Quinta-feira, 12 de novembro de 2020 - 08h24
Bagé, 12.11.2020
Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte LV
Madeira-Mamoré ‒ Ferrovia do Diabo ‒ VII
No dia 07.01.1878, navegamos bem com vapor e vela. As refeições estavam
um pouco melhores, e, se comparadas aos dias anteriores, podia-se dizer que
eram passáveis. Carne de porco, café servido em baldes de madeira, maçã assada,
tomates e biscoitos constituíam o menu, mas, a muitas pessoas repugnava
servir-se de pratos mal lavados e, mesmo assim, não era fácil conseguir-se um
pouco de cada iguaria, tão rapidamente eram elas consumidas. Distribuíram-se
cântaros e cada passageiro recebeu uma ração de água, de mais ou menos um litro
por dia. Grande parte do precioso líquido era empregada no asseio corporal,
pois não nos era possível usar sabonete em água salgada. [...]
BARBADOS
Já estava alto o Sol, na manhã de 17.01.1878, quando fomos despertados
por terrível confusão de vozes estranhas, mesmo por baixo de nosso beliche, e
pelo entrechocar de remos e de botes batendo uns contra os outros e o costado
do navio. Não nos foi difícil perceber, pela vigia, que o navio se movimentava
lentamente para dentro do Porto de Bridgetown, seguido de vasta frota de
pequenas embarcações, pilotadas por barqueiros escuros, que gritavam, brigavam
e vomitavam impropérios pior que os carroceiros de Nova York, convencidos de
que no “Mercedita”, com seus 220
passageiros, tinham descoberto uma mina.
Quando o navio atracou e deitamos o olhar para terra, a vista com que
deparamos era verdadeiramente encantadora e custava crer que apenas 15 dias
antes tremíamos de frio dentro de pesados sobretudos. Ainda de bordo,
avistávamos coqueiros esguios e numerosos outros espécimes, para nós
desconhecidos, da flora tropical.
No costado do vapor, fomos cercados por barqueiros que nos ofereciam
frutas de todas as espécies e se propunham a nos conduzir para terra. Moleques
tisnados ([1])
nos divertiam mergulhando a profundidades incríveis, à cata de pequenas moedas
que lhes atirávamos. É fácil de se avaliar que tenha sido enorme a quantidade
de fruta consumida por todos nós, após duas longas semanas de jejum.
Não sabíamos se teríamos permissão para
desembarcar, mas alguns passageiros resolveram a questão facilmente deslizando
por cordas até os botes que os esperavam lá embaixo. Vendo a inutilidade da
proibição, os oficiais mandaram baixar a escada do portaló e todos nós nos
dirigimos para a praia tão depressa quanto os barqueiros nos puderam conduzir.
Tão fortemente nos havíamos habituado a nos locomover a bordo, que causava
hilaridade verem-se passageiros desembarcar gingando, no trapiche, qual
marinheiros. A primeira coisa que saltava à vista do recém-chegado a Bridgetown
daquela época era que a grande maioria da população se constituía de indivíduos
de cor. As ruas eram quase todas tortas ou em linhas quebradas, muito estreitas
e só as mais importantes tinham passeios laterais cuja largura variava de 40 a
60 cm. A fachada das casas ficava tão rente do meio-fio que os beirais cobriam
o passeio.
Uma das peculiaridades desta Ilha está que sua formação é coralínea e
não vulcânica. O coral fornece pavimentação resistente e durável como o asfalto
para as ruas, que se apresentam rigorosamente niveladas. Constitui ele, também,
excelente material para construções finas. As casas dos naturais são quase
todas de madeira. Não vimos um único tijolo em toda a Ilha. A temperatura é aí
deliciosa e pequenas as variações durante o decurso do ano. Ao que nos
disseram, no verão a coluna de mercúrio raramente excede 26°C à sombra.
Viam-se, frequentemente, pelas ruas, carroças tiradas por jumentos do tamanho
de um potrinho de dois meses. Às vezes, um desses animaizinhos passava trotando
ligeiro com quatro pessoas no carrinho.
