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Hiram Reis e Silva

A Terceira Margem – Parte LXXVIII - No Interior do Forte


A Terceira Margem – Parte LXXVIII -  No Interior do Forte - Gente de Opinião

Bagé, 02.11.2020

 

Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte XLVII

 

Real Forte do Príncipe da Beira - XV

 

No Interior do Forte

 

Subindo a escada provisória, abrimos o pesado portão de madeira e penetramos no Forte. Achamo-nos na entrada de abóbada cilíndrica, alta. A esquerda há outra porta que leva a diversos cômodos, o último dos quais com grossas grades de ferro nas janelas. Devia ser uma prisão. À direita, outra porta dá para outro cômodo. Continuando, abrimos um grande portão de madeira, com grandes gonzos de ferro. Passando-o, encontramo-nos no pátio interno do Forte. E surgindo da vegetação alta que ali cresceu, elevam-se paredes mostrando-nos as molduras, em pedra trabalhada, das suas janelas e portas. Nada mais existe das estruturas de madeira dos telhados. São as paredes dos dezesseis alojamentos construídas de pedras e argamassa de calcário.

Retiradas as telhas e as estruturas de madeira, a vegetação cresceu nas juntas de argamassa das paredes, trincou-as, e a água das chuvas, penetrando lentamente, continuou o trabalho de desagregação dos materiais. E assim foram caindo as partes superiores das paredes. Muitos dos alojamentos hoje nada mais são do que escombros.

 

A Construção do Forte

 

Em meio ao silêncio ambiente, observando as paredes que surgem da vegetação, vêm-nos à memória os dias da construção do Forte do Príncipe da Beira, há quase dois séculos.

 

As obras, iniciadas em 1776, com a presença do Governador de Mato Grosso, o Capitão-General Cáceres, nunca foram interrompidas. Dois enge­nheiros sobressaíram ali: Domenico Sambocetti e Ricardo Franco de Almeida Serra. Este último foi o braço direito de Cáceres durante todo o tempo da construção, que durou seis anos. Nunca menos de 200 homens ali trabalharam. Eram Engenheiros, Arquitetos, Artífices, Pedreiros, Carpinteiros, trabalhadores de todas as categorias, de Portugal e do Brasil, e que ali executaram uma obra perfeitíssima. Os trabalhos de arte executados em pedra são admiráveis. Não há uma aresta de um bloco que seja, destoando da harmonia geral. Não estamos diante de uma construção notável pelas suas extraordinárias proporções. Estamos diante de uma obra de arte. Notamos neste Forte o mesmo cuidado, a mesma perfeição que os artesãos dedicavam à construção de palácios e catedrais. Esta obra foi feita para durar uma eternidade.

 

Parece-nos um conto de fadas esta Fortaleza construída com tanto carinho e perfeição, por Engenheiros, Arquitetos e Artesãos, numa clareira aberta em plena floresta equatorial amazônica. Estamos agora adivinhando, naqueles anos de construção, aqueles homens entalhando na pedra bruta, medindo exatamente, dispondo peças com perfeição geométrica, enquanto junto deles rondavam índios ferozes e esturravam onças.

 

A localidade mais próxima era Vila Bela, a uma distância de cerca de 700km, Rio Guaporé acima. E, então, concluímos que esta gigantesca obra foi um milagre da vontade humana e a afirmação das qualidades inexcedíveis de uma raça que, navegando mares desconhecidos, descobrira novos mundos preparando o advento do Renascimento.

 

E, assim, nos orgulhamos de ser seus descendentes. A energia de um povo que deixou este testemunho em plena selva virgem da Amazônia não perece, nem se dilui no tempo. Essas excelsas qualidades do meu povo, que sempre apregoei, sinto-as aqui, neste passado vivo e vibrante. (FERREIRA, 1961)

 

Percorrendo o Forte

 

O escritor Manoel Rodrigues Ferreira, oitenta e três anos depois da visita do Dr. João Severiano da Fonseca, narra sua incursão ao Real Forte Príncipe da Beira nos idos de 1960:

 

Anda-se com certa dificuldade através da alta vegetação que nasceu no interior do Forte. Os espinhos seguram-nos a roupa e, às vezes, pisamos em falso nas lajes sob o capim alto. Sim, capim, e também grama. Há cerca de dois anos, um Tenente da guarnição do Exército ganhou um veado vivo e deixou-o a pastar, preso no interior do Forte. Alguns meses depois, regressando ao Rio de Janeiro, foi com os seus comandados, buscá-lo. Correram-lhe atrás, e o veado acabou subindo ao alto da muralha. Desespe­rado com o cerco, o veado saltou espetacularmente da alta muralha, morrendo instantaneamente ao chocar-se no fundo do fosso que circunda a parte do Forte adjacente ao Rio. Caminha-se, pois, com certa dificuldade através da vegetação alta. No centro do Forte, o chão é de rocha viva, por isso vê-se imediatamente uma abertura quadrada, com talvez quarenta centímetros de lado. Dificilmente um homem poderá passar através dela. A respeito desta abertura correm as versões mais fantasiosas e fantásticas. Dizem que é a entrada de um subterrâneo que vai sair quase 500m além, no interior da mata, e, também, que um ramo ia dar na margem do Guaporé.

