Quarta-feira, 30 de dezembro de 2020 - 08h33
Bagé, 29.12.2020
Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte LXXXVIII
Descendo
o Rio Madeira ‒ XIX
A Corrida do Ouro no Rio
Madeira
Elas
não podem impedir a navegação. Isso é proibido. Se forem vistas fazendo isso, é
apreensão na certa. A lavra deve ser feita apenas onde não houver risco
ambiental. (Fred Cruz – Assessor do DNPM)
O Rio Madeira esconde sob suas águas
barrentas e apressadas a ilusão de enriquecimento “rápido” de milhares de seres humanos que abandonaram o conforto de
suas casas e a convivência de seus familiares para morar em precários e
barulhentos flutuantes, cercados por estranhos, ancorados no leito do Rio, em
busca do ouro. Na “Corrida do Ouro”,
da década de oitenta, o Rio Madeira foi palco de um drama onde raras pessoas
fizeram fortuna e onde muitas perderam tudo que tinham e, não raras vezes, a
própria vida.
Em nossa descida pelo maior afluente da
margem direita do Rio Amazonas, avistamos milhares de dragas trabalhando
diuturnamente removendo areia, lama e cascalho com tal intensidade que são
capazes de alterar a geografia do Rio. São verdadeiras Vilas flutuantes
(fofocas), algumas margeando, quase bloqueando, perigosamente os canais de
navegação, prejudicando o tráfego naval e colocando em risco as vidas de seus
residentes e dos tripulantes das embarcações.
A partir de Borba, à medida que nos
aproximamos da Foz do Madeira, seu número vai diminuindo lentamente até se
tornarem raras. Avistamos à noite algumas trafegando temerariamente,
praticamente, às escuras, sem qualquer tipo de sinalização, com a finalidade de
mudar de local de garimpo ou, em virtude da cheia, voltar à sua Comunidade de
origem onde permanecerão estacionadas até a vazante.
A Amalgamação
Fonte: Jurandir Rodrigues de Souza e Antônio Carneiro Barbosa
A utilização do mercúrio no
processo de amalgamação do ouro já era conhecida pelos fenícios e cartagineses
em 2.700 a.C. Caius Plinius, em sua “História
Natural” (50 d.C.), descrevia a técnica de mineração do ouro e prata com um
processo de almagamação similar ao utilizado hoje nas minas de ouro. O Brasil
não produz mercúrio.
A sua importação e
comercialização são controladas pelo IBAMA por meio da Portaria n° 32 de
12.05.1995 e Decreto n° 97.634/89, que estabelece a obrigatoriedade do
cadastramento no IBAMA das pessoas físicas e jurídicas que “importem, produzam ou comercializem a
substância mercúrio metálico”. O uso do mercúrio metálico na extração do
ouro é também regulamentado.
O Decreto 97.507/89 proíbe o uso
de mercúrio na atividade de extração de ouro, “exceto em atividades licenciadas pelo órgão ambiental competente”. Por
outro lado, a obrigatoriedade de recuperação das áreas degradadas pela
atividade garimpeira é igualmente regulamentada pelo Decreto 97.632/89.
As dragas,
instaladas em flutuantes, estendem suas lanças de sucção ([1]),
acionadas por bombas de 5 a 12 polegadas, que reviram o leito arenoso e
despejam o cascalho, lodo e areia juntamente com milhares de litros de água em
uma calha. O material passa, então, por uma calha concentradora ([2]) que
elimina a lama e a água, o restante é misturado ao mercúrio (Hg) que tem a
propriedade de unir-se a outros metais produzindo uma amálgama. Posteriormente,
para separar o ouro do mercúrio, usa-se o processo conhecido como “queima do amálgama”, onde a liga
metálica é submetida a altas temperaturas, fazendo o mercúrio voltar ao estado
líquido, separando-o do ouro. O preço do mercúrio nos garimpos, embora atinja
cinco vezes o preço internacional, é um reagente considerado relativamente
barato tendo em vista que um quilo de Hg pode ser adquirido com apenas um grama
de ouro.
Garimpo nos
Reservatórios das Hidrelétricas
Em 2008, foi liberada atividade garimpeira no
Rio Madeira em duas áreas determinadas pelo Departamento Nacional de Produção
Mineral (DNPM) e Secretaria de Estado de Meio Ambiente, RO.
A primeira ficava a uns 20 quilômetros a
montante da Cachoeira do Teotônio e se estendia até as proximidades do Rio
Jaci, e a outra desde uns 15 quilômetros a montante da Cachoeira do Jirau até a
Cachoeira do Paredão.
Na época, mais de 1.700 requerimentos foram
protocolados no DNPM, mas apenas um garimpeiro e duas cooperativas apresentaram
licenças ambientais e receberam as 28 permissões para extrair ouro na região.
Cerca de duas mil pessoas, 250 pequenas balsas e 70 dragas trabalharam nas duas
áreas liberadas antes da inundação dos reservatórios de Santo Antônio e Jirau.
