Sexta-feira, 6 de maio de 2022 - 06h04
Bagé, 06.06.2022
Agosto
1°
Antes de amanhecer fomos continuando pela mesma margem, e às 07h00
chegamos defronte da serra Carumá, onde ficamos. Esta serra é muito alta, e se
acha da parte direita do Rio, por onde à larga distância continua, seguindo
depois a sua direção para o interior da terra, e parte do nascente.
2
Viajamos sem novidade até às 15h00, a cujo tempo passamos pelo lugar onde
existiu a Povoação de Camame, na qual hoje não há sinais dela, e só apenas se
divisam algumas árvores de frutas. Continuamos, e, às 22h00, da noite fomos
chegar à fazenda de gado vacum, pertencente a Sua Majestade, da administração
da qual se acha encarregado um anspeçada ([1]),
tendo por camarada a um soldado, ambos compreendidos no destacamento da
Fortaleza. A fazenda tem pouco mais de trezentas cabeças, mas o seu gado é bem
semelhante no tamanho ao da Europa, e mesmo na qualidade da carne, que é excelente;
o que procede dos bons e salitrados pastos que ali tem.
Dizem que as campinas são vastíssimas e capazes de se estabelecerem nelas
grandes fazendas; porém eu o duvido, porque elas não têm lugares sombrios onde
possam descansar os gados, e alguns que têm são nas faldas das serras, que
ficam a grande distância dos Rios, sendo-lhe portanto no verão muito
dificultosa a água, a qual não tem no interior das campinas, e portanto lhe é
preciso virem algumas léguas de distância, e beberem nos Rios.
Não nego contudo que se lhes possa introduzir muito mais gado do que tem,
mas não concedo que se exagerem tanto estas campinas, quanto o pretendem fazer
algumas pessoas.
3
Partimos desta fazenda de manhã, e chegamos à Fortaleza de S. Joaquim
pelas 09h00. Aqui ficamos o resto deste dia, para se me aprontarem os índios
que me deviam acompanhar, e juntamente para se fazerem alguns pregos que eram
precisos, o que tudo se aprontou. Esta Fortaleza é pequena, mas regular, e se
acha situada na Boca do Rio Tacutu, que ali deságua no Rio Branco, defendendo
portanto a descida de qualquer inimigo, tanto por aquele, como por este Rio.
Tem a competente Guarnição Militar, que se compõe de um Comandante, que é
o Alferes do regimento da cidade, Nicoláo de Sá Sarmento, um Sargento, um Cabo,
e vinte e tantos Soldados dos regimentos de Macapá e cidade; tem também de
guarnição alguns índios, que são mudados todos os meses, e pertencem às
povoações do Rio Negro.
Além destes tem alguns mais, e índias que habitam no mesmo lugar, os quais
para aqui passaram das extintas povoações deste Rio, quando os habitantes
destas foram mudados para diferentes Vilas e Lugares do Amazonas e Rio Negro,
cuja mudança ocasionou a fuga de uns outra vez para os matos, a morte de
outros, e finalmente a perda daquelas e destas povoações, nas quais ficaram
muito poucos.
4
De manhã cedo partimos da Fortaleza, levando em minha companhia três
soldados dela para voltarem com os índios, que iam para ajudarem a varar as
canoas por terra, e deixando o Rio Branco entramos pelo Tacutu, e fomos
pernoitar na Boca do Rio Surumu. É o dito Tacutu um dos maiores tributários que
tem o Branco, pois que enriquecido ele das águas que lhe dão o Surumu, o Mau, o
Sarauru [?] e outros, finalmente de todas lhe faz entrega junto à dita
Fortaleza. É agradável não só pelas praias que tem, mas pelas campinas que de
uma e outra parte oferecem vastíssima vista até elevadas e altas serras.
5
Seguimos pelo mesmo Rio, fomos descansar na Boca do Rio Mau, do qual
trataremos em outro lugar.
6
De madrugada largamos deste, e assim que viramos a primeira ponta
avistamos na margem direita do Rio grandes labaredas de fogo; dirigimo-nos para
esta parte e mandando remar surdamente e com todo o silêncio, chegamos perto e
ouvimos falar; mandei escorvar as armas, e disse a um principal prático, que me
acompanhava, e que era ciente da linguagem de diversas nações indianas,
observasse qual seria a que ali estava, e ele assim o fez, e reconhecendo serem
índios gentios da Nação Uapixana, ordenei ao principal lhes falasse, o que fez
na mesma linguagem, a cujas falas eles corresponderam, o que vendo saltei em
terra, e fui ver a sua habitação e trato, acompanhando-me os soldados e o dito
principal.
