Segunda-feira, 26 de outubro de 2020 - 10h59
Bagé, 26.10.2020
Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte XLII
Real Forte do Príncipe da Beira - X
Abre-se num saguão de pouco mais ou menos 10 m de comprido, composto de
duas partes distintas, das quais a anterior é um quadrado perfeito de 4,5 m, e
a outra de 5,5 m de fundo sobre 4,38 m de largo. Nesta ficam, à esquerda, a
casa da guarda e xadrez, e à direita os calabouços, tudo abobadado, e estes
muito escuros, úmidos e faltos de ar. A casa da guarda é dividida em dois
compartimentos, ambos de 4,4 m de largura, mas o primeiro comprido de 8,2 m, e
o outro de 3,38 m. O calabouço que se abre em frente a esta sala tem 4 m de
fundo e de largura 4,4 m; o outro a este contíguo, com respiradouros para a
Praça d’armas, guarda a mesma largura, tendo 8,35 m de comprimento.
Na parede do primeiro desses calabouços, escreveu um moderno Tasso ([1])
sentidas endeixas ([2]), onde a nova Eleonora
pouco é lembrada, mas em compensação o triste poeta buscava enganar sua
desdita, escrevendo, nesses segredos da masmorra, louvores aos que o tinham
encarcerado; trabalho que é de supor baldado, pois sem dúvida o ficaram
ignorando, sendo mais provável que, se soubessem do escrito, teria sido raspado
e apagado, e o poeta punido por estar danificando as obras do Estado. Conquanto
supinamente toscos, mal medidos e mal rimados, gostei de, na tristeza desse
ergástulo ([3]), copiar as linhas que o
tempo deixou legíveis: e pouco se me dá que se considere perdido o tempo que
nisso gastei, e o que emprego em transcrevê-los aqui. As quatro paredes do
cárcere tinham sido completamente cobertas deles, divididos em estâncias
separadas por traços em quadrados; letras, traços e tudo, aberto na alvenaria à
ponta de um estilete qualquer.
Ei-los:
Desta
horrorosa prisão
De ti me
despeço brioso
Tendo
suportado gostoso
Por ti mui
dura aflição Firmina.
Embora me
persiga o fado
Querendo a
vida tirar
A Virgem me
há de ajudar,
Por ela
serei amparado,
Pois aqui
encarcerado
Estou bem
crente na sina
Que hei de
sempre te amar Firmina.
Agradecido e
obrigado
Às graças
que me tens feito,
Capitão Cunha, em meu peito
Teu nome
tenho gravado.
Nele será
conservado
Enquanto
vida eu tiver
E só depois
que morrer,
Calarei os
teus louvores
Que nem
mesmo... [...]
Se Mato
Grosso prendeu-me
O Forte me
cativou.
Aqui cativo
estou
De quem
tanto favoreceu-me.
Quando eu
for em liberdade
Agradecerei
a bondade
Com que alguns
bons senhores
Nesta minha
adversidade
E destino
desgraçado [...]
E mais um cento de quadrados com versos do mesmo jaez. Ninguém pode
orientar-me sobre quem seria o pobre versejador, nem mesmo quem fosse o Capitão Cunha, a quem tão agradecido se mostra,
talvez por conta de favores, ainda em desejos. Suponho que sua prisão
coincidirá com outra inscrição que aí também se lê, e a qual não é de somenos
interesse:
No dia 18 de setembro pelas 2 horas da tarde, tremeu a terra, 1832.
Mais tarde verifiquei que o Capitão Cunha devia ser José Francisco da
Cunha, Cmt do Forte até 1831, em que morreu, segundo se depreende destas
palavras do ofício do Presidente Antônio Correia da Costa ao Ministro do
Império José Lino Coutinho, dando conta de várias sedições e amofinações do
povo e tropa:
Não tardou muito tempo quando foi participado pelo Comandante-militar do
Forte do Príncipe a este governo, a sublevação da guarnição e povo do mesmo
Forte, contra o alferes adido ao Estado Maior do Exército Antônio José da Silva
Negrão, que para ali fora nomeado Comandante, a substituir aquele que
interinamente servia no lugar do finado Sargento-mor José Francisco da Cunha,
conforme participei a V. Ex.ª em ofício de 06.06.1831.
III
Ao sair do saguão, na Praça, uma escada, à esquerda, conduz à meia
cortina da frente, donde pode-se circular toda a Fortaleza pelas cortinas e
baluartes. Na Praça, paralelas às cortinas, há duas ruas de casas, compostas, a
mais próxima de seis edifícios que eram destinados a armazéns, oficinas e quartéis
da tropa, e a interna de outras tantas casas para oficiais, comandância, Capela
e enfermaria, estas três na face fronteira à da entrada do Forte.
