Segunda-feira, 16 de maio de 2022 - 06h00
Bagé, 16.06.2022
3
De manhã fui cumprimentar ao Major, o qual me recebeu com a mesma
afabilidade, e me participou ter já chegado a resolução do Comandante Geral, o
que nos obrigava a ir segunda vez à casa do Governador, para onde nos dirigimos
a cavalo. Chegados que fomos, e feitos os devidos cumprimentos tratou-se da
minha licença apresentando-lhe o Major os meus passaportes, que ele viu, e eu
não entendi as razões que entre um e outro se passaram, porque falavam
holandês. Por fim me declarou o Major que eu tinha licença para continuar minha
diligência, e que se precisava de alguma coisa, a fim de logo me ser aprontada.
Representei-lhe a precisão de um prático para prosseguir pela costa, a qual
ignorava a minha equipagem, ao que eles logo me deferiram, expedindo as
necessárias ordens para se me dar. Perguntaram-me se não tinha precisão de
mantimentos ou de bebidas, assim para mim, como para a minha gente, ao que
respondi que ainda tinha quanto bastava para chegar a Suriname, se a viagem não
fosse muito dilatada.
Despedimo-nos do Governador, dando-lhe eu as possíveis mostras de
gratidão e reconhecimento. O Major me pediu que o acompanhasse à casa do
almoxarife e pagador da tropa, era este um inglês de idade de 40 anos, porém
tão agradável e prazenteiro ([1]),
que parecia querer entrar no coração de todos. O meu amável Major o informou de
quem eu era, para onde ia, e igualmente da minha viagem, o que ele ouviu com
atenção, e não menos assombro. Convidou-nos para que naquele dia lhe déssemos o
gosto de jantar com ele, o que a rogos do mesmo Major aceitei. Era a este tempo
quase meio-dia, e por isso nos retiramos à Fortaleza, a fim de que eu pudesse
dispor a minha viagem, a qual determinei para a maré da noite, como mais
favorável para a navegação que tinha de fazer. Pelas 14h00, me foi apresentado,
por ordem do Governador, o pedido prático, o qual era um negro de Berbiche, a
quem disse que ao tempo da dita maré se devia achar pronto a meu bordo ([2]),
para cujo fim sendo-lhe preciso, ou gente, ou dinheiro, tudo lhe seria pronto.
Procurei outra vez ao Major, o qual deu-me logo o passaporte para
Berbiche, e ordem para ali se me assistir com tudo quanto eu precisasse ou
requeresse, sem dúvida alguma, cuja ordem era dirigida ao Major Belli,
Comandante do dito posto. Depois tornamos para a casa do almoxarife, o qual
tinha também convidado alguns negociantes ricos, e oficiais militares, que
vieram concorrendo. Às 15h00, fomos para a mesa, que foi servida com toda a
magnificência, tanto no esquisito e delicado das comidas, como no asseio e
riqueza do serviço e aparelhos. Dezessete pessoas estavam à mesa, e entre elas
um inglês, mestre e dono de uma pequena embarcação, que havia chegado no dia
antecedente de Barbados, o qual me certificou que uma fragata e algumas
pequenas embarcações de guerra portuguesas haviam ali arribado, tendo saído do
Grão-Pará no Brasil, e que determinavam seguir viagem para Lisboa. Perguntei-lhe
se sabia como se chamava o Comandante da Fragata; ao que ele respondeu que,
segundo ouvira dizer, era um fulano Castro, pelo que inferi logo ser o chefe de
divisão Bernardino José de Castro, Comandante da Fragata Vênus. Era já quase
noite quando se acabou esta agradável sociedade, e portanto nos despedimos, e
retiramos para a Fortaleza, recolhendo-se o Major ao seu Quartel, e eu à minha
canoa a examinar se tudo estava pronto, como eu havia determinado, o que assim
achei. Voltei a despedir-me do Major e da oficialidade, a quem tantos obséquios
devia, agradecendo-lhes quanto pude, e certificando-os de que em qualquer parte
em que me achasse seria sempre seu servidor, e um perpétuo panegirista ([3])
da sua hospitalidade e mais virtudes.
