Segunda-feira, 12 de abril de 2021 - 08h32
Bagé, 12.04.2021
Navegando o Tapajós ‒ Parte X
Não estou arrependido de minha atitude. Estou apenas
desapontado com meus companheiros do Rio e São Paulo, além de outros elementos
comprometidos na revolução, os quais falharam na hora precisa. Sempre lutei
pela deflagração do movimento antes da posse de Juscelino. Minha atual situação
resulta da não aceitação de meu ponto de vista. Não me interessa entrar em
choque com as tropas do governo; minha missão era manter o triângulo
estratégico das operações: Jacaré-Acanga, Cachimbo e Itaituba. (Major Haroldo
Veloso)
A
reportagem “Jacareacanga uma Cooperativa
na Selva” publicada no Almanaque do Correio da Manhã (Edição n° 1, 1959)
mostra a ligação afetiva que o Major Haroldo Veloso tinha para com a região que
ele considerava estratégica para a Revolução.
Almanaque do Correio da Manhã, n° 1
Rio de Janeiro, RJ, 1959
Jacareacanga uma Cooperativa na Selva
Era apenas um enorme rasgão na selva bruta, em junho de 1954. Três anos
depois, Jacaré-Acanga já se transformara em aeroporto moderno, aparelhado com
todos os requisitos técnicos, radiofarol, pista de aterragem de mais de 2.000 m,
energia elétrica, e um punhado de alegres casas de tijolo pintadas de branco.
Entre elas, uma nova escola, com quase uma centena de crianças. E eis a
maior surpresa: uma florescente cooperativa agrícola em pleno funcionamento! Sim,
uma cooperativa no coração da selva amazônica, a 2.300 quilômetros em linha de
voo do Rio de Janeiro, a 500 quilômetros de Santarém [cinco dias de viagem pelo
encachoeirado Tapajós], a quase meio milhar de quilômetros de Manaus, e a 280
de Itaituba, que é a sede do município. Sua posição geográfica: 06°16’ Latitude
Sul, 57°44’ Longitude Oeste.
A história é recentíssima, datando propriamente de 1950. Existia ali,
desde os princípios do século, um lugarejo chamado Buriti, habitado por umas
poucas famílias de seringueiros, castanhadores e pescadores de jacaré.
Mantinham-se em contato com o mundo só através do regatão que é uma embarcação
de comércio ambulante, muito comum na Amazônia, e a cujo bordo se encontra mais
ou menos tudo para comprar, desde artigos de armarinho, mantimentos e remédios
diversos, até a munição para o indispensável “papo amarelo” [carabina calibre 44].
Foi quando a Fundação Brasil Central, que vinha estabelecendo bases a
partir de Aragarças, rumo a Manaus, fundou um posto ali perto, em
Jacaré-Acanga, à margem esquerda do Tapajós. Isso em 1950. Uma clareira na mata
foi adaptada precariamente para campo de aterragem. Três anos depois, a Força
Aérea Brasileira tomou conta da base [entrementes abandonada pela Fundação
Brasil Central] para transformar Jacaré-Acanga, que significa “Cabeça de Jacaré”, num dos mais
importantes pilares da grande ponte aérea, a qual, em breve, ligaria o Rio de
Janeiro a Manaus. Foi traçada uma nova pista, com 60 metros de largura e mais
de 2.000 de comprimento. Árvores gigantescas tiveram que ser derrubadas a dinamite.
A longa cicatriz rasgada no corpo da floresta acabou tomando forma de
campo de aviação onde, futuramente, operariam até quadrimotores. O calor em
Jacaré-Acanga é amazônico. Bilhões de piuns e carapanãs, aqueles de dia, estes
de noite, infernizavam a vida e perturbavam o sono. Não havia nem vestígio do
mais rudimentar conforto. E a alimentação?
Eis o grande problema que exigia urgente solução. Como alimentar cerca de
uma centena de operários contratados para a derrubada da floresta, a remoção
das toras de grossura descomunal, a limpeza da enorme área, a construção da
pista e das casas? Os poucos nativos da região viviam precariamente de farinha
d’água e de peixe. Arroz? Milho? Feijão? Banana?
Não havia, e ninguém plantava. O açúcar, o café, os fósforos, o sal, a
roupa, os remédios, o querosene, a ferramenta, a munição eram comprados a
preços escorchantes do regatão explorador, a mais do dobro, a três ou quatro
vezes mais que as preços cobrados em Santarém ou em Manaus.
Foi daí que o Major Haroldo Veloso e seu assistente, suboficial José
Fernandes da Silva, incumbidos da construção do campo, cogitaram de formar uma
cooperativa que beneficiaria não só os trabalhadores, mas todo o povoado, e
possivelmente Vida a região. Mandaram vir sementes. Ensinaram o plantio de
arroz, de milho, de feijão, de cana, de araruta, de café. Arranjaram mudas de
bananeiras e árvores frutíferas. E onde seria a roça?
