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Hiram Reis e Silva

A Terceira Margem – Parte LXXXII - Madeira-Mamoré ‒ Ferrovia do Diabo ‒ III


A Terceira Margem – Parte LXXXII - Madeira-Mamoré ‒ Ferrovia do Diabo ‒ III - Gente de Opinião

Bagé, 06.11.2020

 

Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte LI

 

Madeira-Mamoré ‒ Ferrovia do Diabo III

 

Engenheiros Keller” – 10.10.1867

 

Vamos voltar ao ano de 1867, sete meses depois da assinatura do Tratado de Ayacucho. O Ministro da Agricultura, mostrando o quanto o comple­xo de inferioridade estava arraigado no alto escalão do Governo, determinou aos engenheiros alemães José e Franz Keller que estudassem as melhores formas de se estabelecer uma ligação do Rio Madeira ao Rio Mamoré, contornando as Cachoeiras, considerando dentre elas a construção de uma ferrovia.

 

Os Keller, depois de percorreram a região duran­te apenas quatro meses e três dias, propuseram três soluções. As alternativas apresentadas, sem reconheci­mento detalhado do terreno, poderiam ter sido retira­das de qualquer “Vade Mecum” de engenharia, da épo­ca, sem a necessidade de reconhecimento “in loco”. Os alemães não tiveram, absolutamente, tempo de esbo­çar qualquer tipo de projeto e suas estimativas de custo não tinham qualquer fundamento técnico.

 

Em relação à ferrovia eles simplesmente confessaram que não haviam visto o terreno em que ela iria percorrer. A missão dos Keller foi simplesmente uma piada de mau gosto. As “sugestões”, reportadas no livro “The Amazon and Madeira Rivers”, foram:

 

1°) Construção de planos inclinados, pelos quais os navios pudessem vencer os fortes declives. Nos planos inclinados ou mortonas, as embarcações com a carga se colocam num carro de ferro, correndo sobre trilhos, que continuam mesmo por baixo d’água, até a profundidade necessária.

 

2°) Abertura de um Canal à direita das Cachoeiras. A abertura de um Canal de navegação na margem direita, de um comprimento de 50 léguas mais ou menos praticável para pequenos rebocadores a hélice, encontra no forte declive geral dessa parte do Rio uma dificuldade considerável. Tornar-se-ia indispensável a construção de comportas, porque a velocidade das enchentes seria tamanha que poderia impedir a navegação, tornando-se ao mesmo tempo a conservação do canal dificílima.

 

3°) Construção de uma Estrada de Ferro de aproxi­madamente 50 léguas de extensão. Este traço não seguiria a linha reta entre Santo Antônio e Guajará-mirim por ser o nivelamento de um tra­ço nesta direção forçosamente muito defeituoso e inteiramente impróprio pra uma Estrada, por causa das ramificações da Serra Geral (Serra dos Parecis), que se estendem até a margem direita do Rio, porém, nem assim seria preciso seguir em todos os pontos as curvas do Rio, podendo-se atalhar diferentes de entre elas. (KELLER)

 

Governo Boliviano

 

Não é já somente uma aspiração patriótica a Estrada de Ferro do Madeira. De mera concepção, esta grande
ideia passou já para o terreno da prática.
(Ministro da Agricultura do Império)

 

Logo após a assinatura do Tratado de Ayacucho, o Governo boliviano enviou ao México o General Quentin Quevedo, chefe da delegação boliviana naquele país. Quevedo tinha também a missão de encontrar, nos Estados Unidos, empresários interessados em construir uma estrada que contornasse as Cachoeiras do Rio Madeira.

 

O Presidente mexicano Juárez entregou a Quevedo diversas Cartas de recomendação que deveriam ser entregues aos Norte-americanos. Uma dessas Cartas estava endereçada ao Coronel Earl Church que imediatamente se interessou pela proposta boliviana.

 

Coronel Earl Church

 

O Coronel Church nasceu em New Bedford, Estado de Massachusetts, a 07.12.1835. Os que acreditam na hereditariedade moral não terão que procurar muito longe a origem de seu caráter ilibado, do pendor que o impelia à aventura, de suas tendências militaristas, de sua disposição para viajar, da capacidade administrativa de que era dotado e de sua predileção pelas construções ferroviárias, qualidades essas que constituíram os traços marcantes de sua personalidade durante os anos de madureza.

