Quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021 - 06h00
Bagé, 24.02.2021
Foz do Breu, AC/ Manaus, AM ‒ Parte XXXV
Mal Thaumaturgo -
Porto Walter
(Quintino Cunha)
Um Lago, a cuja flor, nas
canaranas,
Impossível, traiçoeiro, repelente,
Um jacaré assustadoramente
Estruge e tange as gárrulas
ciganas. [...]
22.12.2012 ‒ Rumo à Comunidade do Lago Tuaré
A estada, de dois dias, no Destacamento foi bastante proveitosa e
permitiu que nos refizéssemos plenamente do esforço inicial dos dois dias de
deslocamento da Foz do Breu até Marechal Thaumaturgo, um percurso de 138,5 km
de águas muito rápidas, mas com uma enorme quantidade de troncos e outros
detritos vegetais que, volta e meia, bloqueavam parcialmente o Rio Juruá.
Em uma Expedição longa como a nossa, deve-se ir aumentando gradativamente
as distâncias para evitar desgastes físicos desnecessários e contraturas que
podem prejudicar o bom êxito de uma longa missão. O ideal era que se chegasse
fisicamente preparado para o início das travessias mas, no meu caso, isso
raramente aconteceu. Somente na “Descida
do Solimões” consegui dar início aos deslocamentos dentro de minha melhor
forma física.
Normalmente, porém, os preparativos para a viagem, as inúmeras
providências administrativas que precisam ser tomadas acabam interrompendo os
treinamentos e, sistematicamente, tenho iniciado minhas descidas sem treinar
durante um mês inteiro. Desta feita participei, na última semana de novembro,
de um Seminário em Manaus quando aproveitei para tentar obter apoio
institucional e particular ao Projeto; todos os elementos consultados, na
época, mostraram-se extremamente simpáticos à Expedição General Bellarmino
Mendonça, mas por demais reticentes em apoiá-la efetivamente.
Partimos às sete horas da manhã, o Juruá tinha baixado mais de dois
metros em apenas quarenta e oito horas, tive de arrastar o caiaque por cima das
canaranas que antes estavam totalmente submersas. A alternância de chuva nas
cabeceiras do Alto Juruá determina esta drástica variação. Os ribeirinhos
acompanham atentamente o ciclo das águas para evitar que suas embarcações
fiquem temporariamente encalhadas nas praias.
Comunidade do Lago Tuaré
Lago maldito ‒ Jaçanãs
(Jonas Fontenelle da Silva)
Se hoje, em surdina, o teu pesar disfarças,
Ouvindo o canto das jaçanãs morenas,
Sentes, minh’alma,
as aflições e as penas
De um Lago azul sem jaçanãs nem garças. [...]
Uma jornada perfeita! Por volta das doze horas, pedi que a equipe de
apoio passasse à frente e buscasse um local apropriado para nosso
acantonamento.
Aportei às 13h00 na Comunidade do Lago Tuaré. O Mário e o Marçal já
tinham montado nossas barracas em uma das salas de aula da Comunidade e, como a
escolinha não tinha fogão, solicitaram à matriarca Sra. Maria Francisca Queirós
Correa que preparasse nosso almoço. Navegáramos 63 km.
Ultimamos a montagem do acantonamento enquanto aguardávamos o almoço
ficar pronto e o Cel Angonese aportar. Dona Maria gentilmente preparou o almoço
que mais tarde foi degustado pelo quarteto na cozinha da residência da gentil
senhora. Fomos tomar um banho no Lago Tuaré, onde as jaçanãs (Jacana jacana)
agitadas, incomodadas com a nossa presença, gargalhavam. Tomamos banho dentro
das canoas, tendo em vista que o leito do Lago é lodo puro.
Depois do banho, ficamos conversando com o líder da Comunidade, Sr.
Evilácio Rodrigues Correa, esposo da Dona Maria. Filho de português com uma
acreana, o mestre Evilácio foi outrora um mecânico, torneador, fundidor de
peças e um marceneiro de mão cheia que hoje se esforça para repassar o
conhecimento aos filhos. Enquanto conversávamos, seus filhos construíam uma
passarela de madeira ligando as residências e a escolinha para tornar mais
higiênica e segura a movimentação dos moradores na época das cheias.
À noite fomos, novamente, convidados para fazer a refeição na casa do
mestre Evilácio. A Comunidade incrustada no Parque Nacional da Serra do Divisor
é formada por descendentes de Evilácio e Maria onde reina um clima de total
harmonia.
Foi muito bom desfrutar do convívio, ainda que brevemente, destes novos
amigos ribeirinhos que nos receberam com tanto carinho e amizade no seio de sua
família.
Sem qualquer consulta prévia aos moradores, os “ecochatos” do Meio Ambiente denominaram a Comunidade como Porungaba
e os mapas do DNIT a situam na margem direita quando, na verdade, está
localizada na margem esquerda ([1]).
O Igarapé Porungaba, que passou a denominar a pequena Comunidade, situado à
margem direita do Juruá, é um pequeno filete d’água sem a menor expressão
física enquanto o belo Lago Tuaré, de águas pretas, que fica nos fundos da
Comunidade e foi, sem sombra de dúvidas, um dia, o leito do tumultuário Juruá,
é um acidente natural muito mais importante para os ribeirinhos.