 

Aliás, em 1877, João Severiano da Fonseca, que ali esteve, escreveu sobre o subterrâneo existente no centro da Praça do Forte:

 

No centro há uma grande cisterna, com os escoadouros necessários para o excesso de águas, cuja abertura de saída vê-se na barranca do Rio, como um corredor quadrado, de dois palmos de face, fechado por uma grade de ferro.

 

Há oitenta e três anos, João Severiano viu um pequeno túnel que ligava a grande câmara subterrânea à margem do Rio Guaporé. Hoje, não existe mais essa saída junto à margem. Pelo menos não é mais visível. João Severiano nada diz sobre alguma saída subterrânea para o morro próximo, que, com toda a certeza, nunca existiu. Deitando-se na terra e introduzindo-se a cabeça na abertura, pode-se verificar que há uma grande câmara subterrânea, de talvez dez metros de altura e outros tantos de largura.

 

Esta câmara é bem construída e em forma geométrica. Devido à escuridão, não se pode verificar se existe ou não alguma galeria que se destaca desta câmara. Entretanto, podemos vislumbrar bem lá embaixo, a talvez uns dez metros de profundidade, o piso completamente forrado de excremento de morcegos, que no interior existem aos milhares, o que também confirma a informação dada por Pizarro em 1820.

 

Continuando a caminhar, chegamos aonde era a antiga Capela. Somente três paredes continuam de pé, e a parte superior da abertura onde estava a porta da sacristia está prestes a cair fragorosamente. O Sargento que me acompanha mostra, no interior da Capela, o buraco que um Sargento, em 1934, cavou, a fim de desenterrar os objetos de valor do “Príncipe”.

 

Achou uma espada e objetos de metal do fardamento e que deveriam ser do Engenheiro italiano Domenico Sambocetti, que tinha a patente de oficial do Exército Português. E caminhando através dos escombros e das paredes, repentinamente afundo num buraco escondido pela vegetação. O Sargento não consegue reprimir um sorriso que a situação inesperada lhe provocara. E como eu insistisse em descobrir a razão do buraco, ele não viu outro jeito senão relatá-la. Em janeiro de 1959, uma praça da guarnição do Exército sonhou que havia um tesouro enterrado no interior do Forte [na região, denominam “enterro” estes tesouros enterrados].

 

A praça sonhou, pois, que havia um “enterro” em certo lugar do Forte, e do qual ele se lembrou perfeitamente quando acordou. E apanhan­do um enxadão, correu para o Forte, cavou no local certo [isto é, visto no sonho], mas não achou tesouro algum. Ficou, entretanto, o buraco, para registrar o sonho da praça, e no qual acabei caindo. Parece que paira uma certa lenda em torno da exis­tência de ouro escondido no Forte. Pois, vejamos o que escreveu João Severiano da Fonseca, em 1877:

 

Contaram-me aí [no Forte] e já o tinha sabido em Mato Grosso [ex-Vila Bela], que há uns vinte anos um soldado, de nome Delfino, separando as pedras de umas minas, encontrara uma garrafa de ouro em pó; o que sabido pelo Comandante do Forte, também alferes, este chamara-a a si, primeiramente como sócio forçado e depois com os direitos de leão.

 

Três notícias temos, então, sobre a lenda de ouro no Forte:

 

Em 1857, mais ou menos [segundo João Severiano], um soldado achou uma garrafa de ouro em pó entre pedras de umas ruínas no interior do Forte.

 

Em 1934, o Sargento Comandante do Forte profanou uma sepultura existente na Capela do Forte, procurando achar a espada de ouro do “Príncipe” ali enterrado.

 

E finalmente, em começo do ano de 1959, um soldado sonhou que havia ouro enterrado em determinado lugar da Praça do Forte, tendo ali cavado um buraco.

 

Não há dúvida de que a lenda da existência de tesouros no interior do Forte parece ser antiga. Já descrevemos a entrada principal do Forte, no início deste capítulo. Esta entrada era exclusivamente para pessoas. Há, entretanto, outra entrada lateral, na parte do Forte adjacente ao Rio Guaporé. Essa entrada é simples, tanto na parte exterior como na interior. Exteriormente, está ao nível do chão, e onde havia um pesado portão que deslizava sobre rodas. Hoje, deste portão só existem os grandes gonzos presos à parede, e no chão, dois círculos de ferro sobre os quais corriam as rodas.