 

Pela linhagem paterna, descende diretamente de Richard Church que, em 1632, veio de Oxford, na Inglaterra, para Plymouth, no Estado de Massachusetts, onde se casou com Elizabeth Warren, cujo pai viera para a América no “Mayflower” e era ascendente do General Warren, tombado em Bunker Hill.

 

Um dos filhos de Richard Church foi o capitão Benjamin Church, famoso líder colonial que combateu os Índios durante a guerra do Rei Filipe, e cujas heroicas explorações ingressaram na história e que, entre 1689 e 1704, comandou cinco incursões contra franceses e Índios do Maine e de New Hampshire.

 

Pelo lado materno, o Coronel Church é descendente direto de Mary Clap, que em solteira assinava Mary Winslow, filha de Eduardo Winslow, chegado a Plymouth pelo “Mayflower” e três vezes eleito governador daquela colônia. Ainda pelos laços maternos, o Coronel Church está ligado à família Pease, de Yorkshire, na Inglaterra, conhecida por ter promovido a construção da primeira Estrada de Ferro na Grã-Bretanha, tendo George Stephenson como Engenheiro-chefe.

 

Os antepassados imediatos do Coronel Church mudaram-se para Rochester em 1725 e aí, por compra e doação, tornaram-se proprietários de cerca de quinhentos acres de terra a 25 quilômetros de Plymouth Rock.

 

A maior parte da propriedade primitiva, desbravada e expurgada de silvícolas, acha-se ainda em mãos de parentes seus. O pai do Coronel Church faleceu quando este era ainda bem menino e, ao atingir ele oito anos, sua mãe mudou-se de Rochester para Providence, onde o rapaz frequentou as escolas públicas e já aos quatorze anos, se destacava entre os melhores de seus colegas. Aos 17 anos, optou pela profissão de Engenheiro Civil Topógrafo, tendo conseguido colocar-se em uma Estrada de Ferro de New Jersey. Logo depois foi transferido para uma das ferrovias que correm ao poente do Mississipi, no cargo de Engenheiro-assistente.

 

Posteriormente passou a ser Engenheiro-assistente na construção do túnel Hoosac e depois serviu, ainda, em uma Estrada de Ferro de Iowa.

 

A crise financeira de 1857 deixou-o desempregado e, por isso, aceitou o cargo que lhe ofereceram de Engenheiro-Chefe de uma estrada argentina, partindo ele rumo a Buenos Aires. Lá chegando, encontrou o país agitado e paralisados os trabalhos ferroviários, mas foi quase imediatamente designado para integrar uma Comissão de Engenheiros Militares e Topográficos cuja missão era explorar a fronteira sudoeste da Argentina e sugerir o melhor sistema de defesa contra as incursões hostis dos patagônios e outros selvagens que talavam ([1]) os Pampas e as faldas dos Andes.

 

Durante a execução de seu trabalho, passou a Comissão pelas mais vivas emoções. Em nove meses, percorreu mais de 11 mil quilômetros e com o auxílio de uma força de 400 cavalarianos, empenhou-se em duas rudes refregas com os selvagens. Uma delas, travada a 19.05.1859, teve origem em um súbito ataque desfechado por 1.500 guerreiros pertencentes a seis tribos diversas.

 

Completamente despidos e cavalgando em pelo soberbas montarias, os selvagens atiraram-se, lança em riste, sobre a Expedição, numa esplêndida carga à luz da lua. Durante três horas, desenrolou-se uma luta corpo a corpo em que ninguém pedia tréguas. Os selvagens foram, finalmente, obrigados a se retirar, mas o fizeram em boa ordem, levando em seu poder 3.000 cabeças de gado vacum e cavalar como presa de sua ousada sortida e deixando a Expedição inteiramente à míngua de recursos.

 

Cada membro da missão devia apresentar o seu plano pessoal para a defesa da fronteira e, conquanto o Coronel Church fosse o mais moço e menos experiente da turma, seu plano foi o escolhido.

