Terça-feira, 19 de janeiro de 2021 - 06h05
Bagé, 19.01.2021
Foz do Breu, AC/ Manaus, AM ‒ Parte IX
Pioneiros Brasileiros IV
[...] Os brasileiros de outras paragens, que para ali foram, tornaram-se
meros seguidores e obedientes dos costumes, das normas de viver e do método de
trabalho introduzido pelo cearense das primeiras migrações. E, por muito tempo,
o Ceará foi o fornecedor do braço e a inteligência a toda aquela região.
Porque a Amazônia, especialmente o Acre, exercia uma influência dominadora, uma
atração irresistível no espírito do cearense sertanejo. Raros os que por ali
não passaram, não conheceram as agruras daquela existência acabrunhante, não
penetraram, desvendando-os, os mistérios da floresta, a tortuosidade das
estradas, o labirinto hidrográfico de águas barrentas.
E, apenas o Sol começava a causticar a terra cearense, enchiam-se as
proas dos navios e milhares de indivíduos, abandonando o lar e abandonando a
prole, buscavam o caminho da terra acreana, em busca da vida que a terra natal
lhes negava impiedosamente. Efeito exclusivo de uma necessidade indeclinável da
vida tornada impossível na terra natal; sem o método das colonizações oficiais,
sem o amparo assegurador da permanência no solo pela propriedade da terra e
pela presença da família; sem a assistência tutelar dos poderes públicos,
garantindo-lhe a saúde, defendendo-lhe o organismo pelo saneamento da região;
estimulado unicamente pelas notícias romanescas dos bem-sucedidos e pelas
aperturas da existência no Nordeste; protegido exclusivamente pelo comércio, no
interesse de lucros imediatos, o povoamento do solo acreano, até bem pouco
tempo, caracterizou-se pelo seu aspecto de nomadismo. O homem, assim lançado à
terra, não se lhe adaptava, não a cultivava, nela não se firmava,
principalmente porque lhe faltava a segurança da propriedade estabelecida em
leis garantidoras e porque, em geral, não se acercava da família. Faltando-lhe
esses liames ([1]),
permanecia na região o tempo necessário à volta das chuvas na terra natal, para
onde regressava às primeiras notícias do bom tempo cearense. Daí o aspecto
desolador de transitoriedade que ficou na habitação acreana – pelos seringais
adentro, choças improvisadas para uma existência efêmera com a floresta brutal
em redor, impedindo a dilatação do horizonte visual, enquanto a terra
ferocíssima ficava improdutiva e o organismo do seringueiro se debilitava no
ambiente úmido da mata, ferido pelo impaludismo e lentamente envenenado pelas
conservas que, importadas copiosamente, lhe serviam de alimento diário.
Milhares ficaram sepultados nos barrancos, abatidos pela obra de seleção que a natureza, inclemente e sábia, realizava.
Milhares triunfaram, regressando aos lares nativos, com o mealheiro repleto,
pequenas fortunas que muitos loucamente dissipavam em orgias fantásticas e
jogatinas desenfreadas, em Manaus e Belém, volvendo em dois ou três dias de
gozo atordoante à pobreza primitiva. Milhares, porém, se fixaram na região a
que, pouco a pouco, se tinham afeiçoado, tornando-se donos de seringais vastos,
tão grandes que nem eles mesmos lhes conheciam os limites, conquistados palmo a
palmo ao índio e ao impaludismo, e cuja posse o rifle, em última análise,
assegurava, marcando-a indelével com o sangue do competidor, por uma bala
traiçoeira ou por uma agressão peito a peito.
É essa em toda parte a história do povoamento das regiões ricas e
desertas. Sempre foi assim. Entre o Nordeste e o Acre estabeleceu-se uma forte
corrente de interesses econômicos e sociais. O Juruá, o Purus eram os caminhos
principais desses vultosos interesses. Ao começo das chuvas na região acreana,
determinando a suspensão da indústria extrativa, os gaiolas recambiavam ao
Nordeste os seringueiros de saldo, para depois trazê-los, recrutados pelos proprietários
à faina dos seringais.
Porque, emparedado nas necessidades de sua indústria e nas contingências
esmagadoras do próprio meio, o proprietário, o patrão, vivia sempre na mais
penosa apertura da escassez do trabalhador, situação que ainda perdura,
desamparado que se acha das mais elementares medidas de proteção oficial, que
normalizem o regime do trabalho, garantam a produção, suavizem e mesmo
legalizem as relações comerciais, vinculem definitivamente o homem à terra,
extingam a rotina enervante aprendida do índio na extração do látex precioso,
na fabricação de borracha, no transporte e colocação do produto.
Todos os anos, pois, repetia-se a mesma cena apresentando os mesmos
vincos profundos e negros da desorganização econômica, como um estigma da
indústria acreana. Os proprietários iam ou mandavam emissários aos Estados do
Nordeste, ao recrutamento de trabalhadores, que lhes chegavam caríssimos,
muitos doentes, aos seringais, onerados por uma dívida que logo os escravizava.