No centro, há uma grande cisterna, com os escoadouros necessários para o
excesso de águas, cuja abertura de saída vê-se na barranca do Rio, como um
corredor quadrado, de dois palmos de face, fechado por uma grade de ferro.
Caídos por terra, junto às canhoneiras, existem ainda 13 canhões de ferro,
calibre 6, e um de 12. Nos depósitos e arrecadações, hoje completamente
derruídos, e que são os edifícios da segunda rua ao fundo da Praça, há alguns
falconetes ([4]), pedreiros ([5])
e pequeninos canhões de bronze, de 2 palmos de tamanho; e entre os destroços de
muita peça de palamenta ([6]),
inúmeras alcanzias, panelas de barro semelhando às granadas, cujo fim talvez
fosse arrojar aos assaltantes azeite fervendo, como nas antigas guerras.
Fora da Fortaleza houve, nos seus bons tempos de mocidade, um povoado, e
também chácaras e sítios. Em frente ao baluarte de NE. [Santo Antônio] tinha o
comando uma grande chácara, toda cercada de grossa e alta muralha, e dividida
em grandes canteiros orlados de cantaria, e dispostos simetricamente afetando a
forma de uma estrela. Está apenas a uns 200, ou pouco mais, metros do fosso, e
todavia, apesar de irmos com o Cmt do Forte, que já é prático desses sítios,
custamos a encontrá-la, tão alta, densa e cerrada é a mata que aí cresce e
encobre seus muros, ainda hoje em pé.
O que ainda mais revela a desídia, preguiça, descomunal indolência e
imprevisão do futuro de todos quantos têm, há longos anos, vivido nesse Forte,
que melhor local não poderiam encontrar para suas plantações, a não ser os
próprios baluartes e cortinas que converteram em roça, o que, entretanto,
ninguém poderia esperar.
Dos vegetais que acompanham o homem, ainda aí vimos todos os comuns
nessas paragens, beldroegas, caruru de sapo, tanchagem, labaça, etc., apesar de
decorrerem já talvez mais de cinco lustros do seu completo abandono. Das
árvores de fruto pelos antigos plantadas, apenas vimos bananeiras; não sendo
crível que de tantas outras que os antigos cultivaram, e que naturalmente
deviam ornar a chácara dos Governadores, não existam hoje árvores de laranjas,
limas, limões, atas, café, canas, etc., talvez que a mata oculte ainda os
destroços do pomar; no mais, o elemento selvagem, como de costume, matou e
destruiu as plantas da civilização.
IV
Concluiu-se o Forte em agosto de 1783. Seu primeiro Comandante foi o
Capitão de dragões da Companhia de Goiás, José de Mello de Souza Castro e
Vilhena, que se achava desterrado em Mato Grosso. A 31 daquele mês – foi
ocupá-lo com a guarnição do Forte da Conceição, cujas minas, só com algum
custo, podem ser descobertas hoje. O novo há de custar a derrocar-se, nas suas
obras principais, tão solidamente foi construído. Todas as suas dependências
internas e externas, casas, quartéis, depósitos, ponte, portas, estradas,
chácaras e mesmo o fosso, uns destruíram-se e os outros vão pouco a pouco, já
estando a maioria em ruína completa. Mas essas muralhas são tão fortes, tão bem
alinhadas, tão bem acabadas – tão – quase, perfeitas, que hão de passar os
séculos antes que se derruam; e ainda hoje, mantendo, pelo menos exteriormente,
toda a ideia da grandeza e poder que lhes imprimiu o seu autor, testificam a
consciência do trabalho e o esforço assinalado dos seus obreiros.
À perfeição da mão de obra junta-se a boa qualidade do material e, cousa
notável, o ferro, que tão facilmente se decompõe nos países quentes e úmidos,
que no Egito estraga-se em uma dezena de anos, que aqui na Corte, nas grades
expostas, vemo-lo em poucos anos completamente carcomido nas suas barras, corroídas
pela oxidação, aí, no Forte, conservam-se inalteráveis e tão puros como si
foram novos, apesar de um século de exposição, os gatos de ferro que prendem as
pedras das muralhas, e que ostentam nitidamente a cor azulada do ferro de
fresco forjado. Os edifícios internos, hoje em ruínas, foram também construídos
com a mesma consciência do trabalho, mas eram relativamente mais débeis e
necessitavam do zelo para conservarem-se: suas paredes são de pedra e cal, e o
arcabouço de tal ordem que poucas são as vigas que estejam prejudicadas.