A Ilha tem cerca de 32 km de comprimento por 22 km de largura e o
formato aproximado de um presunto. Sua população era então de 165 mil almas,
das quais apenas 13 mil brancos. A língua aí falada é o inglês, mas o
isolamento em que vive o povo propiciou um dialeto que ingleses e
norte-americanos às vezes encontram dificuldade em compreender. Os naturais se
apresentavam muito bem vestidos em alvíssimos ternos brancos e chapéus de
palha, mas eram piores que judeus para negociar. Pediam um shilling por
passageiro para transportá-los à terra, mas, ao chegar ao trapiche, exigiam
dois. E era, às vezes, necessário que se perdesse a calma ameaçando de
espancá-los ou atirá-los para que deixassem de nos seguir por toda a Cidade na
esperança de nos extorquir seis shillings por um servicinho qualquer, sem
valor.
Dois de nossos engenheiros, indagando do melhor hotel, tiveram indicação
da Casa de Albion. Depois de procurá-la em vão pela Cidade, informados de que
ela ficava a 8 km de distância, tomaram um carro que os levasse até lá. Durante
duas horas, viajaram pelos arredores – que por sinal eram tão interessantes que
o tempo se passou rapidamente – e finalmente chegaram ao hotel que, com grande
surpresa, souberam distar apenas 2 minutos a pé, do ponto de onde partiram.
Posto que o estabelecimento não tivesse pretensões a grande hotel, nem mesmo
fosse o melhor de Bridgetown, a Casa de Albion representava então, para nós,
uma miniatura do Waldorf-Astoria. Podermos sentar a uma mesa limpa, repleta de
deliciosos pratos – costeletas de carneiro, café, pepino em fatias, bananas,
laranjas, tudo isso regado com deliciosa cerveja inglesa e rematado por
finíssimos charutos Havana – e, acima de tudo, podermos repousar à noite em
camas limpas e firmes, parecia-nos o auge da felicidade. Gastamos grande parte
do tempo passeando e apreciando os panoramas.
Despertaram-nos vivo interesse os extensos canaviais que cobrem quase
toda a Ilha e a grande variedade de árvores frutíferas e de sombra, muitas das
quais inteiramente desconhecidas para nós. De fato, parece-nos mesmo que
encontramos em Barbados maior variedade de frutas que durante toda nossa viagem
pelo Amazonas e Madeira. Coqueiros esguios, com seus frutos tentadores,
forneciam água clara e fresca mesmo no mais cálido dia; fruta-pão, favos de
mel, mangas, limas, limões, laranjas, abacaxis e inúmeras outras frutas, sob o
toldo de luxuriante folhagem agitada por deliciosa brisa marítima, faziam com
que o novo cenário, onde nos achávamos apenas duas semanas após nossa partida
dos Estados Unidos, parecesse a obra-prima de algum extraordinário
prestidigitador.
Na Casa do Gelo, estabelecimento misto onde havia hotel, restaurante,
comércio por atacado e a varejo, e armazéns de suprimentos, encontramos várias
pessoas do “Mercedita”, inclusive
muitos engenheiros, todos tomados do evidente desejo de reparar, o mais
rapidamente possível, os pecados de omissão involuntariamente cometidos a bordo
e se fortificarem, a fim de enfrentar semelhantes situações, de futuro. Não
poucos indivíduos da Expedição poderiam ser classificados como “calejados”, relíquias de uma geração
quase extinta que viveu nos tormentosos dias da Guerra de Secessão e adquiriram
a longa prática de que dispunham, na construção das Estradas de Ferro da costa
do Pacífico, quando o protótipo do Engenheiro era um misto de construtor de estradas,
Vaqueiro e Guerreiro. Não é, portanto, de admirar que o historiador
consciencioso se veja forçado a registrar que muitos dos que encontrou na Casa
do Gelo estavam visivelmente “tocados”
e ainda pediam ao taberneiro mais outra rodada.
Vários de nós fomos convidados para o “Baile da Dignidade”, festa típica em Barbados. Infelizmente não
pudemos a ele comparecer, mas, pelo que nos disseram os que foram, não perdemos
muito. Em certa praia denominada Hastings, situada a cerca de 5 km da Cidade,
onde atualmente se encontra um grande hotel moderno, muitos dos nossos se
entregaram ao que se poderia chamar um banho de mar de luxo, entre a praia
principal da Ilha e o recife coralíneo que a contorna, pois tiveram de pagar oito
pence por pessoa para toalha e sabão.
Na manhã de 18.01.1878, os hóspedes do
Albion foram despertados pelo hoteleiro, que fez colocar ao lado de cada cama
uma mesinha com café, torradas, frutas e charutos finos. Quando entrou em nosso
quarto, percebendo que estávamos acordados, anunciou “a primeira refeição é às 9 horas” e desapareceu. Naquele dia, nosso
tempo foi inteiramente tomado em passeios pela Ilha, magníficas refeições e
banhos de mar.
