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Hiram Reis e Silva

A Terceira Margem – Parte LXXXV - Madeira-Mamoré ‒ Ferrovia do Diabo ‒ VI


A Terceira Margem – Parte LXXXV - Madeira-Mamoré ‒ Ferrovia do Diabo ‒ VI - Gente de Opinião

Bagé, 11.11.2020

 

Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte LIV

 

Madeira-Mamoré ‒ Ferrovia do Diabo VI

 

No dia 03.01.1878, ao levantar ferro, partiu-se o guincho e só lá pelo meio dia foi que conseguimos prosseguir a descida do Delaware. A falta de ordem era, infelizmente, o que mais se evidenciava. Fomos divididos em grupos, provavelmente por sorteio. De cada núcleo, destacavam-se algumas pessoas para lavar pratos e servir a comida, do castelo de proa, onde se instalaram alguns fogões sobressalentes, distribuindo-a pelos lados do navio e lá embaixo, na mesa da cabina. Os cozinheiros improvisados não provaram bem.

 

O estoque de sabão próprio para água salgada ou fora esquecido ou estava escondido em algum lugar inacessível. O sabão comum era inútil e os lavadores de louça ainda não conheciam o recurso de se aplicar um jato de vapor aos pratos para dissolver a gordura. Os garçons de emergência, sem prática de se equilibrar, em marcha, ao balanço do navio, não se revelaram eficientes, pois, ao transportarem os pratos para a mesa de jantar, no porão, os alimentos líquidos ou semilíquidos quase sempre chegavam ao fim da escada antes deles e, não raro, escorriam pela cabeça da turba faminta que se comprimia em torno da mesa.

 

As turmas de passageiros que se revezavam na mesa de jantar eram tantas que as refeições se prolongaram durante o dia todo até alta hora da noite. A princípio a alimentação consistia de café sem leite nem açúcar, biscoitos do mar e uma sopa mais ou menos passável.

 

Mais tarde, apresentaram-nos quitutes ainda mais apetitosos: o bolo e a torta de farinha. A primeira dessas especialidades da culinária marítima era cozida dentro de sacos feitos do mesmo pano dos de farinha, ou de qualquer peça de roupa apanhada ao acaso, do varal. A comida era servida em grandes bacias de ferro ou em panelas e o café vinha em baldes de madeira, comuns. Canecas e pratos de ferro, além de escasso número de talheres, constituíam todo o serviço de jantar.

 

Os grupos que se sucediam à mesa nem procuravam sentar-se; ficavam em pé ao redor, ansiosos por conseguir algo que comer e lutando para engolir o pouco de alimento que as circunstâncias e o balanço do barco o permitiam.

 

O suprimento de água potável era tão escasso que seu uso só era permitido para cozinhar e beber, e, mesmo assim, com parcimônia. Nem se pense que era ela da melhor qualidade. Apresentava-se altera­da, tanto no paladar como na cor, quer fosse por estar sujo o reservatório em que estava guardada, quer por ter sido captada no Rio Delaware, logo abaixo dos esgotos de certa localidade.

 

Às 16h00 horas, franqueamos o quebra-mar Delaware e aproamos para o Sul, rumo ao alto-mar. Até então a vida de bordo não tinha sido de molde a entusiasmar ninguém; contudo os moçoilos que, pela primeira vez deixavam o lar onde se haviam habituado a toda espécie de conforto, não menos que seus pais, acostumados às agruras da vida campestre, revelavam disposição para se mostrar alegres em circunstâncias que todos consideravam temporárias por terem sido o resultado inevitável da agitação e confusão provenientes de nossa atabalhoada partida.

 

O céu azul e o mar tranquilo pareciam augurar viagem feliz. Cheios de esperança e entusiasmo, víamos, da amurada do navio, desaparecer no horizonte a linha debruada de neve do litoral patrício e, ao recolhermo-nos essa noite, levávamos no coração a certeza de que dentro de poucos dias, poderíamos sentir no rosto a deliciosa carícia das brisas embalsamadas do Mar do Sul e os cálidos raios solares de um verão perene. Seria cerca de meia-noite quando súbita revolta dos elementos nos despertou. Por todo o navio ouviam-se ordens incisivas, enérgicas, a correria dos marinheiros colhendo velas, entrecortado, tudo, pelo sibilar constante do vento entre a cordoalha. Parecia que tudo caía dentro da cabina e nos tombadilhos. Os ruídos se sucediam ininterruptamente, pois todo o vasilhame de cozinha e mesa, mal seguro, ia parar no soalho.

 

O vapor jogava de maneira impressionante e o vendaval ululante que soprava do sul paralisava quase inteiramente a marcha do navio. Mesmo com vento fraco a instabilidade do “Mercedita” já tinha sido motivo de pilhérias: “este navio jogaria até dentro de um canal”, “deve ter algum peixe grande sob a quilha”. Esse defeito da embarcação agravou-se, de modo alarmante, com a brusca mudança do tempo, e, no dia seguinte, 04.01.1878, notava-se a fisionomia preocupada dos passageiros. Poucos eram os que não estavam enjoados, e, por conseguinte, a cabina se achava em condições intoleráveis. Apesar da chuva que desabava em bátegas ([1]), os que estavam melhor preferiam ficar no tombadilho, munidos de chapéus de borracha, a ter que suportar a situação, lá embaixo. Quem não estivesse na cabina, tinha que se segurar firmemente em qualquer peça do barco, não só para evitar que fosse varrido pelas ondas, como ainda porque a inclinação do navio era, às vezes, tão grande que, quem não estivesse bem seguro, se via forçado a uma carreira involuntária pela ladeira abaixo, sem saber se ao fim da descida conseguiria agarrar-se à grade inferior ou se a carreira terminaria num voo por sobre a amurada e um mergulho fatal nas águas revoltas.