Querendo eles enfim dar-me a última prova delas, insistiram e foram
acompanhar-me até o Porto, apesar das vivas e repetidas instâncias que lhes fiz
para que não tivessem este incômodo, e me não acabassem de confundir com este
novo lance de polidíssima urbanidade. Quase 22h00 seriam quando a maré
principiou a vazar, e nós aproveitamo-nos do seu favor partindo da dita cidade.
Esta tem o seu assento na margem esquerda do Rio Demerara, de quem tomou o
nome, em terreno baixo, porém sumamente plano, e muito agradável pela dilatada
vista do Oceano, que aqui recebe as águas do dito Rio, aliás caudaloso, e que
terá neste lugar quase uma légua de largura.É regular na disposição e ordem de
suas ruas, em que tem muitos e belos edifícios. Tem muito comércio, o qual vem
ali fazer todas as nações aliadas e amigas deste e do outro continente, pelo
que o seu Porto se acha sempre com grande número de embarcações, que
diariamente estão entrando e saindo.
A agricultura mereceu ali sempre particular atenção, e no tempo presente
promete ainda maior progresso, porque o Major Wilson me certificou que a Nação
inglesa tinha já introduzido na dita Colônia mais de 25 mil escravos, do que me
persuado, porque nessas mesmas poucas horas, que lá me demorei, entraram cinco
grandes navios vindos a costa da África com escravatura. Depois que os ditos
ingleses tomaram posse desta parte de Guiana, se têm vindo nela estabelecer
outros muitos e ricos europeus seus nocionais, assim no comércio como na
agricultura. A Fortaleza tem dentro o Quartel da tropa inglesa, cujo edifício é
asseado, magnífico e bem regulado, tendo as competentes repartições para os
Oficiais, Oficiais inferiores e Soldados, e bem assim o Quartel dos Oficiais do
regimento de negros. Esta Fortaleza é regular, e guarnecida com 39 peças de
artilharia de vários calibres, e nela entram de guarda diariamente um Oficial
com 20 soldados, e os competentes Oficiais inferiores.
Junto à Fortaleza, em uma grande Praça, se acha o parque das munições de
guerra, bem fornecido, e se lhe segue o Quartel do dito regimento de negros,
onde tem outra igual guarda, como a mencionada, e defronte está o Quartel do
Comandante Geral, para onde esta última guarda dá duas sentinelas, que estão
postadas no pórtico em duas guaritas. Na cidade, que fica em distância de meio
quarto de légua pouco mais ou menos, mas com muitas casas de permeio, se acha o
Quartel da tropa holandesa subordinada ao dito Comandante inglês, cuja tropa
entra de guarda no seu mesmo Quartel, e dá duas sentinelas para o Governador
Civil, e um oficial inferior para as suas ordens. Toda a tropa referida se
comporá de duas mil praças pouco mais ou menos, compreendido o regimento de
negros, que os ingleses criaram, e que conservam bem disciplinado, cujo corpo
não deixa de ser sumamente útil pelos muitos serviços a que se aplicam, porque
eles não só são exercitados no manejo das armas, mas também no da marinha, e
nos trabalhos das fortificações. Estes negros foram mandados vir da costa da
África, e comprados à custa da Fazenda Real, de quem se pode dizer que são
escravos na qualidade de soldados. Os seus oficiais são brancos até cabos de
esquadra exclusive.
As forças marítimas consistem em algumas lanchas artilheiras, que
continuamente andam cruzando ou rondando os mares e costas vizinhas,
recolhendo-se umas de oito em oito dias, e saindo outras. Quando se quer
expedir algum comboio, vem buscá-lo embarcações de guerra de Barbados, onde
suponho que tem a Nação inglesa maiores forças navais.
