Quarta-feira, 11 de novembro de 2020 - 06h33
Bagé, 11.11.2020
Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte LIV
Madeira-Mamoré ‒ Ferrovia do Diabo ‒ VI
No dia 03.01.1878, ao levantar ferro, partiu-se o guincho e só lá pelo
meio dia foi que conseguimos prosseguir a descida do Delaware. A falta de ordem
era, infelizmente, o que mais se evidenciava. Fomos divididos em grupos,
provavelmente por sorteio. De cada núcleo, destacavam-se algumas pessoas para
lavar pratos e servir a comida, do castelo de proa, onde se instalaram alguns
fogões sobressalentes, distribuindo-a pelos lados do navio e lá embaixo, na
mesa da cabina. Os cozinheiros improvisados não provaram bem.
O estoque de sabão próprio para água salgada ou fora esquecido ou estava
escondido em algum lugar inacessível. O sabão comum era inútil e os lavadores
de louça ainda não conheciam o recurso de se aplicar um jato de vapor aos
pratos para dissolver a gordura. Os garçons de emergência, sem prática de se
equilibrar, em marcha, ao balanço do navio, não se revelaram eficientes, pois,
ao transportarem os pratos para a mesa de jantar, no porão, os alimentos
líquidos ou semilíquidos quase sempre chegavam ao fim da escada antes deles e,
não raro, escorriam pela cabeça da turba faminta que se comprimia em torno da
mesa.
As turmas de passageiros que se revezavam na mesa de jantar eram tantas
que as refeições se prolongaram durante o dia todo até alta hora da noite. A
princípio a alimentação consistia de café sem leite nem açúcar, biscoitos do
mar e uma sopa mais ou menos passável.
Mais tarde, apresentaram-nos quitutes ainda mais apetitosos: o bolo e a
torta de farinha. A primeira dessas especialidades da culinária marítima era
cozida dentro de sacos feitos do mesmo pano dos de farinha, ou de qualquer peça
de roupa apanhada ao acaso, do varal. A comida era servida em grandes bacias de
ferro ou em panelas e o café vinha em baldes de madeira, comuns. Canecas e
pratos de ferro, além de escasso número de talheres, constituíam todo o serviço
de jantar.
Os grupos que se sucediam à mesa nem procuravam sentar-se; ficavam em pé
ao redor, ansiosos por conseguir algo que comer e lutando para engolir o pouco
de alimento que as circunstâncias e o balanço do barco o permitiam.
O suprimento de água potável era tão escasso
que seu uso só era permitido para cozinhar e beber, e, mesmo assim, com
parcimônia. Nem se pense que era ela da melhor qualidade. Apresentava-se alterada,
tanto no paladar como na cor, quer fosse por estar sujo o reservatório em que
estava guardada, quer por ter sido captada no Rio Delaware, logo abaixo dos
esgotos de certa localidade.
Às 16h00 horas, franqueamos o quebra-mar Delaware e aproamos para o Sul,
rumo ao alto-mar. Até então a vida de bordo não tinha sido de molde a
entusiasmar ninguém; contudo os moçoilos que, pela primeira vez deixavam o lar
onde se haviam habituado a toda espécie de conforto, não menos que seus pais,
acostumados às agruras da vida campestre, revelavam disposição para se mostrar
alegres em circunstâncias que todos consideravam temporárias por terem sido o
resultado inevitável da agitação e confusão provenientes de nossa atabalhoada
partida.
O céu azul e o mar tranquilo pareciam augurar viagem feliz. Cheios de
esperança e entusiasmo, víamos, da amurada do navio, desaparecer no horizonte a
linha debruada de neve do litoral patrício e, ao recolhermo-nos essa noite,
levávamos no coração a certeza de que dentro de poucos dias, poderíamos sentir
no rosto a deliciosa carícia das brisas embalsamadas do Mar do Sul e os cálidos
raios solares de um verão perene. Seria cerca de meia-noite quando súbita
revolta dos elementos nos despertou. Por todo o navio ouviam-se ordens
incisivas, enérgicas, a correria dos marinheiros colhendo velas, entrecortado,
tudo, pelo sibilar constante do vento entre a cordoalha. Parecia que tudo caía
dentro da cabina e nos tombadilhos. Os ruídos se sucediam ininterruptamente,
pois todo o vasilhame de cozinha e mesa, mal seguro, ia parar no soalho.
O vapor jogava de maneira impressionante e o vendaval ululante que
soprava do sul paralisava quase inteiramente a marcha do navio. Mesmo com vento
fraco a instabilidade do “Mercedita”
já tinha sido motivo de pilhérias: “este
navio jogaria até dentro de um canal”, “deve
ter algum peixe grande sob a quilha”. Esse defeito da embarcação
agravou-se, de modo alarmante, com a brusca mudança do tempo, e, no dia
seguinte, 04.01.1878, notava-se a fisionomia preocupada dos passageiros. Poucos
eram os que não estavam enjoados, e, por conseguinte, a cabina se achava em
condições intoleráveis. Apesar da chuva que desabava em bátegas ([1]),
os que estavam melhor preferiam ficar no tombadilho, munidos de chapéus de
borracha, a ter que suportar a situação, lá embaixo. Quem não estivesse na
cabina, tinha que se segurar firmemente em qualquer peça do barco, não só para
evitar que fosse varrido pelas ondas, como ainda porque a inclinação do navio
era, às vezes, tão grande que, quem não estivesse bem seguro, se via forçado a
uma carreira involuntária pela ladeira abaixo, sem saber se ao fim da descida
conseguiria agarrar-se à grade inferior ou se a carreira terminaria num voo por
sobre a amurada e um mergulho fatal nas águas revoltas.