23.12.2012 ‒ Rumo à Com. Novo Horizonte
Despedimo-nos de nossos novos e queridos amigos e partimos depois das
07h00. As águas do Juruá tinham baixado mais ainda. O rendimento das remadas
foi menor que o dia anterior (10 km/h) e muito menor que no trecho Foz do
Breu-Thaumaturgo onde conseguimos imprimir, em alguns trechos, 15 km/h. A
viagem transcorreu sem grandes alterações, marquei alguns pontos notáveis do
terreno para corrigir os mapas e aportamos, por volta das 13h00, depois de
percorrer 53 km, na Com. Novo Horizonte, onde nosso Destacamento Precursor, já
conseguira autorização para montar as barracas no corredor da escolinha.
Novamente contamos com a gentileza de Cristóvão, filho da matriarca Sra.
Maria de Fátima, e sua esposa Rosa que permitiram que o Marçal usa-se sua cozinha
para preparar um saboroso carreteiro. À noite, nos deleitamos com alguns
barbados fritos, pescados pelo Angonese. Desde que saímos de Thaumaturgo que os
temíveis piuns, maruins e pequenas mutucas, do tamanho de uma mosca, não nos
deixam em paz. Nenhum repelente afasta os terríveis insetos, nem mesmo a nossa
fantástica andiroba surtiu efeito desta feita. Felizmente conseguimos água da
chuva para tomar banho já que o acesso à margem do Juruá era um atoleiro só e
não compensaria o sacrifício.
24.12.2012 ‒ Rumo a Porto Walter
Despedimo-nos dos amigos e partimos às 07h15. As chuvas intensas que
caíram à tarde aceleraram, as águas do Juruá, permitindo que atingíssemos 10
km/h. O Angonese ficou para trás para tirar mais algumas fotos da Comunidade. O
despertar do dia foi tremendamente festivo, era véspera de Natal e poucos
ribeirinhos cruzavam por nós com suas ruidosas rabetas que afastavam os botos,
calavam os pássaros temporariamente e acordavam estridentes insetos e
batráquios. Como na maioria dos Rios de águas brancas, a profusão de cantos, ao
amanhecer, das mais variadas espécies, é uma verdadeira ode ao astro rei. Senti
falta apenas, desde a Foz do Breu, do som gutural dos guaribas. Volta e meia
passávamos por um monumento arbóreo, estes imensos gigantes da floresta
carregados de bromélias, pequenas orquídeas e uma infinidade de parasitas,
verdadeiros viveiros naturais abrigando nas suas frondes todo o tipo de
insetos, aves e pequenos mamíferos.
Eu observava encantado, nas margens externas das curvas, os enormes
paredões sendo moldados continuamente pela força das águas. Volta e meia
grandes blocos arenosos despencavam ruidosamente, por vezes blocos maiores
carregavam consigo a vegetação marginal, abatendo cruelmente, em poucos
segundos, árvores centenárias. O Rio Juruá traz no seu DNA a inconstância
tumultuária do Amazonas. O Rio-Mar teve um avô formidável que corria para
Noroeste e desaguava no Pacífico nas priscas eras da “Pangea” ([2]);
teve como pai o “Lago Pebas” ([3]),
quando os continentes se separaram e suas águas foram barradas pela Cordilheira
dos Andes que se formou. Talvez o Juruá, como fiel tributário do Amazonas e que
traz nos seus genes a herança ancestral deste extraordinário colosso, queira
mostrar que também é um adolescente intempestivo e rebelde, afrontando tudo à
sua volta, provocando alterações profundas na natureza e na vida dos
ribeirinhos. Cheguei, por volta das doze horas, no Posto de combustível Flor
D’Água, em Porto Walter (08°15’51,4” S / 72°44’28,7” O), depois de remar 51 km.
O Cel Angonese já estava em Porto Walter, como bom infante resolvera, disse
ele, fazer uma incursão terrestre atalhando uma grande alça do mais sinuoso dos
Rios do planeta.
Novamente pedi apoio aos nossos fieis amigos da Polícia
Militar que prontamente nos transportaram e nos abrigaram em seu
aquartelamento. Iríamos passar o Natal em Porto Walter, AC, e partiríamos de
manhã para mais uma etapa de três dias até Cruzeiro do Sul, AC. Fomos conhecer
o centro da pequena Cidade e na volta participamos da ceia natalina preparada
pelos nossos amigos Policiais Militares.
²Total Parcial: Mal Thaumaturgo ‒ Porto Walter = 167,0 km
²Total Geral: Foz do Breu ‒
Porto Walter = 306,0 km
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da Academia
Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Comunidade do Lago Tuaré: 08°40’33,7” S /
72°49’06,3” O.
[2] Pangea ou Pangeia ‒ nome dado ao continente
que, segundo a teoria da deriva continental, existiu até 200 milhões de anos,
durante a era Mesozoica e que, nessa altura, começou a se fragmentar.
[3] Lago Pebas ‒ há aproximadamente 11 milhões de
anos, a Bacia Amazônica estava submersa num grande Lago que tinha saída para o
Oceano Pacífico. Com a deriva dos continentes e a consequente elevação da
Cordilheira dos Andes, as águas ficaram temporariamente represadas até que
passaram a correr para Leste, formando a Bacia amazônica e o Rio Amazonas
desaguando no Oceano Atlântico. A drenagem permitiu que as terras antes
submersas aflorassem.
Galeria de Imagens
* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
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Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
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