Terça-feira, 10 de novembro de 2020 - 08h06
Bagé, 10.11.2020
Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte LIII
Madeira-Mamoré ‒ Ferrovia do Diabo ‒ V
Apoteótica Partida do “Mercedita”
No dia 04.01.1878, partiu com destino a Santo Antônio, no Madeira, o
vapor “Mercedita”. O efetivo
embarcado de 227 profissionais era formado por Engenheiros, Médicos, Técnicos,
Operários especializados, operários e a tripulação. No vapor, também, foram
carregadas 500 toneladas (Ton) de materiais para construção, 200 Ton de
máquinas e ferramentas, além de 350 Ton de carvão mineral. O New York Herald,
de 02.01.1878, comentou:
A viagem deste vapor é de interesse nacional, pois, pela primeira vez na
história norte-americana, daqui parte uma Expedição equipada com material
norte-americano, financiada com dinheiro nosso e dirigida por patrícios, para
executar, no estrangeiro, obra pública de grande vulto. Ao que consta, os 54
engenheiros que integram o corpo técnico constituem o mais fino grupo de
profissionais que jamais se conseguiu reunir em Expedição semelhante.
Neville B. Craig, no seu livro “Estrada
de Ferro Madeira-Mamoré: história trágica de uma Expedição (1947)”, conta a
saga da “Mercedita”:
O “Mercedita”
era um vapor para 856 toneladas de carga. Fora construído em 1852, e,
devidamente artilhado, auxiliara o bloqueio dos portos confederados, durante a
Guerra de Secessão.
Subsequentemente fora convertido em navio
mercante e empregado na rota de Nova York a São João. Seu comandante, William
Jackaway, era um verdadeiro lobo do mar que passara a vida na pesca da baleia
e, como o demonstrara mais tarde, não desconhecia inteiramente a rota que seu
barco estava a ponto de encetar.
O Coronel John Jameson detinha a orientação suprema da Expedição, na
ausência do Sr. Thomas Collins, que pretendia seguir semanas depois. Os
passageiros eram em número de 220, aí incluídas três turmas de engenheiros sob
as ordens do Sr. Charles M. Bird, que levava, como auxiliares principais, seus
colegas Charles W. Buchholz, John Runk e Amos Stiles. Todos eles haviam tomado
parte na Guerra de Secessão, quer servindo na Marinha, quer nas fileiras do
Exército, e tinham desempenhado cargos de grande responsabilidade em
construções ferroviárias nos EUA.
Muitos dos que ocupavam posições secundárias, como C. S. d’Invilliers,
Joseph Byers, R. H. Bruce, W. C. Wetherill, C. A. Preston, John B. Dougherty e
outros, já tinham conquistado reputação invejável nas principais Estradas de
Ferro norte-americanas e dispunham de todas as qualidades necessárias para
qualquer promoção que as circunstâncias do serviço exigissem.
O corpo médico estava a cargo do Dr. E. P. Townsend. Era grande o número
de Almoxarifes, Apontadores e Escriturários. Velhos capatazes irlandeses que de
há muito trabalhavam para os irmãos Collins, compartilhavam, ainda, da sorte da
firma, a bordo do “Mercedita”.
Carpinteiros, Mecânicos e grande número de lenhadores das matas da Pensilvânia
compunham o resto da leva humana.
A carga consistia de 500 toneladas de ferro de diversas espécies, para
construções ferroviárias, 200 toneladas de instrumentos, ferramentas,
mercadorias variadas e todas as qualidades de provisões, bem como 350 Ton de
carvão e a bagagem dos passageiros. Igual quantidade de carvão fora de antemão
enviada ao Pará, em veleiro, para a viagem de retorno.
O interesse popular por todos os pormenores da partida desse navio
pioneiro da Expedição ficou fielmente registrado no Times de Filadélfia, de
03.01.1878:
Sob o comando do Capitão Jackaway, o vapor “Mercedita” largou ontem ([1])
à 1 hora, do trapiche de Willow Street, rumo ao âmago longínquo do Continente
Sul-americano. Desde os idos tempos da febre aurífera da Califórnia, em que a
partida de cada vapor pejado de passageiros ávidos de ouro, sacudia até à
medula a sonolenta Filadélfia de antanho, poucas cenas se verificaram na orla
marítima do Delaware, como a que se presenciou ontem no trapiche de Willow
Street. Não era a reunião dos amigos e parentes dos 227 homens a bordo do “Mercedita” que atraía a atenção de vasta
multidão de curiosos, mas o profundo interesse que despertou a partida do navio
pioneiro e conseguiu reunir o povo ansioso por testemunhar o momento em que,
com sua preciosa carga, havia de largar rumo ao seu remoto destino.
Apesar dos cordões de isolamento que a polícia distendera ao longo do
trapiche, no momento da partida o povo já estava tão rente do barco que só com
grande dificuldade se conseguia chegar ao costado. No portaló, dois
funcionários da Companhia anotavam os nomes dos operários que embarcavam.
Grande confusão lavrava pelos tombadilhos, pois o navio fora carregado com tal
afobação que não tinha sido possível arrumar com cuidado a carga e, até o
último instante, o guincho do mastro dianteiro ainda içava bagagens e suprimentos.