 

Essa entrada, a partir do portão, exterior, é em rampa, até alcançar o nível do pátio no interior do Forte. Nesta entrada, percebe-se, pela primeira vez, a largura do muro do Forte: cerca de seis metros! Esta entrada era utilizada para canhões, víveres, materiais, etc.

 

A cadeia ficava junto à entrada da porta principal. Ainda vê-se na parede vestígio das inserções das argolas, onde ficavam presos os condenados. Disse-me o Sargento que me acompanhava, que ali morrera um Padre, que se achava prisioneiro. Esta é, sem dúvida nenhuma, mais uma de tantas lendas que permanecem entre os poucos habitantes ao redor do Forte. Nas paredes das celas leem-se frases escritas no século passado.

 

Na cela oposta a esta, no Natal de 1958, estiveram presos, durante um mês, dois irmãos descendentes de sírio-libaneses da fronteira boliviana. Um deles, em fins de 1958, criou um sério incidente entre as guarnições dos exércitos brasileiro e boliviano, o qual entretanto não foi divulgado. No ano de 1959, esse jovem descendente de sírio-libaneses foi preso na Cidade de São Paulo, como traficante de cocaína contrabandeada da Bolívia. Ali na parede da prisão do Forte, ele também deixou algo escrito, e inclusive a sua assinatura, e data. No presente século, foi essa talvez a única prisão que teve lugar no Forte.

 

Ao lado da entrada principal, junto à prisão, há uma escada de pedra que leva ao alto da muralha. Existem também, nos quatro cantos do Forte, rampas que levam igualmente ao alto da muralha. Estas rampas eram para as carretas que transportavam principalmente munições. Subindo no alto da muralha, panoramas deslumbrantes lá se avistam. A aproximadamente cem metros, vê-se o Rio Guaporé, que desaparece distante.

 

 

Olhando-se para o interior do Forte, tem-se a im­pressão de uma Cidade fantástica, abandonada, per­dida no meio da vegetação. Paredes e escombros, revestidos de folhagem, surgem do capim e dos ar­bustos, como por encanto. É emocionante esta visão das ruínas dos grandes alojamentos. E ali a gente permanece perplexo, incapaz de coordenar qualquer pensamento sobre o que vê. No silêncio ambiente, fica-se irresistivelmente preso ao majestoso espetá­culo destas ruínas que, na sua mudez de pedra e argamassa, evocam de maneira tão eloquente um passado glorioso e do qual tanto nos orgulhamos.

 

E começamos agora a percorrer a muralha. Sim, o termo correto é muralha.

 

Pois a impressão que se tinha do exterior, de constituírem as altas paredes do Forte, um muro de pedra, desfaz-se observando-o aqui do alto. Realmente, são dois muros de pedra, um interno e outro externo, que correm paralelos e distantes um do outro cerca de seis metros. O espaço entre esses dois muros encheu-se com terra, até a parte superior. Por isso, aqui em cima, nasceu também uma alta vegetação, através da qual vamos caminhando com certa dificuldade. No chão, vemos um couro de serpente, que ali devem abundar.

 

Chegamos agora à parte do Forte que dá para a mata. O espetáculo é empolgante. A muralha em sua parte externa é aqui bastante alta, talvez 20 m, e ao seu pé inicia-se a majestosa floresta equatorial amazônica, com suas portentosas espécies vegetais.

E assim vamos caminhando no topo da muralha. Não há hoje um único canhão no Forte. Canhões que vieram de Portugal, e para aqui foram trazidos através dos Rios Madeira e Guaporé. Por qualquer dos dois caminhos, o homem demonstrou a sua energia.

 

Pelo Madeira, teve de vencer os 420 quilômetros de Rio encachoeirado. Pelo Guaporé, teve de atravessar o áspero planalto dos Parecis.

 

Por qualquer dos dois caminhos, o transporte dos canhões para o Forte do Príncipe da Beira constituiu por si só, uma epopeia que ficará gravada na nossa história como uma demonstração do valor e da energia da nossa raça. (FERREIRA, 1961)

 

 

Bibliografia

 

FERREIRA, Manoel Rodrigues. Nas Selvas Amazônicas – Brasil – São Paulo, SP – Editora Gráfica Biblos Ltdª, 1961.

 

Solicito Publicação

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

·     Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

·     Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

·     Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

·     Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

·     Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

·     Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

·     Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

·     Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

·     Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

·     Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

·     Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

·     Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

·     Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

·     E-mail: hiramrsilva@gmail.com.

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