Licenciamento
do IPAAM
A garimpagem do ouro ao longo do Rio Madeira
foi autorizada pelo DNPM após licenciamento do IPAAM. A decisão foi tomada
apesar de o Rio ser uma Hidrovia Federal e esta atividade ocorrer, também, na
Floresta Nacional de Humaitá e nas suas cercanias.
A legalização teve participação da Secretaria
Estadual de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiental do Amazonas (SDS), que
elaborou o “Projeto de Extrativismo
Mineral e Familiar do Rio Madeira”, incentivando a criação de uma
Cooperativa e facilitando a compra de equipamentos ‒ cadinhos ou retortas ([3]) ‒ que
deveriam ser usados para reduzir a poluição com mercúrio.
Segundo relatório do IBAMA, o projeto do
Governo Estadual não considerou a proibição de o garimpo ser executado nas
margens ou barrancos de Rios nem limitou o número de bombas de sucção ou de balsas
por área. O documento afirma, ainda, que o mercúrio continua a ser usado
indiscriminadamente, apesar dos equipamentos disponibilizados pelo Governo
Estadual e que o destino dos rejeitos deste metal não foi estabelecido no
projeto. Os garimpeiros, segundo o documento, não foram orientados,
devidamente, para adquirir os cadinhos (retortas), somente de comerciantes
cadastrados pelo IBAMA, como, também, não foram devidamente instruídos sobre a
atividade na FLONA Humaitá e no seu entorno.
Podemos afirmar, contrariando a preocupação
do IBAMA que, a jusante de Porto Velho, não existe nenhum tipo de garimpagem
sendo executado nas margens ou barrancos do Rio Madeira. Outro ponto
importante, que devemos ressaltar, é o que se refere à violência que,
normalmente, impera, nas regiões de garimpo. Como a maioria das dragas é
operada por membros das Comunidades, que se conhecem e não raras vezes unidos
por laços de família, o aspecto da violência foi praticamente anulado.
No Eldorado do Juma (Nova Aripuanã), o
Governo do Estado do Amazonas, atropelando a Constituição Federal, pretende
executar um processo semelhante ao do Rio Madeira. O ouro do Juma, além de se
encontrar no subsolo, propriedade do Governo Federal, está situado em um
Assentamento do INCRA, cabendo, portanto, a um Órgão Federal, no caso o IBAMA,
o processo de licenciamento ambiental.
Contaminação
por Mercúrio
São agressões ao sistema
nervoso, comprometimento da visão, locomoção, surgimento de anomalias.
(Biólogo Vanderley Bastos)
O garimpo, além do impacto social relevante,
provoca um prejuízo ambiental importante. As margens do Rio são destruídas, o
material dragado resulta no assoreamento do leito e o mercúrio, altamente
tóxico, afeta a cadeia alimentar da região contaminando os peixes, principal base
alimentar da população ribeirinha. Mesmo na comercialização, longe dos
garimpos, o mercúrio continua fazendo vítimas. A decomposição térmica da
amálgama gera uma “esponja” de ouro
contendo 20 g de Hg residual por quilo de ouro. Os compradores de ouro, nas
povoações, fundem o ouro a ser comprado à vista dos garimpeiros para eliminar
as impurezas minerais associadas. O processo desprende o mercúrio residual que
contamina a atmosfera do ambiente de trabalho e as imediações do
estabelecimento comercial, contaminando as pessoas que vivem no entorno.
Pesquisadores da Universidade Federal de
Rondônia (UNIR), analisaram amostras de peixes, detritos e fios de cabelos dos
ribeirinhos. Os exames mostraram que o nível de contaminação por mercúrio é
três vezes maior que o permitido pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O
Hospital de Base de Porto Velho já registrou dezenas de casos de crianças
anencéfalas (sem cérebro). A maioria dessas crianças recém-nascidas, com
deformidades, é de áreas próximas aos garimpos.
O mercúrio pode contaminar o ser humano de
duas maneiras: ocupacional e ambiental. A ocupacional está ligada ao ambiente
de trabalho, como mineração e indústrias. A contaminação acontece pelas vias
respiratórias, atingindo o pulmão e o trato-respiratório. A inalação dos
vapores de mercúrio acarreta fraqueza, fadiga, anorexia, perda de peso e
perturbações gastrointestinais. A contaminação ambiental é provocada pela dieta
alimentar, usualmente através da ingestão de peixes, entrando diretamente na
corrente sanguínea, afetando o sistema nervoso central. A ingestão de compostos
mercuriais provoca úlcera gastrointestinal e necrose tubular aguda. O mercúrio
vai progressivamente se depositando nos tecidos, causando lesões graves nos
rins, fígado, aparelho digestivo e sistema nervoso central. Um processo de
conscientização e fiscalização rígida é extremamente necessário. No processo de
recuperação do ouro, não devem ser lançados resíduos de mercúrio no solo e no
leito dos Rios e a queima do amálgama deve ser executada em retortas, evitando
que o vapor de mercúrio contamine a atmosfera.
Doença de
Minamata
Fonte: Marcello M. da Veiga e Jennifer J. Hinton ‒ Universidade de
British Columbia, Canadá e Alberto Rogério B. Silva ‒ ARBS Consultoria
Belém-Pará.