Eles não tinham por casa mais do que algumas palhas encostadas nos
troncos de frondosas árvores, debaixo de cujas árvores e palhas guardavam por
motivo das chuvas o seu pobre trem, que apenas consistia em algum peixe
moqueado ou assado a fogo lento, em alguns beijus [chama-se beiju a um pão
chato fabricado da massa de mandioca], e alguns cabaços ([2])
de sal: aqui mesmo guardam as suas redes de dormir ou maqueiras quando chove;
porque no mais tempo eles se acham quase sempre deitados nelas sem abrigo
algum.
Tinham seus arcos e flechas, e algumas espingardas holandesas, mas
nenhuma pólvora, e por isso me pediram lhes desse alguma, porém eu me desculpei
dizendo-lhes que ela estava em parte da qual a não podia tirar no escuro da
noite, mas ficaram satisfeitos com uma pequena porção de sal que lhes dei, pois
o que eles tinham nos cabaços era fabricado naquelas campinas. As mulheres logo
que nos ouviram falar fugiram para a campina, ficando apenas a mulher do
principal e duas velhas, as quais estavam muito pintadas de urucu, e ornadas de
algumas miçangas pelo pescoço, braços e pernas. Eles se informaram do motivo da
nossa ida, e para onde era, e juntamente nos disseram que eles ali estavam
havia alguns dias a espera de uma Expedição que haviam feito para as serras
contra a Nação Macuxí.
Enfim, eu me despedi deles, e continuamos a nossa derrota até as 19h00,
em que chegamos a uma pequena ilha, onde dormimos.
7
De madrugada seguimos pelo mesmo Rio, e, às 10h30, chegamos à Boca do
Sarauru, pelo qual entramos, deixando o Tacutu, que ali traz a sua corrente da
parte do sul. O Sarauru é caudaloso no inverno pelas muitas águas que lhe dão
as vastas campinas que tem pelas suas margens, e as extensas e elevadas serras
de onde traz a sua origem, e esta estação é a mais própria para a sua
navegação. No tempo porém em que por ele entrei já estava muito vazio, e com as
pedras de que se acha formado o seu fundo tão descobertas, que em umas partes
foi preciso aliviar as canoas, e em outras descarregá-las inteiramente, para
assim poderem passar as cachoeiras que tem.
8
E com este assíduo trabalho, continuando pelo mesmo Rio e com as mesmas
dificuldades. Encontramos, pelas 16h00, uma alta e dilatada cachoeira, na qual
nos demoramos o resto do dia a descarregar, e passar os mantimentos por terra
para o fim da mesma, onde se tornaram a carregar.
9
Tratamos de passar as canoas; porém uma delas a deixamos neste lugar por
não nos ser possível vencer por água a sua passagem, e por terra era assaz
dificultosa, por causa das pedras que tinham ambas as margens. Mas enfim
conseguimos passar duas pequenas, nas quais se embarcaram os ditos mantimentos,
concluindo esta diligência pelas 16h00.
Mandei por terra os índios que não foi possível embarcar, deixei dois na
dita canoa para sua guarda, e continuamos pelo mesmo Rio até às 18h30, a cujo
tempo chegamos a outra cachoeira, na qual pernoitamos, havendo-se reunido os
índios despedidos por terra.
10
De manhã passamos a dita cachoeira, e logo às 08h00 encontramos outra, na
qual aliviamos as canoas, que passamos a canal e à sirga ([3]),
e fui continuando a encontrar muitas dificuldades; pois que em partes não só
tinha o Rio pouca água, mas também muitas árvores caídas, cujos troncos foi
preciso cortar para poder passar; mas tudo se venceu com o trabalho, do qual
descansamos com o favor da noite.
11
Continuamos de manhã com os mesmos obstáculos e, pelas 14h00, avistaram
os práticos o lugar por onde haviam de passar as canoas por terra, o qual
parecia estar muito perto; e querendo eu já ir examiná-lo, mandei seguir as
canoas, e parti por terra com dois índios práticos, e os mais que acima disse
marchavam por terra. Pouco depois das 16h00, cheguei ao cume de uma pequena
serra, pelas faldas da qual supus que era o dito trajeto, porém, ou eu, ou os
ditos práticos se enganaram, pois que dali me mostraram em maior distância o
pretendido lugar, ao qual cheguei depois do Sol posto. Como porém eu ia
descalço por motivo de alguns pantanais, que há no caminho, cheguei
bastantemente fatigado, e por isso me resolvi a ficar aqui até o outro dia.
