Segunda-feira, 30 de maio de 2022 - 06h00
Bagé, 30.05.2022
Diário de uma subida pelo Rio Berbice,
na Guiana Britânica, em 1836-7. Por Robert Hermann Schomburgk. Parte I
Enganados pelos Caribes, sem
provisões e frustrados em nossa tentativa de superar as cataratas, a Expedição
que subiu o Rio. Corentyne foi obrigado a retornar a Berbice no começo de
novembro. Na minha chegada a Nova Amsterdã, não perdi tempo para tomar as
providências necessárias para subir o Rio Berbice, que é um pouco mais
conhecido que o Corentyne, e esta foi a única alternativa que me restou nesse
período já avançado da temporada. Tive o cuidado de providenciar um estoque
duplo de provisões, já que a dificuldade de encontrar gêneros ao longo dos Rios
é um dos principais obstáculos para se viajar na Guiana. Minha equipe, com
exceção do Tenente Losack, foi a mesma; as tripulações dos barcos consistiam de
Arawaaks, Warrows e três Caribes [...]
25
a 27 de novembro de 1836
– Parti de Nova Amsterdã com a maré
alta, naveguei ao longo da costa e subi Rio Berbice, rumo Sul por cerca de 4,8
km, até o Rio voltar-se abruptamente em direção a W.S.W., sua largura média era
de cerca de 800 m. Quando o Sol se levantou, na manhã seguinte, e dissipou o
nevoeiro, as margens do Rio apresentavam uma linha contínua de lavouras;
milhares de mockingbirds [Oriolus perisis] surgiram de uma grande e centenária
árvore de enorme copa [Erythrina Spec.? [1]], onde tinham
se empoleirado durante a noite e, agora, gradualmente se dispersavam em todas
as direções.
Conforme prosseguíamos
verificamos que as lavouras margeavam toda a costa Oriental, mas, do lado
oposto, a vegetação nativa predominava. Que grande contraste essas praias agora
apresentam, quando comparadas com o aspecto que tinham no final do século
passado! Essas áreas cultivadas se estendiam até o Savonette ([2]), a última
propriedade da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, a cerca de 96 km do
mar. Muitos vestígios deste empreendimento ainda podem ser encontrados, mas, à
força do trabalho livre, estão tentando restaurar o antigo esplendor sem a
influência perniciosa e aviltante da escravidão humana.
28
de novembro de 1836 –
Na Latitude 5°50’N. o Rio faz outra volta ao N.W. Ao Sul está o Forte Nassau e
a antiga capital holandesa de Berbice, a uma distância de 72 km do mar, em
virtude da sinuosidade do córrego. O ancoradouro aqui é bom com 11 m de
profundidade, e espaçoso [...]. À medida que subimos, o Rio se estreita
consideravelmente, mas mantém uma profundidade de 9 a 13 m. À Sudoeste,
encontramos a primeira morraria a 48 km de distância da costa, formada por
cômoros de areia que provavelmente eram a linha limítrofe do Mar em uma era
anterior. Eles têm cerca de 4,5 metros de altura e são chamados de Hitia pelos
índios. [...] Este local é a residência do Sr. McCullum, que tem um
estabelecimento de corte de madeira muito grande. [...] Ao sair da floresta,
três quilômetros a Oeste do povoado, uma grande savana ondulante parcialmente
arborizada se apresentava diante de mim. Ali encontrei uma Aldeia Arawaak de
cinco ou seis cabanas, como os homens estavam todos ausentes e empenhados no
corte de madeira, as mulheres se mostraram bastante assustadas com a minha
presença. Pedi um pouco de água, e a trouxeram, imediatamente, em uma cabaça.
Depois de dar alguns presentes às aterrorizadas crianças, continuei minha
caminhada pela savana até que estanquei diante do Riacho Etonie.