Não foi possível servir refeição alguma nesse dia. Os cozinheiros e
garçons improvisados estavam todos mais ou menos indispostos e tinham outras e
mais urgentes obrigações a atender que matar a fome a seus companheiros. Os
raros que tentaram levar pratos de sopa ou xícaras de café ao longo do
tombadilho ou até a cabina, só conseguiram parte de seu intento. O pouco desses
líquidos que conseguiam levar até o topo da escada que descia para a cabine, só
servia para se derramar sobre os coitados que se comprimiam lá embaixo.
Pode-se perfeitamente imaginar que os protestos provocados por tais
banhos indesejáveis não eram de natureza a estimular sua repetição. Se alguém
sentia, às vezes, vontade de rir de seus companheiros menos afortunados, a
distribuição de salva-vidas, o aprestamento dos botes e o boato então corrente
de que três companhias de seguro de Nova York não quiseram segurar a carga do
vapor, faziam-nos ponderar sobre o enorme risco a que todos estavam expostos. Todavia,
com incrível perversidade, a hilaridade se insinuava mesmo nos mais sérios
instantes e assim é que, sempre que nos lembramos daquelas horas angustiosas,
vem-nos à memória a cena do velho John O’Hara, capataz chefe de P. & T.
Collins é católico devoto [homem cuja coragem pairava acima de qualquer
dúvida], recostado na cabina, cercado de numerosos passageiros que, como ele,
não podiam mais de enjoo, gemendo constantemente.
A expressão de seu rosto lembrava as palavras da oração: “Meu Deus, sede bom para comigo nesta hora
terrível. Dos homens nenhuma esperança de auxílio me resta”, à medida que
ia simultaneamente aliviando o estômago e a consciência, vomitando e espargindo
água-benta que trouxera consigo para os casos de emergência. Os raros que
estavam em condições de se alimentar, só conseguiram, nesse dia, um pouco de
café e alguns biscoitos. Não se tinha até então providenciado a distribuição de
água para beber, de maneira que muitos sofriam sua falta. Todos nós sabíamos
que o navio não estava caminhando e que o céu nublado, impedindo a observação
dos astros, impossibilitava que se determinasse a posição do barco. E teria sido
esse o único recurso para nos afastarmos da perigosa costa de Hatteras.
Era com expressão de profundo aborrecimento que o Capitão Jackaway se
voltava para quem tivesse a impertinência de o interpelar sobre a distância
coberta aquele dia ou sobre a situação do navio. Quase ninguém pôde dormir a
bordo, naquela noite, e os que ocupavam os leitos superiores, na cabina,
tiveram que se precaver como puderam para evitar que fossem atirados ao chão.
Durante todo o dia seguinte, 05.01.1878, o vento continuou violento, mas
passou a soprar de popa.
A alimentação era ainda miserável e escassa. Cada vez que o barco
galgava uma nova montanha de água e de lá se precipitava no abismo, pensávamos
nas toneladas de ferro que se achavam no porão e assaltava-nos o receio de que
a nave submergisse, ou que algum objeto mais pesado fosse projetado contra o
casco e praticasse um furo, abaixo da linha d’água. Na mesa que rodeávamos para
ver se comíamos, um solavanco mais forte fazia o café ou a sopa que se tentava
ingerir, atravessá-la escorrendo, para atingir o companheiro da frente. Grande
parte da alimentação, de uma forma ou de outra, ia parar no soalho e é bem de
se imaginar em que condições estaria ele.
Dia 06.01.1878 foi o primeiro domingo que passamos no mar. O temporal já
tinha amainado de todo, o céu se apresentava de um azul puríssimo e a
temperatura agradável permitiu que quase todos os passageiros passassem parte
do dia no tombadilho.
Depois da tormenta por que passamos, pouquíssimos os que não quiseram
tomar parte no serviço religioso celebrado a bordo, cuja marcante
expressividade advinha de não estar ele adstrito ao ritual de nenhum credo, em
particular.
A parte principal da cerimônia consistiu de música e cantos sacros, e,
até hoje, quando nos recordamos daquela cena memorável, vêm-nos nitidamente à
memória estes dois simples versículos:
Existe um país mais lindo que o dia / Do qual as belezas a Fé nos
revela.
A alimentação e a maneira de servi-la
continuaram do mesmo modo detestável. Mais ou menos por essa altura, muitos dos
passageiros tinham seus acordos particulares com a garçonete ou o servente da
cabina para deles conseguir o de que precisavam.
Durante o dia, já que quase todos se haviam refeito dos sofrimentos
impostos pelo temporal e começavam a se locomover com mais desembaraço pelo
navio, o ambiente foi-se tornando de novo alegre. De popa à proa ouviam-se
músicas e canções de toda espécie. Eram pistões, acordeões, flautas, hinos e
canções lascivas. (CRAIG)
Bibliografia
CRAIG, Neville B..
Estrada de Ferro Madeira-Mamoré: história trágica de uma Expedição (1947)
– Brasil – São Paulo, SP – Companhia Editora Nacional, 1947.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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