Não havia transportado mais que a espingarda, e portanto os índios que me
acompanharam ajuntaram lenha e fizeram uma grande fogueira, a qual nos pudesse
com o seu calor moderar o frio, que ali tínhamos de sofrer. Já eu estava
deitado sobre uma laje, tendo em torno de mim os índios que me acompanharam,
quando, pelas 20h00, ouvimos ao longo umas confusas vozes, que bradavam. Algum
receio tivemos de que fosse gentio; porém os brados se vieram aproximando, e se
seguiam a eles alguns tiros. Assim que os ouvimos nos persuadimos de que era a
nossa gente, e portanto lhe correspondemos com outros; chegaram finalmente ao
lugar onde estávamos, quase às 22h00, e indagando deles a que vinham, me
responderam que em busca de mim, e que as canoas estavam longe, porque quase ao
anoitecer haviam encontrado uma grande cachoeira, a qual não tinham tempo para
passar de dia. Em consequência disto regressei com eles para as canoas, onde
cheguei quase à meia noite.
12
Chegado que foi o crepúsculo da manhã tratamos de descarregar as canoas,
e passar os mantimentos para cima da dita cachoeira, e depois se vararam as
ditas canoas com muita dificuldade e trabalho. Às 08h00 encontramos outra,
porém menor, e pouco acima outra mais da mesma natureza. Finalmente chegamos ao
lugar do trajeto, quase às 15h00, e dali desembarcamos, o que feito mandei
cortar paus para estivar o caminho por onde haviam de passar as canoas por
terra até as margens do Rio Rupununi, e neste trabalho estivemos até quase às
19h00.
Como pois os índios me não acompanhavam com gosto, pelo receio que tinham
das doenças, que eles por informações sabiam haver na Colônia para onde íamos,
tratei às 20h00 de lhes passar revista, e então achei falta de dez, porém por
causa das sombras da noite não pude saber para que parte haviam seguido.
13
De manhã observamos que eles atravessaram para margem oposta do Rio, e
seguiram por terra para o Rio Branco. Então me desenganei de que para a
conservação desta qualidade de gente não há um método certo; pois só existem
quando e por que tempo querem, apesar do bom tratamento que se lhes dá, pois
até da continuação deste se aborrecem, nem tão pouco acham dificuldade em fugir
nas partes mais remotas, onde parece que os obstáculos os impediriam.
Posta a estiva se principiou com a varação ([4])
das canoas, à qual assisti até quase as 09h00; e encarregando da sua
continuação ao soldado que me devia acompanhar, parti eu a ir examinar a
Longitude que havia até o Rupununi, ao qual cheguei depois do meio-dia.
Regressei então para onde estavam as canoas bastantemente fatigado, não tanto
pela distância, como por causa dos ardentes raios do Sol, que reverberavam
naquelas áridas e vastíssimas campinas, onde se não acha uma só árvore, à
sombra da qual se possa descansar. Este caminho é o melhor que há pela sua
proximidade ao Rupununi; porém deve-se viajar enquanto o Sarauru está cheio;
porque então não só é menor o trajeto, por se poder navegar pelas campinas
inundadas, mas também porque as canoas passam então melhor pelas cachoeiras,
porque todas se acham no fundo d’água, à exceção daquela onde deixei uma canoa,
como acima disse.
E para se acharem estas comodidades deve ser intentada a sua navegação
desde os fins de fevereiro até os fins de abril, e ainda em maio, tempo em que
estão os Rios daqueles sertões em maior enchente. No verão é inavegável tanto
pelo Sarauru como pelo Rupununi. (Continua...) (BARATA)
Bibliografia
BARATA, Francisco José Rodrigues. Da Viagem que fez à Colônia Holandesa de Suriname o Porta Bandeira da
Sétima Companhia do Regimento da Cidade do Pará, pelos Sertões e Rios Deste
Estado, em Diligência do Real Serviço – Brasil – Rio de Janeiro, RJ –
Revista Trimestral de História e Geografia ‒ Volume 08 – Tipografia de João
Inácio da Silva, 1846.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
·
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Anspeçada:
patente militar da cavalaria e infantaria superior ao soldado e inferior a cabo-de-esquadra.
O termo deriva do italiano “lancia
spezzata” significa ‒ lança quebrada, em referência ao cavalariano que,
perdendo a montaria, quebrava sua longa lança e passava a combater como
infante.
[2] Cabaços
(cabaça): fruto da cabaceira, de casca dura, usado como recipiente ou no
fabrico de diferentes objetos.
[3] Sirga: ou espia
‒ rebocar o barco com cordas pela água.
[4] Varação: ou
portagem - transporte da embarcação por terra.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
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Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H