Dessa precária situação do trabalhador à cadeia que o prendia ao Seringal – a
dívida contraída desde a saída da terra natal até a iniciação na labuta das
estradas. Quebrar os laços que o atavam à floresta, pelo pagamento da dívida,
e, não raro, pela fuga, era o ideal único do seringueiro. Por seu turno, o
patrão sofria a mesma pressão esmagadora. Prendia-o o débito extraordinário, de
cifra colossal, contraído, às vezes, à sua revelia, nas praças aviadoras de
Manaus e Belém. E, ao fim de cada safra, era para o aviador, que chegava com
seus navios abarrotados e as suas contas extorsivas, a produção integral dos
seringais, sem o desvio de um só quilo, porque a vesga justiça daquelas duas
Comarcas era sempre dura e inflexível nos seus arrestos asseguradores do
direito do mais forte...
Material e moralmente, a situação do proprietário não era melhor que a do
seringueiro. Patrão e freguês eram irresistivelmente arrastados no mesmo
círculo vicioso. Ambos eram vítimas das mesmas torturas morais, sob o arrocho
da dívida. À celebração do Tratado de Petrópolis, a situação, quanto às
condições do povoamento, já se havia modificado sensivelmente e a região
acreana contava muitas dezenas de milhares de habitantes. O nomadismo ainda se
caracterizava, mas infelizmente, incorporada a região ao patrimônio nacional e
submetido o território à jurisdição direta da União, por nada menos de quatro
delegados do Presidente da República, até bem pouco tempo, os poderes federais não cuidaram dos meios ao seu alcance, de fixar ao solo essa população e de trazer ao
seu convívio milhares de silvícolas, que
sempre viveram sem a mais rudimentar assistência oficial, apesar do
aparatoso aparelho que, certa vez, o devaneio dissipador de um Ministro
organizou e que ficou célebre pela proteção escandalosa que seus funcionários
dispensavam às... caboclas de Manaus... A fixação ao solo tem-se feito à
revelia oficial e por efeito da crise comercial da borracha. Desde que o
trabalho do seringueiro começou a não encontrar compensação convidativa, nos
seringais iniciou-se a cultura da terra, que se cobre aqui e ali, pouco a
pouco, de abundantes cereais e verdejantes pastagens.
A população vai-se tornando sedentária. Os seringais já não importam
gêneros agrícolas, porque os estão produzindo para o próprio consumo. Nos arredores
dos núcleos de população mais numerosa estendem-se exuberantemente, até morros
acima, os arrozais, desenvolvem-se os canaviais, frutificam, aos dois anos, os
cafeeiros. Formam-se fazendas pastoris. Os povoados são verdadeiros pomares. A
terra é boa e fértil e a gente trabalhadora. Um pouco de boa vontade oficial, e
o Acre seria celeiro inesgotável. A Bolívia não
ignorava a verdadeira situação do território, por isso mesmo o cobiçava. Desconhecia-o,
porém, o
Governo Brasileiro. Desconhecia-o, confessadamente, do ponto de vista de
suas condições materiais e sociais, ainda em 1904! Do conhecimento boliviano
das riquezas e possibilidades surpreendentes da região acreana, o interesse em
incorporá-la ao seu patrimônio.
Em 1899, produzia o território do Acre mais de 60% da borracha
amazonense, ou mais de 12.000 toneladas, trabalho exaustivo dos brasileiros que
por lá viviam, milhares deles definitivamente localizados em vastas
propriedades demarcadas e legalizadas pelo Estado do Amazonas. Ainda não fora
recenseada essa população. Não se sabia quantos eram os habitantes do
território sobre o qual a Bolívia, com absoluta indiferença do nosso Governo,
ia estender a sua soberania. Mas não é difícil calcular o número aproximado
dessa população. Para produzir 12.000 ton de borracha são necessários nada
menos de 40.000 homens, fazendo cada um, por safra, uma média de 300 kg. Não pensava nisso o Itamarati – que fossem
precisos 40.000 brasileiros para produzir nas florestas acreanas 12.000.000 de
quilos de borracha.
Nos seringais não viviam somente extratores de goma elástica; havia
indivíduos que se empregavam em misteres diferentes – nos labores agrícolas que
aqui e ali se iniciavam; no pastoreamento dos rebanhos que já se iam formando;
nos trabalhos da pesca e da caça; nos serviços domésticos; nos múltiplos
encargos comerciais; na gerência dos latifúndios e sua fiscalização etc.,
podendo ser avaliada essa população em 6.000 pessoas. Havia ainda a população
dos povoados que começavam a sua fase de organização; havia a população
feminina e a população infantil. Seriam, aproximadamente, 70.000 pessoas, na
quase totalidade brasileiras, que viviam na região.
O Governo Federal, portanto, não devia abandonar tão consideráveis
interesses, do ponto de vista econômico, para entregá-los, passivamente, sem
discuti-los, sem examinar a situação de fato que se criara, à Bolívia, e do
ponto de vista social, para que ela viesse, abruptamente, impor a sua soberania
a esses 70.000 brasileiros, para colher o fruto de um trabalho que não semeara.
(COSTA)
Bibliografia
COSTA, João Craveiro. A Conquista Ocidental do Deserto Ocidental
– Brasil – São Paulo, SP – Companhia Editora Nacional, 1940.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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