A população desta Colônia, não entrando Essequibo e Berbiche, se calcula
hoje em 60 a 70 mil almas, a saber: 8 a 10 mil de brancos e livres, e 50 a 52
mil escravos, levando em conta a tropa paga e a de milícias. Este foi o
conhecimento que pude adquirir no pouco espaço que me demorei nesta cidade, a
qual em breves anos, será uma das melhores da América se os ingleses a
conservarem, como é de supor, apesar de que os holandeses, nela existentes, não
vivem satisfeitos e contentes. Eu, suposto que navegava de noite, contudo
sempre divisava em terra, em pequenas distâncias, muitas plantações seguidas
umas às outras, pelo que inferi que o terreno que vi era todo cultivado [...]
Descansamos logo que a maré nos impediu ir avante.
4
Logo que a maré da manhã nos foi favorável, continuamos sem novidade até
às 15h00, tempo em que chegamos ao sítio chamado Maiacá, junto ao qual está um
grande baixio, que se estende muito ao mar. Fizemos diligência para passá-lo,
porém não o conseguimos, porque refrescando o vento, se empolaram de tal sorte
as ondas, que estivemos a ponto de ir a pique; e assim nos vimos obrigados a ir
encostar à terra à espera de melhor tempo, que neste dia não tivemos.
5
No dia seguinte tentamos a mesma diligência, porém debalde ([4]).
6
Havendo porém no outro dia acalmado alguma coisa o vento, instamos, e
chegando a navegar mais de uma légua ao mar para sairmos de cima do baixio, não
nos foi possível consegui-lo, porque as canoas não eram suficientes para esta
navegação, principalmente não tendo velas, com que pudéssemos marear ([5]);
e portanto tornamos para o lugar donde tínhamos saído.
7
Pela manhã, vendo que não podíamos prosseguir na nossa viagem, tomei o
expediente de partir por terra para Berbiche, para cujo fim quis alugar um
cavalo, que gratuitamente me foi emprestado pelo administrador de uma
plantação, cujo proprietário está na Inglaterra.
Seguido pois de dois índios e do dito negro prático, tomei o caminho ou
estrada que vai para a dita cidade, e cheguei já de noite à margem do pequeno
Rio chamado Maiconi, onde tem um pequeno destacamento de 12 soldados e um
Oficial, em cujo Quartel dormimos por mercê, porém sem aquele agasalho e bom
tratamento que nos outros havíamos experimentado, porque o Comandante estava em
uma plantação vizinha, e apenas se achavam ali os soldados e dois oficiais
inferiores, que pareciam insensíveis.
8
Passamos em uma barca o Rio, e continuando o nosso caminho, chegamos à
margem do Rio de Berbiche, onde pernoitamos em uma estalagem que ali há, e que
muito estimei achar, porque logo tratamos de nos refazer da fadiga e da fome
que neste dia padecemos. Todo o caminho por onde viemos era uma excelente e
larga estiada com frondosas árvores pelos lados, dispostas em ordem, a qual
estrada, tendo o seu princípio em Demerara, vem continuando ora pela frente,
ora pelos lados, ora pelo meio das plantações, até ao dito lugar. Nela
encontrei muita gente a pé ou a cavalo, e em carrinhos, umas vezes homens com
senhoras, outras aqueles ou estas sós nos ditos carrinhos [...] passando de
umas plantações a outras. Os edifícios ou casas destas plantações não têm
inveja aos da cidade, cada uma parecendo uma grande povoação. Nas dilatadas
campinas ou terras baixas, por onde passei nestes 2 dias, não encontrei outra
cultura senão a de algodão, cujas plantas todas dispostas em boa ordem até
agradam à vista e em tanta extensão quanto a minha podia alcançar.
