Quarta-feira, 5 de agosto de 2020 - 09h46
Bagé,
05.08.2020
Momentos Transcendentais no Rio Negro
Parte II
Manoel Menezes (“Forrest Gump” Tuiuca)
Menezes, da etnia
Tuiuca ([1]),
morava num sítio paupérrimo com a esposa, o genro e a filha, que não parecia
ter mais de 13 ou 14 anos e já era mãe de quatro crianças. Montei a barraca sob
uma rala cobertura de palha e, depois de tomar um revigorante banho e ingerir
uma porção de macarrão, crua, estava pronto para conversar e descansar. Fiquei
conversando, ou melhor, diria, ouvindo meu novo amigo. Menezes falou
ininterruptamente sobre o Nhengatu (língua geral) que dominava perfeitamente
embora tivesse certa dificuldade em se expressar na sua própria língua.
A língua Tuiuca
chegou a ser considerada, pela UNESCO, há algum tempo atrás, como uma das mais
vulneráveis no mundo.
Hoje, graças a
experiências bem sucedidas na área da educação, como o da Escola Indígena
Municipal Utapinopona ([2]),
houve uma significativa reversão no processo de perda de identidade linguística
e hoje a grande maioria dos cerca de 900 Tuiucas falam sua língua mãe.
O senhor Menezes
contou-me que havia se desentendido com um mercador que lhe comprava os
produtos artesanais que produzia no seu roçado nas cabeceiras do Tiquié e
sentindo-se ameaçado pelo comerciante, refugiou-se naquela bela região do Rio
Negro.
Falou das
dificuldades para manter seu roçado, de sua vida desde Pari da Cachoeira até as
cercanias de Boa Vista, da preparação do caxirí... Fiz algumas observações,
fáceis de serem executadas, de como ele deveria proceder em relação ao plantio
de árvores frutíferas, preparando as cavas previamente com matéria orgânica já
que as margens do Negro são muito pobres.
[1] Tuiuca: é um dos grupos linguísticos “Tucano Oriental” do Alto Rio
Negro. Atualmente os Tuiucas estão divididos em dois grupos que habitam o alto
Tiquié e o Igarapé Inambu, afluente do Papuri. Estes grupos, embora
geograficamente próximos, mantêm pouco contato.
[2] Escola Indígena Municipal Utapinopona: a escola Tuiuca é uma
escola Ocidental ressignificada que permite refletir e recriar as identidades;
espaço de negociação de valores e práticas culturais Tuiuca e de outros povos;
é um dos espaços que favorece a construção de novas relações humanas, produção
de novos conhecimentos e acesso a outros recursos. (REZENDE)
Lenda de Como os “Tuiucas” Viraram Macacos
Menezes me contagiou
com seu espírito hospitaleiro e sua humildade. Depois de conversarmos longamente
sobre diversos assuntos, perguntei se ele poderia me contar alguma lenda Tuiuca,
o que ele fez sem pestanejar:
Há muito, muito tempo atrás, um grupo de Tuiucas
colhia frutas em um imenso miritizal ([1])
onde também se encontrava, escondido, “Uakti”,
o diabo. Entretidos com a colheita dos frutos, os índios não perceberam que a
noite se avizinhava e, quando escureceu, por mais que procurassem, não conseguiram
encontrar o caminho de volta resolvendo, por segurança, dormir por ali mesmo. O
“Uakti” aguardou todos dormirem
profundamente para se aproximar silenciosamente. Depois de soprar-lhes no rosto
para anestesiá-los, arrancou-lhes os olhos, sem acordá-los. Um dos Tuiucas,
porém, estava acordado e a este o diabo não fez nenhum mal.
Ao amanhecer, os Tuiucas, cujos olhos haviam sido
arrancados, nada enxergavam e começaram a reclamar que o dia custava a raiar e
que a noite era longa demais. O Tuiuca que permanecera acordado contou-lhes tudo
o que acontecera à noite. Os Tuiucas cegos começaram a chorar e a maldizer sua
triste sina, pedindo ao companheiro que os levasse de volta para casa. O Tuiuca
cortou, então, um cipó e determinou que todos o agarrassem para que ele os
conduzisse de volta à Aldeia.
Durante o deslocamento, os Tuiucas infelizes pediram
que o seu guia lhes conseguisse olhos postiços para que não fossem objeto de
escárnio quando chegassem à Aldeia. O Tuiuca foi à procura de sementes que
parecessem com os olhos humanos e entregou duas a cada um deles. Depois de
colocarem seus falsos olhos, os Tuiucas voltaram a agarrar o cipó. O Tuiuca
cortou o cipó e fugiu abandonando-os à própria sorte. Os Tuiucas desesperados
subiram nas árvores lamentando-se e acabaram se transformando em macacos
barrigudos.
Aquele único Tuiuca que se salvou originou toda a
linhagem dos Tuiucas que habitavam as cabeceiras do Rio Tiquié. (Manoel
Menezes)
[1] Miriti, buriti (Mauritia): é uma das mais belas palmeiras, com
seus cachos pendentes de frutos avermelhados e suas enormes folhas abertas, em
forma de leque, cortadas em fitas, cada uma das quais, na opinião de Wallace,
constituindo a carga de um homem. (AGASSIZ)
Partida para Boa Vista (28.12.2009)
Um dos netos do
senhor Menezes, o caçula, apresentava fortes sinais de gripe e, a pedido dos
pais, deixei com o Manoel todos os comprimidos para gripe de minha caixa de
primeiros socorros. Recomendei que os administrasse depois das refeições e, inocentemente,
perguntei a ele qual era, normalmente, o horário em que se alimentavam e ele
respondeu-me com a tranquilidade de um asceta ‒ “quando temos o que comer”. Chocado com a penúria daquela gente,
deixei-lhe todo meu estoque de alimentos.
Na maioria das vezes,
Menezes e sua família tinham apenas o chibé (tiquira ou jacuba) para saciar a
fome. O chibé nada mais é que um alimento levemente ácido resultante da mistura
da farinha de mandioca com água. A farinha incha com água apresentando a
textura de um mingau que é consumido para mitigar a fome.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail:
hiramrsilva@gmail.com
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