A “Doença de Minamata” foi pela
primeira vez detectada em 1953, mas somente em 1959, cientistas da Universidade
de Kumamoto atribuíram os sintomas ao metilmercúrio consumido através de peixes
e de moluscos. De 1932 a 1968, a companhia Chisso produziu acetaldeído,
utilizando óxido de mercúrio como catalisador.
O metilmercúrio era formado na reação e descarregado [cerca de 400
toneladas] com os efluentes na Baía de Minamata. Moradores de Minamata e
vizinhanças, que consumiam extensivamente peixes e frutos do Mar, sofreram as
piores consequências desta irresponsabilidade industrial. Até 1997, 10.353
pessoas, das quais 1.246 faleceram, foram certificadas pelo Governo japonês
como vítimas da “doença de Minamata”.
Sintomas da doença de Minamata nunca foram comprovados na Amazônia, mas
constatação de efeitos neurológicos em pessoas que se alimentam frequentemente
de peixe com médios a altos níveis de metilmercúrio têm sido reportadas. O
metilmercúrio é excretado lentamente pelas fezes [de 1 a 4% por dia] e uma pequena
parte pelo cabelo. Normalmente, o nível de metilmercúrio no cabelo é 300 vezes
mais alto do que a concentração no sangue. [...]
Teores de Hg em cabelo inferiores a 5 e 10 ppm são aceitáveis para não
impor nenhum risco ao feto (em caso de grávidas) e ao adulto respectivamente.
Infelizmente teores de até 84 ppm Hg foram analisados em cabelos de mães da
região garimpeira do Rio Madeira.
Produção
As Balsas de Grande Porte trabalham durante
todo o ano a uma profundidade de até 45 metros produzindo, mensalmente, uma
média de 2 kg de ouro enquanto as Balsas de Pequeno Porte (chamadas na região
de Chupadeiras) trabalham, normalmente, no período de estiagem, em torno de
seis meses por ano, a uma profundidade de, no máximo, 10 metros e produzem
mensalmente uma média de 350 gr de ouro.
Muitos Sonhos
Desfeitos, Poucos Sonhos Realizados
Milhares de pessoas, inclusive de outros
Estados, vieram em busca do Eldorado no Rio Madeira. A maioria sucumbiu ao
trabalho difícil, o ambiente hostil ou não conseguiu se adaptar às leis
selvagens do garimpo, abandonando a atividade logo no início. Poucos, mas muito
poucos, dos que resistiram, conseguiram juntar ouro suficiente para mudar de
vida.
Futuro do
Garimpo do Rio Madeira
Fonte: Marcello M. da Veiga e Jennifer J. Hinton - Universidade de
British Columbia, Canadá e Alberto Rogério B. Silva - ARBS Consultoria
Belém-Pará.
A atividade garimpeira no Rio
Madeira e afluentes está com os dias contados; ano a ano, a produção diminuiu e
é inevitável que a lavra artesanal, com o passar dos anos, venha a ser
substituída pela industrial como afirmam, no seu excelente artigo, os autores
de “O Garimpo de Ouro na Amazônia:
Aspectos Tecnológicos, Ambientais e Sociais”.
A tendência de todos os garimpos
de ouro é semelhante no mundo inteiro, ou seja, a transformação da atividade
artesanal em industrial. À medida que o ouro superficial e de fácil extração
for se exaurindo, o garimpeiro tenta a sorte extraindo ouro primário. Sem o
domínio técnico, o garimpeiro vê seus investimentos sendo dragados pelos altos
custos operacionais. Quando os garimpeiros possuem titulação mineraria, através
de concessão [Alvará de Pesquisa], ou permissão [Permissão de Lavra
Garimpeira], o passo natural é vender ou se associar com empresas de mineração
que possuam competência técnica.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Lança de Sucção: tubulação com sistema de cabeças cortantes que
penetram as rochas duras no fundo dos Rios. Algumas lanças são manuseadas por
mergulhadores que permanecem por mais de 4 horas submersos. A baixa
visibilidade das águas contribui para a incidência de acidentes fatais casuais
ou provocados por garimpeiros rivais.
[2] Calha Concentradora: nessas calhas acarpetadas, a recuperação do
ouro, normalmente, é inferior a 50%. A amalgamação dos concentrados é feita
através de misturadores de alta velocidade, bastante ineficientes, que permitem
que as partículas finas de mercúrio sejam despejadas nos Rios juntamente com os
rejeitos de amálgama. O mercúrio vai, então, formando os chamados “hot spots” (pontos quentes), isto é,
pontos com alta concentração do poluente. O mercúrio metálico inicia,
lentamente, seu processo de oxidação, aumentando sua solubilidade e tornando-se
um poluente da biota aquática.
[3] Cadinhos ou Retortas: o cadinho, ou retorta, é constituído por um
compartimento onde o amálgama é aquecido por uma tocha ou um leito de carvão
incandescente e um tubo condensador resfriado a água. O uso deste recurso
permite que 95% do mercúrio das amálgamas de ouro possa ser condensado e
novamente usado.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H