Quarta-feira, 13 de janeiro de 2021 - 06h07
Bagé, 13.01.2021
Foz do Breu, AC/ Manaus, AM ‒ Parte V
Descendo o Juruá ‒ V
A inconstância tumultuária
do Rio retrata-se ademais nas suas curvas infindáveis, desesperadoramente
enleadas, recordando o roteiro indeciso de um caminhante perdido, a esmar
horizontes, volvendo-se a todos os rumos ou arrojando-se à ventura em
repentinos atalhos. [...] ou vai, noutros pontos, em “furos” inopinados, afluir
nos seus grandes afluentes, tornando-se ilogicamente tributário dos próprios
tributários: sempre desordenado, e revolto, e vacilante, destruindo e
construindo, reconstruindo e devastando, apagando numa hora o que erigiu em
decênios ‒ com a ânsia, com a tortura, com o exaspero de monstruoso artista
incontentável a retocar, a refazer e a recomeçar perpetuamente um quadro
indefinido...
(CUNHA, 2000)
A
Expedição General Bellarmino Mendonça tinha a intenção de percorrer os mais de
2.975 km de extensão do Médio e o Baixo-Juruá, desde a confluência com o Rio
Breu (09°24’45,1” S / 72°42’59,7” O) até sua Foz no Solimões (02°37’53,1” S /
65°45’17,0” O), além de percorrer 100 km do curso de alguns de seus principais
tributários – Tejo, Amônea, Juruá-mirim, Valparaíso, Paraná da Viúva, Moa,
Riozinho da Liberdade, Gregório, Taruacá e Mineruazinho. Seguiremos a rota da
Comissão Mista Brasileiro-peruviana de Reconhecimento do Rio Juruá, comandada
pelo então Coronel Bellarmino Mendonça, em 1905, que fez o reconhecimento
hidrográfico detalhado desde a sua Foz no Solimões até a Foz do Breu e daí para
cima um levantamento expedito do Alto-Juruá. Na época, a Comissão, na sua “Memória Descritiva”, dividiu o curso do
Rio de acordo com suas condições de navegabilidade:
Memória Descritiva
Rio Juruá, seu curso, sua divisão
A zona percorrida pela Comissão Mista Brasileiro-Peruana de
reconhecimento do Rio Juruá ou “Hyuruá”,
vai da Foz às cabeceiras desse Rio entre as Latitudes extremas do 02°37’ e
10°09’ Sul e as Longitudes de 65°45’ e 73°15’ Oeste. O seu curso total mede
aproximadamente 1.773 milhas marítimas ou 3.283 quilômetros.
Pode ser dividido na razão decrescente das aptidões que oferece à
navegabilidade em Baixo, Médio e Alto-Juruá. O Baixo-Juruá compreende o trecho
da Foz à confluência do Tarauacá e mede cerca de 917 milhas ou 1.697,5
quilômetros. O Médio-Juruá vai dessa ([1])
à confluência do Breu com 690 milhas ou cerca de 1.277 quilômetros. O
Alto-Juruá estende-se do encontro do Breu à nascente principal no Cerro das Mercês
em pouco mais de 166 milhas ou 308 quilômetros aproximadamente.
O Juruá, afluente da margem direita do Rio Amazonas, com cerca de 3.283
km de extensão desde sua nascente peruana, no Cerro das Mercês, a 453 metros de
Altitude, é considerado o mais sinuoso dos Rios da Amazônia e do Planeta. O
Vale do Juruá engloba quatro Municípios acreanos [Marechal Thaumaturgo, Porto
Walter, Rodrigues Alves e Cruzeiro do Sul]; e seis amazonenses [Guajará,
Ipixuna, Eirunepé, Itamarati, Carauari, Juruá] cuja história remonta às
numerosas nações indígenas de origem Pano e Aruaque.
A navegação é realizada regularmente desde sua Foz, no Solimões, até
Cruzeiro do Sul, AC, numa extensão de 2.464 km. Da Foz até Eirunepé, AM [1.650
km], as profundidades são superiores a 2,10 metros. Entre Eirunepé e Cruzeiro
do Sul pode-se contar ainda dessa profundidade, no período de águas médias e
altas [dezembro a maio], e entre 2,1 m e 1,0 m, nos meses de águas baixas
[setembro a novembro]. Na época de águas altas, a navegação é feita até
Thaumaturgo de Azevedo, 330 km a montante de Cruzeiro do Sul, e, eventualmente,
até a fronteira com o Peru. O apoio logístico ao longo da hidrovia é deficiente
e a navegação noturna não é recomendada.