 

Em 1860, o Sr. Church localizou a Estrada de Ferro entre Buenos Aires e San Fernando, na Argentina, e continuou em proveitoso exercício de sua profissão até o estalar da Guerra de Secessão em sua pátria. Às primeiras notícias do conflito, apressou-se em regressar aos Estados Unidos, onde ofereceu seus serviços em defesa da União. Durante a Guerra, serviu sucessivamente como Capitão, Tenente-Coronel, Coronel e Comandante de uma brigada de voluntários no Exército do Potomac.

 

Finda a rebelião, o Coronel Church foi para o México como correspondente do “New York Herald” e serviu nas duas últimas campanhas contra Maximiliano, em 1866 e 1867. Em ensaio biográfico estampado num jornal de Boston, anos atrás, consta que, conquanto o Coronel Church tivesse ido para o México como particular e ostensivamente como representante de um jornal, na verdade levava uma missão secreta do General Grant e, como tal, uniu-se às forças do Presidente Juarez em Chihuahua, tendo delineado a Campanha final que resultou na captura de Maximi­liano.

 

Entretanto, prevendo o destino que aguardava o mal orientado Imperador, partiu para os EUA percorrendo mais de 900 km por terra em 6 dias e atravessando o golfo do México em um vaporzinho que quase soçobrou durante a tormentosa travessia. Em Washington, pleiteou a intervenção do governo americano com a qual esperava poder salvar Maximiliano da fatalidade que o aguardava.

 

Ao voltar do México, o Coronel Church, por algum tempo, fez parte do corpo de redatores do “New York Herald”. A seguir foi para a América do Sul, onde tomou parte nos emocionantes acontecimentos que precederam a queda de Lopez, o ditador paraguaio. Torna-se desnecessário tratar aqui da atuação do Coronel Church na execução do projeto brasileiro-boliviano, visto como é justamente esse o objetivo das páginas que se seguem.

 

Em 1880, foi comissionado pelo governo norte-americano para visitar o Equador e elaborar um relatório sobre a situação do país; em 1891, representou a American Society of Civil Engineers no Congresso de Higiene e Demografia, em Londres; em 1895, fez uma viagem a Costa Rica com o fim de regularizar a dívida externa e examinar a situação da Estrada de Ferro local.

 

Em 1898, foi eleito presidente do Departamento Geográfico da British Association e, em anos recentes, esteve interessado na projetada Estrada de Ferro transcanadense, visando ligar Quebec a Port Simpson, na costa do Pacífico, por um traçado 400 quilômetros mais curto que o que ia a Vancouver pela Canadian Pacific.

 

É atualmente membro do Conselho da Hakluyt Society, da Royal Historical Society, Vice-presidente da Royal Geographic Society, da American Society of Civil Engineers, Companheiro de primeira classe da Ordem Militar da Royal Legion of the United States, Membro do Clube Naval e Militar da Cidade de Nova York e dos Clubes Geográfico, Savage, e Ranelagh, de Londres. O Coronel Church escreveu ainda, fartamente, sobre explorações e empreendimentos comerciais na América do Sul, bem como sobre a história da Revolução Mexicana.

 

Da alta estima em que é tido na Royal Geographical Society, pode-se aquilatar pelos debates travados em torno de uma comunicação por ele apresentada à sociedade, em 1901, quando um de seus pares teve as seguintes palavras a seu respeito:

 

Ouvimos a comunicação maravilhados ante a soma prodigiosa de conhecimentos que possui o Coronel Church com relação ao Continente Sul-americano. Não existe, naquele continente, uma só montanha, um só Rio, uma única planura, um trecho litorâneo ou um estuário sobre o qual o Cel Church não esteja habilitado a nos fornecer dados precisos. (CRAIG)

 

 

Bibliografia

 

CRAIG, Neville B.. Estrada de Ferro Madeira-Mamoré: História Trágica de uma Expedição (1947) – Brasil – São Paulo, SP – Companhia Editora Nacional, 1947.

 

KELLER, Franz. The Amazon and Madeira Rivers – EUA – Philadelphia – J. B. Lippincott and C°., 1875.

 

Solicito Publicação

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

·     Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

·     Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

·     Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

·     Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

·     Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

·     Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

·     Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

·     Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

·     Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

·     Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

·     Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

·     Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

·     Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

·     E-mail: hiramrsilva@gmail.com.



[1]   Talavam: assolavam.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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