Ora, nas próprias áreas desmatadas das cabeceiras e das margens do campo
de aviação. Urna roça ideal e enorme. A primeira experiência resultou positiva,
e a segunda ultrapassou as expectativas.
Vastos e verdes arrozais, milharais fartamente pendoados ([1]), com
três ou quatro longas espigas em cada pé de mais de dois metros proporcionaram
colheitas generosas: para mais de 2.000 sacos de milho, mais de 1.500 sacos de
arroz, sem falar da cana-de-açúcar, do feijão, da araruta, da mandioca e do
aipim.
José Fernandes, cearense de boa cepa e muita fibra, trabalhador e
disciplinado como ele só [com 23 anos de serviço na FAB, na qual entrou aos
16], para explicar o milagre dessa abençoada terra amazônica, dizia na sua
linguagem pitoresca:
– Tão bom é este chão, tão formidavelmente bom,
que basta plantar chumbo para nascer pólvora...
Sim, um autêntico milagre na selva, mas um milagre para o qual Deus só
entra com a terra, o Sol e a chuva. O resto, é o esforço desses homens que,
dentro do preceito cristão, fazem do trabalho sua prece e amam seu próximo
tanto ou mais que a si mesmos. Com a. safra e o lucro das vendas, a cooperativa
se aprumou. Em meadas de 1957 contava uns 70 associados. Seus bens imóveis já
beiravam um milhão de cruzeiros, e outro milhão custaria seu barco, que estava
sendo construído ali mesmo, com capacidade de 25 toneladas líquidas. Triunfou
assim a cooperativa e com ela Jacaré-Acanga [em meados de 1957 já contava mais
de 300 habitantes], sobre os fatores adversos que lhe embaraçavam a emancipação
e um nível de vida melhor.
Em princípios de 1956, o Major Veloso foi substituído pelo então Tenente,
hoje Capitão Colombo Cristóvão na chefia da Rota Rio-Manaus, à qual se
subordina Jacaré-Acanga.
Se outros méritos não tivesse o novo administrador, capixaba trabalhador
e inteligente, bastariam estes dois para eternizar-lhe o nome na Rota Rio-Manaus:
a introdução do Daraprim para prevenir ou superar a malária, e e Nitrosin para
derrotar a saúva. Será virtualmente impossível calcular o rosário de benefícios
que resultarão do combate a esses dois flagelos que castigam grande parte do
Brasil, e particularmente a Amazônia. (CORREIO DA MANHÃ, N° 1, 1959)
As estações de rádio das companhias comerciais de aviação, cujos cristais
estavam em poder de Veloso, voltaram ao ar. Centenas de pessoas que haviam
fugido ante o noticiário alarmista das emissoras, começaram a regressar. (Arlindo
Silva, repórter da Revista O Cruzeiro, 1956)
A
eleição do Presidente da República Juscelino Kubitschek e de seu Vice João
Goulart preocupava alguns setores da sociedade brasileira. Inconformados com a
situação política que se delineava, o Major Haroldo Veloso e o Capitão José
Chaves Lameirão, da Força Aérea Brasileira, arquitetaram um movimento militar
que esperavam ganhasse amplitude nacional. Na madrugada de 11.02.1956, dias
antes da posse dos eleitos, os dois oficiais sequestraram, do Campo dos
Afonsos, Guanabara (atualmente Rio de Janeiro), uma aeronave “Beechcraft”, carregaram-na com armamento
e munição e rumaram para a Base Aérea de Cachimbo que eles mesmos haviam
ajudado a construir. Mais tarde, o próprio Capitão José Chaves Lameirão
confessou:
Nosso plano era iniciar efetivamente a
Revolução. Era preciso que alguém o fizesse. Nosso plano era apoderar-nos, logo
de início, da base de Cachimbo – e foi o que fizemos.
É preciso que se saiba que o Cachimbo fica
mais ou menos equidistante de Fortaleza, Recife, Natal e Salvador. Com a Base
em nossas mãos, seria fácil aos camaradas que quisessem aderir, com seus aviões
B-25, as “Fortalezas Voadoras” do
Nordeste, e os “Ventura” de Salvador,
principalmente, voar diretamente ao Cachimbo e ali lutar pela causa.
