lhe mandaria
tomar acento e estenderia de pronto um mate amargo em nome da nossa proverbial
hospitalidade. Como seria bom se todos fossem capazes de corresponder a um
aceno, um cumprimento, um sorriso. O dia ficaria mais alegre, mais leve e
matizado com cores mais cordiais.
Nas
proximidades de Porto Acre o tempo fechou, nuvens escuras e vento vindo de Este
a mais de 40 km/h. Segurei o remo com força e me aproximei ao máximo da margem
direita. Piquei a voga de maneira a vencer logo a curva à esquerda
(09°38’40,06” S / 67°32’06,34” O) que estava logo à minha frente e que me
permitiria ficar protegido do vendaval. Logo que consegui meu intento uma
chuvinha gelada e fina caiu.
O
corpo cansado e castigado pela canícula recebeu sofregamente aquele
providencial fluído. Falei com o Cabo Rogério da Silva Ribeiro pelo celular e o
mesmo me indicou o local onde deveria aportar. Ele e o irmão carregaram o
caiaque até a residência de amigos, Sr. Admilson e Sr.ª Maria José, e depois
fomos procurar o hotel providenciado pela Prefeitura. Fui hospedado no “Hotel e Restaurante 03 Irmãos”
administrado pela Dona Francisca (Chica) e sua fiel escudeira Sr.ª Raquel.
Visitei,
mais tarde, a Sala Memória e acompanhado pelo Sr. Artur Sena, seu titular,
fomos até a Prefeitura agradecer à Srtª Leidiany Honório Rodrigues, Chefe de
Gabinete do Prefeito Benedito Cavalcante Damasceno o apoio prestado. Esta é a
primeira vez, no Acre, desde nossa Descida pelo Rio Juruá que recebemos apoio
de uma Prefeitura. Sempre tivemos o suporte do Exército, Polícia Militar,
Bombeiros Militares em cada cidade acreana pela qual passamos, mas como nenhuma
dessas instituições se faz presente em Porto Acre a única alternativa seria essa.
Agradecemos sinceramente ao Prefeito Bené e sua equipe pela cordial acolhida.
Graças
ao amigo Antônio Jony da Costa Noronha, o Capitão-Tenente (AA) Gerson Garcia de
Carvalho, Agente Fluvial de Boca do Acre, contatou-nos e nos aguarda, é a
Marinha do Brasil apoiando nosso Projeto.
Total 11° Dia ‒ AC 08a / Porto Acre = 54,2 km
Total Parcial ‒ Rio Branco / Porto Acre = 117,4 km
Total Parcial ‒ Iñapari / Epitaciolândia = 188,2 km
Total Parcial ‒ Epitaciolândia / Xapuri = 105,2 km
Total Parcial ‒ Xapuri / Rio Branco = 232,3 km
Total Geral ‒ Iñapari / Porto Acre = 643,1 km
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
·
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Galeria de Imagens
* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H