Estragadas as ripas e os caibros, abatidas as telhas, apareceram as goteiras, e
o tempo começou sem óbices o seu processo de destruição.
São as muralhas da frente as que guardam a mais esplêndida integridade: o
mesmo já não se dá com as outras, que vão cedendo à força da vegetação que aí
se desenvolve por entre as fendas do muro, ou sobre os parapeitos. Enormes
embaúbas e gameleiras já assoberbavam seus troncos, empurrando com as raízes os
blocos da pedra quando visitamos o Forte. Os terraplenas dos baluartes, as
cortinas e a Praça seriam mata virgem se a guarnição, temerosa das onças e dos
selvagens, não preferisse fazer neles os seus roçados de mandioca e milho,
feijões [...].
Em todos os quartéis e casas, vive grande, imenso número de morcegos, a
praga dos povoados velhos da Província; mas, assim mesmo, não em tanta
quantidade como noutros lugares, e como aí mesmo em outros tempos, em que,
segundo diz Pizarro:
Principiando a sair uma hora antes da entrada do Sol, o encobriam
formando uma densa nuvem pelo esmo dilatado da sua carreira, até os campos de
Espanha, donde voltavam de madrugada.
Nossa presença no Forte trouxe pela primeira vez em, talvez, dezenas de
anos, a vantagem de limpar-se suas muralhas, cortando-se e buscando-se extirpar
as árvores que aí cresciam, e também derrubando a mataria externa que cobria o
fosso e o seu perímetro. Infelizmente pequeno foi o tempo da nossa demora para
vê-lo completamente limpo: todavia as muralhas ficaram escorreitas ([7]),
e o Forte livre, em muitas braças, da floresta que o afogava. À instâncias
nossas, começou o Comandante o plantio de laranjeiras, então apenas três, na
ladeira, e agora aumentadas de umas vinte, dispostas em dois renques desde o
Porto até o fosso; todos arbustos já de metro e mais, e que, ao retirarmo-nos
do Forte, deixamos vivos e pegados.
No Forte mora somente a guarnição composta atualmente de 14 soldados e um
Sargento. O Comandante reside numa casinha, na barranca, a uns 10 m acima do
Porto, aí tem também uma pequena horta. Em frente à casa há um pequeno
destorcedor de cana, e um aparelho tosco para o preparo da farinha. Ao
contemplar-se essa Fortificação que tem tanto de grandiosa como de estólida ([8]),
não se sabe o que mais admirar, se o mérito da obra, o dinheiro e tempo gastos,
as fadigas e misérias dos trabalhadores, isto é, a soma de esforços nessa
construção empregados; se a fantasia do Capitão-General em querer ligar o seu
nome a uma obra de guerra no gênero das de Macapá e Cabedelo, talvez cioso das
glórias e recompensas que obtiveram os construtores destas. Não havendo pedra
calcárias no sítio, foi a necessária para as obras conduzida das margens do
Paraguai ao registro do Jauru, daí por terra à Vila Bela e Guaporé abaixo até o
Forte; e essa obra monumental ficou concluída dentro de sete anos, tempo
diminutíssimo, se atendermos às dificuldades que deveriam acompanhar uma
construção tão longínqua e tão balda de recursos próximos: o que é um padrão do
esforço e da tenacidade de Luiz de Albuquerque.
Para bem se o avaliar, basta consignar-se que, anos depois, em 1825, 4
canhões de bronze, de calibre 24’, remetidos do Pará, pelo Tapajós, com destino
a ele, só conseguiram chegar a Mato Grosso em 1830. Mas já o Forte tinha
perdido sua importância; e o Presidente deliberou fazê-los de novo remontar o
Alto Guaporé até a estrada de Cuiabá, com direção a essa Capital; e ali
houveram por uns vinte anos, até que, em 1851, o Barão de Melgaço as fez descer
para o Forte de Coimbra. (FONSECA) (Continua...)
Bibliografia
FONSECA, João Severiano da. Viagem
ao Redor do Brasil (1875 – 1878) – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Volume 2 –
Typografia de Pinheiro & Ciª, 1881.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas,
Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Tasso: o autor se refere ao amor impossível do poeta Torquato
Tasso pela Princesa Eleonora na Corte de Ferrara.
[2] Endeixas: poesias fúnebres.
[3] Ergástulo: cárcere.
[4] Falconetes: pequenas peças de artilharia.
[5] Pedreiros: morteiro antigo que arremessava pedras.
[6] Palamenta: aparelhos e petrechos de uma boca de fogo.
[7] Escorreitas: sem danos.
[8] Estólida: absurda.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H