Encontrei algumas plantas,
na savana, muito interessantes, e retornei para a casa carregando-as. Enquanto
eu estava ausente, alguns dos índios haviam matado uma bush-master ([3]), a cobra mais
perigosa que Guiana possui; o ofídio mediu pouco mais de um 1,80 m, e suas
formidáveis presas tinham quase 1,3 cm de comprimento. O Sr. McCullum contou-me
que vários de seus homens tinham sido picados por elas e que o remédio adotado
era a escarificação, para extrair as presas, que geralmente se soltam na
picada, a aplicação de sangria por meio de um copo de vidro e um chumaço de
algodão embebido em álcool para se obter o efeito da sucção no local da picada;
além da administração de óleo e purgantes fortes. O Sr. McCullum tem um grande
estabelecimento de beneficiamento de madeira onde frequentemente 200 índios e
mais de 50 negros são constantemente empregados por ele no corte e
processamento da madeira, com exceção do tempo em que eles estão ausentes para
trabalhar nos seus próprios campos. Como chefe da empresa e morando aqui há
muitos anos teve a oportunidade de comparar o desempenho laboral de índios e
negros como trabalhadores. Ele disse:
Eu descobri que
invariavelmente o índio trabalha sempre de boa vontade, e assim permanece até
que sua tarefa esteja totalmente concluída, o que geralmente leva de 2 a 3
horas a menos do que levariam os negros para executar a mesma tarefa, e os
índios continuam trabalhando até concluir sua carga horária.
Conheço muitos deles que,
além de seus salários regulares, ganham de dois a três dólares por semana. Eles
também são, em minha opinião, mais honestos. Se o índio for bem tratado, ele se
mostrará um valioso trabalhador.
Que o Sr. McCullum os trata
bem é provado pelo grau de satisfação demonstrado pelos seus trabalhadores
indígenas. Infelizmente não é o caso de todos que os empregam. Para manter um
índio no trabalho, recorrem, muitas vezes, a meios injustos, fornecendo a eles
artigos e gêneros, em grande quantidade e desnecessários, mediante crédito,
cientes de que o nativo será obrigado a continuar trabalhando até quitar
totalmente a sua dívida. Muitos madeireiros usam todos os meios para evitar que
ele consiga saldar sua dívida, fornecendo-lhe mais e mais mercadorias
arruinando a vida dos pobres nativos mantendo-os praticamente em estado de
escravidão. [...]
08
de dezembro de 1836 –
Fizemos uma parada rápida, na manhã seguinte, em uma Aldeia Waccaway, com
apenas uma família. Fiquei espantado ao reconhecer no líder da Aldeia um antigo
conhecido meu, chamado Philander, que me acompanhara em minha Expedição pelo
Essequibo. Eu o tinha deixado com os Macúsies em Waraputa e agora encontro-o às
margens do Rio Berbice. Esta é mais uma prova dos hábitos nômades do índio e
sua falta de apego às localidades. [...]
18
a 22 de dezembro de 1836 – De
manhã cedo, começamos nossa jornada que foi, no entanto, de curta duração,
pois, após uma súbita curva do Rio, se apresentaram uma série de formidáveis
quedas d’água. Verifiquei que elas se estendiam na direção Leste por mais de
2,4 km, e que, além de cinco cataratas, deveríamos passar por várias
corredeiras e para ultrapassá-las precisaríamos de uns 5 ou 6 dias
transportando as corials e bagagem sobre as pedras. Fiquei apreensivo com a
possibilidade de nossas provisões serem insuficientes, e resolvi enviar uma
corial de volta ao estabelecimento madeireiro do Sr. McCullum para conseguir
mais provisões. O Sr. Reiss gentilmente se ofereceu para liderar essa equipe
que partiu na manhã seguinte. Minha primeira intenção era abrir uma trilha
margeando o Rio para transportar as cargas, mas verifiquei ser isso
impraticável, o terreno era formado por numerosos pedregulhos amontoados uns
sobre os outros que tornavam impossível a construção de uma estiva para o
transporte das corials. Preferi, portanto, transportar a carga pelas rochas e
depois arrastar as corials à sirga. [...] O transporte sobre as rochas
progrediu lentamente, tivemos que descarregar e recarregar as corials quatro
vezes, e em consequência da pouca profundidade nas corredeiras, só podíamos
carregar meia carga de cada vez, pode-se, então, ter uma ideia das dificuldades
encontradas até conseguirmos, na noite do dia 21, colocar as três corials à
frente da catarata. Na manhã seguinte, quando as rações estavam sendo
distribuídas, fui informado de que os Macúsies e os Waccaways, chefiados por
Andres, haviam fugido e não foram mais encontrados. Isso sempre acontecia
quando a distância de sua Aldeia de origem aumentava. Como não havia vestígio
de fogueiras, artigo indispensável para os índios, não resta dúvida de que eles
tinham se evadido na noite anterior. [...]