Chamaríamos, também, as atenções da Nação para aquele ponto e para o Amazonas,
e isto poderia facilitar o levante no Sul. Achávamos que alguém começando a
Revolução, ela se alastraria naturalmente. (LAMEIRÃO)
Os
amotinados, procurando ampliar sua área de influência, ocuparam e dominaram,
depois da Base Aérea de Cachimbo, a Base Aérea de Jacaré-Acanga (Cabeça de
Jacaré). Desde a decolagem do campo dos Afonsos, todos os aeroportos do país
tinham recebido o sinal de alerta e, tão logo foi conhecida a posição dos
insurgentes, partiu um “Douglas”,
comandado pelo Major Paulo Vitor, com a missão de aprisionar os rebeldes. A
tripulação, tão logo pousou em Jacaré-Acanga, foi aprisionada enquanto o
Comandante Paulo Vitor aderiu ao movimento.
Veloso,
dando continuidade à estratégia de ampliação da área convulsionada, parte com o
“Beechcraft”, reforçado pelo “Douglas”, para a Base de Santarém que
foi ocupada sem resistência. Enquanto Lameirão providenciava a interdição da
pista, Veloso assumiu o comando da força policial santarena, interditou o
telégrafo e neutralizou as comunicações das estações de rádio e das companhias
aéreas, retirando-lhes os cristais dos equipamentos. Fechou o “Tiro de Guerra 190” e convocou alguns
atiradores para o serviço de patrulhamento e vigia.
Concluídas
as medidas preliminares e mais urgentes, Veloso se dirigiu à população, fazendo
uso do serviço de alto-falantes do Partido Social Democrático (PSD), e
comunicou que a Cidade estava sob controle pacífico da Força Aérea e que a
população podia continuar com seus afazeres diários sem qualquer temor. No
trapiche do Instituto Agronômico do Norte, Bairro da Prainha, foi montado um
Posto de Vigilância com a missão revistar as embarcações. Os revolucionários
achavam que a repercussão com a tomada de Santarém provocaria a adesão de
outros oficiais, ampliando o movimento, mas não foi o que aconteceu.
Combate em Santarém!
Luta-se
encarniçadamente na
Pérola do Tapajós!
Já sobem a milhares
os mortos e feridos na revolta de Jacaré-Acanga!
No
Sul do país, as rádios alardeavam notícias fantásticas e exageradas, enquanto
em Santarém as “Fortalezas Voadoras”
sobrevoavam a Cidade despejando folhetos conclamando a população a se afastar
dos insurretos.
Na
tarde de 22.02.1956, Lameirão, sobrevoando o Amazonas no “Beechcraft”, avistou uma embarcação que confundiu com o “Presidente Vargas”, de transporte de
tropas; na verdade era o “Lobo D’Almada”,
que conduzia centenas de civis. Lameirão, muito nervoso, tão logo pousou, foi
relatar a Veloso a necessidade de bombardeá-lo, que preferiu outra alternativa,
realizando uma retirada estratégica que, certamente, poupou a vida de centenas
de inocentes.
Às
dezenove horas desse mesmo dia, partiram para a Base de Jacaré-Acanga levando
armas, munições e 25 homens que julgavam serem fiéis ao Movimento. Dias depois,
chegava a Santarém o “Presidente Vargas”
com um contingente de 300 homens do Exército, comandados pelo Coronel Hugo
Delayti, e um contingente de paraquedistas militares, comandados pelo Coronel
Santa Rosa, o aeroporto foi liberado permitindo o pouso de diversas aeronaves
militares.
Enquanto decorriam as operações aéreas de reconhecimento do campo
inimigo, as tropas vindas pelo “Presidente
Vargas” iniciavam sua subida pelo Tapajós, sob o comando do Coronel Hugo
Delayti. Viajavam em barcaças. [...]
Sucedeu, porém, um imprevisto: Veloso queria apanhar gasolina em
Itaituba. Chegou a São Luís [fronteira àquela Cidade] numa embarcação com 12
homens. Dessa localidade, enviou dois espiões a Itaituba para averiguarem se a
praça estava desguarnecida. Acontece que lá estava a tropa do Coronel Delayte.
Os dois espiões denunciaram o Plano de Veloso. Fizeram mais: conduziram Delayte
e seus soldados a São Luís e indicaram a casa onde Veloso estava escondido.
Ocorreu, então, o único choque armado entre rebeldes e legalistas. Veloso
escapuliu pelo mato, mas no chão ficou estendido um homem: Cazuza, que Veloso,
dias antes, em Santarém, em tom de pilhéria, promovera a Cabo. [...] Cazuza se
transformaria na única vítima da “Guerra
do Tapajós”. (O CRUZEIRO, N° 21)
Bibliografia
CORREIO DA MANHÃ, N° 1, 1959. Jacareacanga uma Cooperativa na Selva –
Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Almanaque do Correio da Manhã, n° 1, 1959.
O CRUZEIRO, N° 21. Pequena história de uma Revolução –
Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista O Cruzeiro – 10.03.1956.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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