 

Não foi possível servir refeição alguma nesse dia. Os cozinheiros e garçons improvisados estavam todos mais ou menos indispostos e tinham outras e mais urgentes obrigações a atender que matar a fome a seus companheiros. Os raros que tentaram levar pratos de sopa ou xícaras de café ao longo do tombadilho ou até a cabina, só conseguiram parte de seu intento. O pouco desses líquidos que conseguiam levar até o topo da escada que descia para a cabine, só servia para se derramar sobre os coitados que se comprimiam lá embaixo.

 

Pode-se perfeitamente imaginar que os protestos provocados por tais banhos indesejáveis não eram de natureza a estimular sua repetição. Se alguém sentia, às vezes, vontade de rir de seus companheiros menos afortunados, a distribuição de salva-vidas, o aprestamento dos botes e o boato então corrente de que três companhias de seguro de Nova York não quiseram segurar a carga do vapor, faziam-nos ponderar sobre o enorme risco a que todos estavam expostos. Todavia, com incrível perversidade, a hilaridade se insinuava mesmo nos mais sérios instantes e assim é que, sempre que nos lembramos daquelas horas angustiosas, vem-nos à memória a cena do velho John O’Hara, capataz chefe de P. & T. Collins é católico devoto [homem cuja coragem pairava acima de qualquer dúvida], recostado na cabina, cercado de numerosos passageiros que, como ele, não podiam mais de enjoo, gemendo constantemente.

 

A expressão de seu rosto lembrava as palavras da oração: “Meu Deus, sede bom para comigo nesta hora terrível. Dos homens nenhuma esperança de auxílio me resta”, à medida que ia simultaneamente aliviando o estômago e a consciência, vomitando e espargindo água-benta que trouxera consigo para os casos de emergência. Os raros que estavam em condições de se alimentar, só conseguiram, nesse dia, um pouco de café e alguns biscoitos. Não se tinha até então providenciado a distribuição de água para beber, de maneira que muitos sofriam sua falta. Todos nós sabíamos que o navio não estava caminhando e que o céu nublado, impedindo a observação dos astros, impossibilitava que se determinasse a posição do barco. E teria sido esse o único recurso para nos afastarmos da perigosa costa de Hatteras.

 

Era com expressão de profundo aborrecimento que o Capitão Jackaway se voltava para quem tivesse a impertinência de o interpelar sobre a distância coberta aquele dia ou sobre a situação do navio. Quase ninguém pôde dormir a bordo, naquela noite, e os que ocupavam os leitos superiores, na cabina, tiveram que se precaver como puderam para evitar que fossem atirados ao chão.

 

Durante todo o dia seguinte, 05.01.1878, o vento continuou violento, mas passou a soprar de popa.

 

A alimentação era ainda miserável e escassa. Cada vez que o barco galgava uma nova montanha de água e de lá se precipitava no abismo, pensávamos nas toneladas de ferro que se achavam no porão e assaltava-nos o receio de que a nave submergisse, ou que algum objeto mais pesado fosse projetado contra o casco e praticasse um furo, abaixo da linha d’água. Na mesa que rodeávamos para ver se comíamos, um solavanco mais forte fazia o café ou a sopa que se tentava ingerir, atravessá-la escorrendo, para atingir o companheiro da frente. Grande parte da alimentação, de uma forma ou de outra, ia parar no soalho e é bem de se imaginar em que condições estaria ele.

 

Dia 06.01.1878 foi o primeiro domingo que passamos no mar. O temporal já tinha amainado de todo, o céu se apresentava de um azul puríssimo e a temperatura agradável permitiu que quase todos os passageiros passassem parte do dia no tombadilho.

 

Depois da tormenta por que passamos, pouquíssimos os que não quiseram tomar parte no serviço religioso celebrado a bordo, cuja marcante expressividade advinha de não estar ele adstrito ao ritual de nenhum credo, em particular.

 

A parte principal da cerimônia consistiu de música e cantos sacros, e, até hoje, quando nos recordamos daquela cena memorável, vêm-nos nitidamente à memória estes dois simples versículos:

 

Existe um país mais lindo que o dia / Do qual as belezas a Fé nos revela.

 

A alimentação e a maneira de servi-la continuaram do mesmo modo detestável. Mais ou menos por essa altura, muitos dos passageiros tinham seus acordos particulares com a garçonete ou o servente da cabi­na para deles conseguir o de que precisavam.

 

Durante o dia, já que quase todos se haviam refeito dos sofrimentos impostos pelo temporal e começavam a se locomover com mais desembaraço pelo navio, o ambiente foi-se tornando de novo alegre. De popa à proa ouviam-se músicas e canções de toda espécie. Eram pistões, acordeões, flautas, hinos e canções lascivas. (CRAIG)

 

Bibliografia

 

CRAIG, Neville B.. Estrada de Ferro Madeira-Mamoré: história trágica de uma Expedição (1947) – Brasil – São Paulo, SP – Companhia Editora Nacional, 1947.

 

Solicito Publicação

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

·     Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

·     Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

·     Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

·     Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

·     Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

·     Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

·     Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

·     Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

·     Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

·     Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

·     Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

·     Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

·     Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

·     E-mail: hiramrsilva@gmail.com.



[1]   Bátegas: pancadas d’água.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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