O tempo de viagem, da Foz até Cruzeiro do Sul, supera 14 dias. As
embarcações que efetuam o abastecimento de Cruzeiro do Sul são balsas de 1.000
toneladas, na época de cheia, e 300 toneladas, na vazante.
Não há instalações portuárias ([2])
ao longo da hidrovia. A navegação comercial é feita pelos “comboios” que transportam combustíveis, chatas e “regatões”, que atendem aos ribeirinhos. O
Rio Juruá é fértil em “sacados” ([3])
e tem declividade inferior a 5 cm/km.
As cidades mais importantes no curso da via são: Carauari, KM 610 [21.000
habitantes]; Eirunepé, KM 1.650 [26.000]; Cruzeiro do Sul, KM 2.464 [57.000].
Um “Rio Desordenado, e Revolto, e Vacilante ...”
O
texto que encabeça este tópico se refere ao Rio-Mar e não ao Juruá, a
descrição, porém, lhe serve mais que perfeitamente. Com toda a tecnologia,
fotografias aéreas e tantos outros recursos técnicos de que hoje dispomos,
ninguém jamais foi capaz de descrever com tanta propriedade os Rios da
depressão amazônica como o imortal Euclides da Cunha. O Juruá com suas infindas
curvas, seus incontáveis “sacados”
permite que, “engarupados na anca da
história”, recuemos ao passado e acompanhemos a sua eterna, incansável e
permanente labuta de construir e reconstruir seu curso. Aqui ele retifica uma
longa curva, rompendo a parte mais estreita do laço e buscando um atalho
transforma a grande alça em um belo Lago em forma de ferradura; mais adiante,
insatisfeito e assoreado, ele volta a invadir o “Sacado” há tanto tempo abandonado trazendo-o, novamente, para seu
leito principal. É a “inconstância tumultuária”
a que se refere o genial escritor.
Relatos Pretéritos
Os
primeiros expedicionários do século XVII, que desbravaram as águas do Rio-Mar,
fizeram apenas breves relatos das embocaduras dos grandes afluentes que se
lançam no Amazonas sem se aventurar a percorrê-los. Historiadores e geógrafos,
dos séculos XIX e mesmo do início do século XX, omitiram o Rio Juruá da relação
dos principais afluentes da Margem Meridional do Solimões, considerando-o um
tributário menor. Antigos relatos apresentam um Juruá prenhe de mistérios e
lendas, habitado por tribos de indígenas anões e outras cujos indivíduos
possuíam um apêndice caudal.
Os
comentários sobre seus aspectos geográficos eram totalmente incipientes e
amiudados, alguns autores, ao compará-lo com o Jutaí, consideram-no inferior a
este em extensão e vazão, outros lhe atribuíam um comprimento de apenas 2.000
km (61% do total). Desfolhemos, ainda que sintética e brevemente, as amareladas
páginas da história deste Rio que há séculos vem povoando o imaginário dos povos.
Cristóbal de Acuña (1639)
LV
– O Fim da Província dos Água...
[...] Entra no Amazonas a cinco graus ([4])
de altura a 24 léguas do último povoado dos Omáguas. Os nativos chamam-no de
Juruá, e suas margens estão muito povoadas. Entrando-se por este Rio acima,
pelo lado da mão direita, a tribo que aí habita não é outra senão a que eu já
disse que habitava as ribeiras do Jutaí que, estendendo-se até suas margens,
fica como que isolada entre ambos os Rios. (ACUÑA)
Bernardo P. de Berredo e Castro (1749)
723. Com a viagem deste dia
saiu Pedro Teixeira das Povoações últimas dos índios Cambebas; e 38 léguas mais
abaixo do Jutaí, pela mesma banda, na altura de cinco graus, chegou à Boca do
Rio Juruá, habitado também de inumerável paganismo. (CASTRO, 1905)
José Monteiro Noronha (1768)
125. [...] O que dizem dos da
nação Ugina ou Coatatapiiya, é mais notável, porque afirmam terem todos caudas
e que procedem de Índias, que se fecundaram com os monos chamados Coatá.
[...] O terceiro, por me afirmar o Reverendo Padre e Frei José de
Santa Theresa Ribeiro, religioso Carmelita, e vigário atual do Lugar de Castro
de Avelãs, que vira um índio descido do Rio Japurá, que tinha cauda, cuja
história lhe pedi atestasse com uma certidão jurada, que passou e conservo em
meu poder, do seguinte teor:
Frei José de Santa
Thereza, da Ordem de Nossa Senhora do Monte do Carmo da antiga observância etc.