27 de dezembro de 1836 – O Sr. Reiss não poderia esperar mais de
três ou quatro dias e na manhã do dia 27 transportou a última corial, que havia
sido mantida na catarata inferior, sobre as rochas. O Rio estava baixando e a
diarreia e fortes resfriados se alastravam entre os índios. Decidi abandonar um
dos corais, já que desde a deserção de seis dos Accaways eu não tinha índios
suficientes para arrastar a corial, em terra, e dividimos sua carga entre as
outras embarcações. Passamos a noite em claro, mal deitáramos em nossas redes
quando descobrimos que nossas tendas tinham sido invadidas pelas saúvas-da-mata
[Atta Cephalotes], que infligiam impiedosas mordidas. Aqueles que tentaram sair
de suas redes ficaram felizes em voltar novamente, nossos pobres cães foram os
que mais sofreram, eles não conseguiam sair do alcance delas, e passaram a
noite inteira correndo e uivando, em consequência das severas mordidas que
recebiam. Uma das colunas das vorazes formigas subiu marchando para a copa de
uma das árvore, gerando, como consequência, uma verdadeira chuva de folhas.
[...]
1° de janeiro de 1837 – Fizemos um progresso lento, o Rio
estreitou-se consideravelmente, e numerosas árvores que, haviam caído, por
serem velhas ou sofrerem os efeitos da torrente, bloqueavam nossa progressão, e
fomos obrigados a cortá-las para abrir passagem. Nove em cada dez árvores eram
Moras ([4]), uma das
madeiras mais duras da Guiana, e que, por permanecerem imersas na água, tinham
sua dureza aumentada. Levamos de duas a três horas para cortar uma dessas
árvores, e, às vezes, tínhamos de encarar três a quatro em sucessão. Foi um
trabalho hercúleo, e ninguém, exceto as mulheres, foi dispensado de usar o
machado. Para tornar tudo mais difícil, muitos de nossos índios, em
consequência da indisposição, causada pelas febres e problemas estomacais, eram
incapazes de realizar qualquer atividade. A entrada do novo ano foi, portanto,
bem calculada para aumentar-nos o sentimento de desânimo, pois, depois de
tantos dias, ainda nos encontrávamos muito perto do litoral. Uma sucessão de
circunstâncias adversas tinham ocorrido desde que empreendemos esta Expedição
pelo Corentyne. [...]
02 a 03 de janeiro de 1837 – A indisposição da tripulação aumentara
tanto que eu não mais dispunha de tripulantes suficientes para empunhar os
remos e fui, portanto, obrigado a permanecer acampado até que a saúde da equipe
melhorasse.
04 a 05 de janeiro de 1837 – Enquanto eu estava ausente, em uma
excursão de caça, ouvimos dois estampidos de arma de fogo e uma hora depois o
Sr. Reiss chegava ao nosso acampamento. O Sr. McCullum, de quem a Expedição
recebeu tantas atenções e assistência, atendeu prontamente ao nosso pedido e
cedeu-nos a quantidade desejada de arroz, peixe salgado, etc, e a corial
conseguiu passar pela catarata sem acidentes. À tarde, enquanto eu estava
ocupado observando as mudanças do barômetro e termômetro, uma forte tempestade
caiu sobre nós e, de repente, um raio atingiu uma árvore na margem oposta e o
trovão seguiu-se instantaneamente ao relâmpago, e a reverberação foi tão severa
que homens e animais se assustaram. [...]
06 de janeiro de 1837 – Passamos por rochas, da mesma natureza,
e prosseguimos na direção da Catarata Natal. [...]