9
Pela manhã atravessei em um escaler o Rio de Berbiche, e fui portar na
Fortaleza, onde reside o Major Belli, Comandante da tropa, para quem era a
ordem que levava do Major Wilson, a qual lhe apresentei, e a vista dela ficou
ciente de quem eu era, e para onde ia. Eu lhe relatei o que me havia sucedido
para não poder chegar ali nas minhas canoas, e que portanto quisesse ele
mandar-me aprontar um barco, em que eu pudesse voltar a buscar a minha gente, e
o mais que trazia, ao lugar em que a tinha deixado, e ele me respondeu que
fosse eu a cidade falar ao Governador Civil, em companhia de um Oficial, que
ele a este fim expedia, e que pelo mesmo Governador me seria tudo aprontado.
A cidade se acha em distância de quase meia légua da Fortaleza, e por
isso fomos em um escaler do serviço do destacamento. Desembarcamos no porto ao
pé da casa do Governador, para onde nos encaminhamos, e fomos por ele recebidos
com muita cortesia. O oficial que me acompanhava lhe fez saber a minha
pretensão, e depois de ter com ele larga conferência em língua holandesa, me
disse que não havia barco, pois o Governador não podia obrigar aos donos de
alguns, que ali se achavam, a darem-nos para semelhante fim. Ao que eu respondi
que tanta dificuldade oferecia S. Exª nisto, quanta facilidade havia eu achado
em Demerara, para onde sem perda de tempo regressava, na certeza de que ali
tudo me seria pronto, mas que ficasse S. Exª na inteligência de que isto não
aconteceria com estrangeiro algum que chegasse a qualquer parte de Portugal e
seus domínios, porque logo seria provido de tudo, e que além disto eu estava
pronto a pagar o aluguel competente.
Vendo o Governador e Oficial esta minha resolução, continuaram a sua
conferência em holandês, e por fim me disse o Governador, que ele faria
aprestar um seu próprio barco, e que dele seria prático o mesmo negro que me
acompanhava, e que ele conhecia, e que para a marcação do pano iriam dois
negros seus, e na maré da noite poderia partir, e que não queria disto aluguel
algum. Agradecendo eu este, ainda que involuntário obséquio, nos despedimos e
recolhemos à Fortaleza, onde jantei com os oficiais, que eram servidos do mesmo
modo que os outros de que já falei.
Acabado o jantar, me convidou um oficial, que comigo havia estado em
Demerara no primeiro dia da minha chegada, para que com ele fossemos entreter o
resto da tarde em ver a Fortaleza e o hospital, ao que assenti com gosto. É a
Fortaleza fabricada de terra, porém regular, e com 26 peças de artilharia de
vários calibres, tendo de sobressalente doze em seu parque, onde igualmente vi
grande quantidade de petrechos de guerra. O hospital não é grande, porém muito
asseado, e bem servido, segundo mostrava na regularidade com que tudo estava
disposto. A Guarnição Militar desta Fortaleza e cidade se comporá pouco mais ou
menos de 200 homens, com 7 oficiais.
Pelo que pertence ao comércio e agricultura ela é mais opulenta que
Essequibo, mais muito menos que Demerara. No seu porto não podem entrar grandes
embarcações, porque a sua Barra não tem fundo suficiente, e quando sucede vir a
ele alguma de maior lotação, fica foram distância quase de duas léguas, que
tanto dista a cidade da Barra.
Assim que a maré principiou a vazar, veio do porto da cidade para o da
Fortaleza o barco, no qual me embarquei depois de despedido, e depois de
agradecer ao Comandante e aos oficiais os seus bons ofícios. Fizemo-nos à vela,
e navegamos toda a noite. (Continua...) (BARATA)
Bibliografia
BARATA, Francisco José Rodrigues. Da Viagem que fez à Colônia Holandesa de Suriname o Porta Bandeira da
Sétima Companhia do Regimento da Cidade do Pará, pelos Sertões e Rios Deste
Estado, em Diligência do Real Serviço – Brasil – Rio de Janeiro, RJ –
Revista Trimestral de História e Geografia ‒ Volume 08 – Tipografia de João
Inácio da Silva, 1846.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
·
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Galeria de Imagens
* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H