Certifico e juro, “In verbo Sacerdotis”, e aos Santos
Evangelhos, que, sendo eu Missionário na antiga Aldeia de Parauari, que depois
se mudou para o Lugar que hoje é de Nogueira, chegou à dita Aldeia, no ano de
1751, ou 1752, um homem chamado Manoel da Silva, natural de Pernambuco ou da
Bahia, vindo do Rio Japurá com alguns índios resgatados, entre os quais trazia
um índio bruto, infiel, de idade de trinta anos, pouco mais, ou menos, do qual
me certificou, o nomeado Manoel da Silva, que tinha rabo. E por eu não dar
crédito a tão extraordinária novidade, mandou chamar o índio e o fez despir com
o pretexto de tirar algumas tartarugas de um curral onde eu as tinha, para deste
modo poder eu examinar a sua verdade. E com efeito vi, sem poder padecer engano
algum, que o sobredito índio tinha um rabo da grossura de um dedo polegar, e do
comprimento de meio palmo, coberto de couro liso, sem cabelos. E me afirmou o
mesmo Manoel da Silva, que o índio lhe dissera que todo o mês cortava o rabo
para não ser muito comprido, pois crescia bastante. E só não examinei a Nação
do índio nem a parte certa onde habitava, nem se também tinham rabos os mais
índios da sua nação. Porém há quatro anos, pouco mais ou menos, chegou-me a
notícia de que no Rio Juruá há uma nação de índios com rabos. E por tudo ser
verdade, passei esta de minha letra e sinal.
– Lugar de Castro de
Avelãs 15.10.1768
– Frei José de Santa
Thereza Ribeiro. (NORONHA)
Manuel Aires de Cazal (1817)
Que o Rio Juruá com 300 toesas ([5])
de largura na Foz, nem o Jutaí ainda mais
espaçoso, nem também os mencionados Tefé e Purus, maior que todos, não
descem das Serras do Peru, onde disseram que eles principiavam, prova-se com a
existência da comunicação do Rio Ucaiali com o Mamoré pelo Rio da Exaltação, e
Lago Rogagualo; mas se eles saem deste Lago, [...] ou se tem as suas origens
mais ao Setentrião ([6]),
não podemos asseverar. (CAZAL)
Paul Marcoy (1847)
[...] O Juruá, cuja largura na Foz é de cerca de 1.702 m, se reduz a 900
m depois de 12 léguas. Nesse ponto ele recebe à esquerda [estamos subindo e não
descendo o Rio] as águas do pequeno Rio Andirá, que vem das proximidades do Rio
Teffé e com este se comunica, mas só na época da enchente. O curso do Juruá é
sinuoso, sua água é branca e o seu leito é recortado por grandes bancos de
areia. Tem somente duas Ilhas: uma fica a cinco léguas da Foz, tem sete léguas
de comprimento e é chamada Ilha Grande; a outra, distante 14 léguas da Foz, tem
duas léguas de circunferência é a chamada Tucumã. [...] (MARCOY)
Bibliografia
ACUÑA, Christóbal de. Nuevo Descubrimiento del gran Rio de las
Amazonas – Espanha – Madrid – Ed. García, 1891.
CAZAL, Manuel Aires de. Corografia Brasílica – Brasil – São
Paulo, SP – Livraria Itatiaia Editora Ltdª – Editora da Universidade de São
Paulo, 1976.
CASTRO, Bernardo Pereira Berredo e. Annaes Históricos de Berredo
– Itália – Florença – Typographia Barbera, 1905.
MARCOY, Paul. Viagem Pelo Rio Amazonas – Brasil – Manaus, AM –
Editora da Universidade do Amazonas, 2006.
NORONHA, José Monteiro de. Roteiro da Viagem da Cidade do Pará até́
as Últimas Colônias do Sertão da Província (1768) – Brasil – São Paulo, SP
– Livraria Itatiaia Editora Ltdª – Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Dessa: confluência do Tarauacá.
[2] Instalações Portuárias: esta realidade está sendo alterada com a
construção de Portos em Eirunepé, Itamarati, Carauari e projetos para os demais
municípios da calha do Juruá.
[3] Sacados: Lagos marginais, em forma de ferradura, onde os Rios
represam o excedente das suas grandes cheias.
[4] Cinco graus: 02°37’52,2” S.
[5] Trezentas toesas: 594 m.
[6] Setentrião: Norte.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H