24 a 25 de janeiro de 1837 – Recebi, esta noite, uma notícia muito
desagradável. Um índio Warrow, que era um dos meus favoritos, me informou que
uma insurreição estava brotando no acampamento. Já há alguns dias eu
desconfiava da conduta hostil e da desobediência às ordens dos nativos, mas
isso nunca tinha sido demonstrado tão ostensivamente como nesses dois últimos
dias. Eu estava ciente de que a maioria dos índios estava insatisfeita com o
progresso da Expedição, e eu tinha provas de que os negros estavam igualmente
contrariados. Todo o esforço para conseguirmos alguma caça ou peixe foi em vão,
e a sombria perspectiva de que o tempo chuvoso iria continuar levaram-me a
reduzir nossa ração diária a pouco mais de 170 gramas de arroz para os homens e
140 gramas para as mulheres. Fui informado de que os Caribes, chefiados por Acouritch
haviam instigado os outros a levar as corials embora e nos abandonar à noite, e
se resistíssemos deveriam nos deixar amarrados às árvores. Não sei até que
ponto Acouritch poderia ter conseguido apoio dos Arawaaks, no entanto, estava
ciente de que a tripulação do meu próprio barco, os Warrows, não permitiria que
isso acontecesse, foi um jovem Warrow me repassou estas informações. O
conhecimento dessa traição causou-me uma grande inquietação, não sabia até que
ponto a insatisfação grassara, e sabia que não havia nenhum indivíduo no
acampamento que não objetasse em prosseguir em frente. Informei ao Sr. Reiss da
situação, e decidimos permanecer vigilantes, e manter uma guarda rigorosa sobre
as corials, armas e munições. Acouritch deve ter tido conhecimento que sua
trama fora descoberta e montaram seu acampamento nesta noite não muito longe da
minha tenda. Observei as fogueiras acesas durante toda a noite, mas não fiquei
surpreso ao descobrir, na manhã seguinte, que haviam desertado por volta da
meia-noite. Nós tínhamos ouvido o latido de um dos nossos cães a alguma
distância do acampamento. O Sr. Reiss foi verificar, mas, não vendo nada de
incomum, voltou para a sua rede, e, enganado pelas fogueiras, supôs que os
Caribes estavam em suas redes. Eles levaram consigo alguns dos nossos melhores
facões, panelas de ferro, chaleiras de acampamento, etc. Não encontramos nenhum
vestígio da direção que haviam tomado, mas concluí que eles devem ter tentado
alcançar o Corentyne seguindo no rumo do Oriente. [...] Nossa situação se
tornava mais crítica a cada dia. Estávamos, agora, reduzidos a onze homens
efetivos, que deveriam ser distribuídos entre as quatro corials. Eu ainda
estava inclinado, no entanto, a avançar.
26 de janeiro de 1837 – No decorrer do dia, o Rio foi se
alargando tomando a forma de um Lago, margeado por pequenos arbustos e
parcialmente tomado pela bela vitória-régia ([5]), o orgulho de
minhas descobertas botânicas, que crescia tão luxuriantemente que algumas delas
mediam 2 metros de diâmetro. Uma espécie de polygonum ([6]), e numerosas
gramíneas de diferentes matizes, cobriam o Rio tão completamente, que apenas um
pequeno espaço, onde a corrente era mais forte, tinha sido deixado livre.
Infelizmente, nossa alegria não durou muito! Tivemos novamente de cortar palmas
espinhosas e numerosas solanums ([7]) espinhentas
que às vezes tínhamos que arrastar a corial à força sobre elas. (Continua...) (SCHOMBURGK, 1837)
Bibliografia
SCHOMBURGK, Robert
Hermann. Diário de uma Subida pelo Rio
Corentyne, na Guiana Britânica, em 1836 / Diário de uma Ascensão do Rio
Berbice, na Guiana Britânica, em 1836-7 ‒ Inglaterra – Londres ‒ The
Journal of the Royal Geographical Society of London, Volume The Seventh,
páginas 285 a 301 & 302 a 350, 1837.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
· Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul
(1989)
· Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do
Exército (DECEx);
· Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar
do Sul (CMS)
· Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira
(SAMBRAS);
· Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil
– RS (AHIMTB – RS);
· Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande
do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER –
RO)
· Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do
Sul (AMLERS)
· Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola
Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
· .
[1] Erythrina: um gênero de árvores
da família Fabaceae (Faboideae), conhecidas como eritrinas.
[2] Savonnette: antigamente era uma propriedade açucareira que ficava
na margem Oeste do Rio Berbice, entre os riachos Kibilibiri e Tapoeri.
[3] Lachesis muta: conhecida como surucucu-pico-de-jaca e
cobra-topete, é a maior serpente peçonhenta da América do Sul.
[4] Mora ou Paracuúba: gênero botânico pertencente à família Fabaceae.
[5] Vitória-amazônica.
[6] Gênero botânico da
família polygonaceae.
[7] Solanum: gênero de plantas da família Solanaceae. O grupo inclui
muitas espécies de plantas perenes arbustivas ou trepadeiras.
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