Quando a proa do navio começou a romper o caudal, a massa popular se pôs
a gritar e todos os rebocadores e locomotivas das proximidades apitaram
alegremente até que, finalmente, conseguiram abafar o alarido da multidão. O
barco da polícia “William S. Stokley”,
carregado de senhoras e cavalheiros, acompanhou o vapor até o velho Arsenal de
Marinha. Enquanto o “Mercedita”
descia o Rio, antes de ganhar mar alto, ia sendo saudado pelo povo que se
aglomerava nos diversos trapiches bem como pelo apito estrídulo de outros
vapores e o badalar contínuo dos sinos de bordo. Os passageiros, que se
mostravam igualmente entusiasmados, enrouqueceram de tanto responder às
saudações.
Diante de Chester, o “Stokley”,
que havia deixado o “Mercedita” uma
milha para trás, reduziu a marcha para o esperar, atracando, finalmente, ao
costado para receber os Srs. P. & T. Collins, bem como o Cel Church, que
até então se achavam a bordo do “Mercedita”.
Na mesma ocasião, vários passageiros que se achavam na lancha da polícia,
passaram para o vapor. Depois, as embarcações se separaram; ouviram-se
despedidas, acenar de lenços, adeuses e o “Stokley”
aproou rumo à Cidade deixando o “Mercedita”
já em sua rota, para o oceano.
Terminadas as despedidas, começamos a pôr ordem à confusão generalizada
que ia a bordo. Muita coisa destinada ao consumo imediato fora acomodada nos
porões, sob toneladas de material pesado, em lugares de difícil acesso.
Procederam-se a duas chamadas durante a tarde; as cabinas foram distribuídas a
uns poucos felizardos, cerca de 40 ao todo. O vento forte que soprava de
sudeste nos obrigou a lançar âncora a 45 milhas ao largo dos cabos de Delaware.
Logo que as máquinas pararam, o vapor começou a jogar de maneira
impressionante, como, aliás, o fez frequentemente daí por diante. Já nessa fase
inicial da travessia, muitos passageiros foram forçados a procurar a amurada do
navio ou algum recanto discreto, no tombadilho inferior. Os que se podiam
alimentar só a muito custo conseguiam uma xícara de café com alguns biscoitos. Nem
as instalações da cozinha nem o pessoal que nela trabalhava estavam em
condições de fornecer alimento ao elevado número de passageiros. Nos
tombadilhos, instalaram-se camas rústicas para os trabalhadores e os que não
tiveram a fortuna de conseguir beliches, tinham que se contentar com colchões,
travesseiros e cobertores no chão, ou sobre as mesas da cabina. Quem ficasse no
tombadilho até tarde da noite, dificilmente conseguiria chegar ao seu beliche
sem tropeçar nos que dormiam comprimidos, qual uma camada de sardinhas que
forrasse o fundo de enorme caixa, ocupando as mínimas nesgas do piso da cabina.
Uma ou duas pessoas tinham levado redes para bordo e assim, balouçando sobre
seus companheiros menos previdentes, conseguiam escapar, em grande parte, ao
enjoo provocado pelo constante jogar do vapor.
Posto que o Capitão Jackaway detivesse o
comando nominal do barco, quem de fato o comandava, a não ser em assuntos que
se relacionassem diretamente à navegação, era a garçonete de bordo de nome
Gertie – moça de aparência pouco agradável que dominava soberanamente da popa à
proa, dando ordens absolutas, tanto aos passageiros como à tripulação. A
prolongada convivência que sempre tivera com marinheiros, destruíra-lhe até os
mais leves vestígios de encantos feminis. A qualquer hora do dia ou da noite
podia-se ouvir sua voz estridente, ralhando com quem quer que tivesse tido a
infelicidade de transgredir suas ordens ditatoriais.
Quando excitada aos paroxismos da cólera,
seu calão de irlandesa rústica nivelava-se ao dos mais rudes homens do mar.
Em momento de raiva, um dos engenheiros
deu-lhe um apelido que, apesar de rimar com o nome pelo qual ela desejava que
lhe chamassem, ofendeu-lhe profundamente, daí resultando, para o autor,
perfeito regime de fome até o fim da viagem.
Quando a chamavam durante a noite, – o que, aliás, era frequente –
Gertie não se preocupava com a “toilette”
e surgia de seu beliche em trajos que nos faziam lembrar o poeta Fitz-Greene
Halleck: “Qual Eva, angelical e
interessantíssima”, provocando pesadelos ao tropeçar pelos que dormiam no
chão, descalça, de lanterna em punho, sem o menor constrangimento e sem pedir
desculpas. Apesar de tudo, porém, Gertie tinha bom coração e muitas vezes
durante a viagem, quando a comida se apresentava intragável, trazia-nos às
escondidas um pedaço de torta ou de bolo, uma lata de pêssegos ou um copo de
água gelada, provavelmente surripiados às reservas pessoais do Capitão
Jackaway. (CRAIG)
Bibliografia
CRAIG, Neville B..
Estrada de Ferro Madeira-Mamoré: história trágica de uma Expedição (1947)
– Brasil – São Paulo, SP – Companhia Editora Nacional, 1947.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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