Em resultado da festa da noite anterior,
alguns dos nossos companheiros estavam de ressaca, mas só três tiveram
necessidade de alguém que olhasse por eles. Dois que se dirigiram para o “Mercedita”, em uma catraia, estavam em
tal estado que, quando um caiu no mar, o outro não teve força para puxá-lo e o
barqueiro, com medo de fazer virar a embarcação, se fosse auxiliá-lo, preferiu
prosseguir, enquanto o passageiro, agarrando o náufrago pelo colarinho, o
rebocava para bordo.
Quando a vítima chegou ao vapor, já estava
quase restabelecida do pileque, mas seu “rebocador”,
logo que se pilhou a bordo, pôs-se a comemorar seu feito notável disparando o
revólver a esmo pela vigia da cabina, a ponto de espalhar pânico entre os
nativos que, em numerosas embarcações, se comprimiam no costado do navio.
Felizmente esse divertimento de mau gosto foi interrompido antes que
ocasionasse consequências graves.
Na Casa do Gelo, nossos companheiros saboreavam iguarias raras: sopa de
tartaruga e peixe-voador. Havia então na Ilha numeroso corpo do exército inglês
que servira na campanha dos Achantis. À noite fomos até o quartel onde se
achava a tropa, para ouvir um concerto ao ar livre pela banda militar, composta
de 40 figuras.
Os passeios que fizéramos foram tão agradáveis que dificilmente
poderíamos fazer outros melhores. Entretanto a luz clara da lua cheia, a
vegetação luxuriante, os uniformes vistosos da soldadesca, a aura perfumosa que
então soprava, e, sobre tudo isso, a marcialidade da música inglesa, produziram
tão esplêndido efeito que mal podemos descrever.
Tínhamos sido avisados para que embarcássemos às primeiras horas da
noite; contudo os que se deixaram ficar na praia até 22h00 não correram nenhum
risco, porque um passageiro precavido, tendo encontrado o capitão Jackaway
bêbedo como uma raposa, não teve dúvida em trancá-lo em lugar conveniente,
perto do trapiche. Depois disso, tomamos um bote a seis remos e com o capitão
cuidadosamente acomodado, rumamos para o navio.
Os escuros remadores possuíam belas vozes e pareciam ter organizado um
repertório de canções patrióticas com a finalidade patente de despertar a
generosidade do passageiro, qualquer que fosse a nacionalidade, que tivesse a
má sorte de cair no barco. Durante o percurso, entoaram a “Marcha através da Geórgia”, e, quando já nos aproximávamos do “Mercedita”, cantaram outra canção que
parecia ter sido composta por eles mesmos, e cujo estribilho dizia:
Salve, salve a bandeira azul listada, / A bandeira que nos deu a
liberdade.
Às onze horas daquela noite, o barco levantou âncora e, embora
pesarosos, despedimo-nos de Barbados. Nossa permanência na Ilha fora a mais
agradável possível. Depois que a deixamos, temo-nos perguntado se o lugar é de
fato tão agradável quanto nos pareceu, ou se a impressão que nos causou foi, em
grande parte, devida ao contraste que apresentou com as privações por que
anteriormente passamos.
Sem dúvida o efeito que sua natureza exuberante causou sobre nós, só
pode ser comparado à visão que embeveceu o olhar maravilhado de [Jacopo] Peri
às portas do Paraíso; e Bridgetown, com seus mergulhadores bronzeados, suas
carrocinhas tiradas por jumentos, suas flores e suas frutas deliciosas,
permanecerá sempre na memória de todos nós. [...]
CONTINUANDO A VIAGEM NO “MERCEDITA”
De Barbados ao Pará, poucos incidentes dignos de nota nos apresentou a
viagem. Teria mesmo sido deliciosa se as refeições não continuassem a ser
motivo de constantes irritações e queixas. O calor era tão agradável que quase
todos os passageiros transportavam para o tombadilho seus colchões e aí passavam
a noite. As únicas novidades que nos chamaram a atenção foram os cardumes de
peixes-voadores e, à noite, a fosforescência das águas. (CRAIG)
Bibliografia
CRAIG, Neville B..
Estrada de Ferro Madeira-Mamoré: história trágica de uma Expedição (1947)
– Brasil – São Paulo, SP – Companhia Editora Nacional, 1947.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H