Quinta-feira, 6 de agosto de 2020 - 09h39
Bagé,
06.08.2020
Momentos Transcendentais no Rio Negro
Parte III
Equipe de Apoio à Deriva
Combinei com o Teixeira que me aguardasse por volta
das 13h15 a montante ou a jusante de uma grande ilha, a uns oito quilômetros de
onde estávamos e de onde continuaríamos seguindo a rota pelo Canal.
O Teixeira, contrariando o combinado, ancorou no
lado Meridional da ilha e eu passei pelo Setentrional, de modo que não nos
avistamos. Aportei logo abaixo, em uma ilha com grande areal, descansei durante
alguns minutos e, depois de chamar, insistentemente, sem sucesso, pela equipe
de apoio, segui avante. A opção de acampamento teria de ser nas praias, já que
as ilhas eram de mata fechada; tinha um saquinho com algumas castanhas e isso
teria de bastar até o dia seguinte. Resolvi remar forte para adiantar minha
jornada quando, depois de remar por uma hora, avistei um barranco nu com algo
que parecia, de longe, uma roupa pendurada no varal. Remei freneticamente e
aportei na Comunidade Nova Vida às 14h36 depois de navegar 08h06 por 53 km.
Comunidade Nova Vida
A Comunidade é formada por quatro famílias de
piaçabeiros que tinham sido escorraçados da região do Rio Preto (Santa Isabel
do Rio Negro), em mais um dos inúmeros desmandos promovidos pela famigerada
FUNAI em suas desastrosas e descabidas demarcações de terras indígenas. Hoje,
os ex-piaçabeiros dedicam-se à pesca e à venda de peixe salgado sobrevivendo
nesta região erma e distante.
Estavam na Comunidade apenas Dona Anésia (esposa de
Ocino), suas duas filhas (Ana Cláudia e Ana Paula) e os dois netos (Mateus e
Tereza). Com a cortesia peculiar dos ribeirinhos, mandou as crianças matarem um
frango e me proporcionou um belo jantar.
Dona Anésia usa uma grande moringa de barro para
refrescar e clarear, por sedimentação, as águas do Negro e usa cloro para
tornar a água potável. Foi a primeira vez em minhas jornadas, que se iniciaram
no Solimões, que alguém me dispensou tal atenção.
A limpeza das instalações mostrava a preocupação
com a higiene daquela “amazona” que,
com invulgar alegria e fraternidade, recebia eventualmente navegadores que se
extraviavam nas redondezas. As palafitas foram erguidas com capricho e cobertas
com palha de paxiúba, garantindo o conforto de seus moradores. As crianças
criavam três gaivotas esfomeadas que tinham de ser alimentadas periodicamente.
Para isso, as crianças estenderam uma pequena malhadeira à frente do barranco e
volta e meia retiravam alguns pequenos peixes que eram picados para alimentar
as vorazes aves.
O Voo da Gaivota ‒
Anseio de Liberdade
As pequenas e irrequietas gaivotas fizeram-me
recordar outras tantas que encantaram meus amazônicos dias. Perfiladas nas
praias, surfando nos troncos levados pela torrente ou simplesmente realizando
acrobacias no anil infinito, elas dão um toque de beleza, serenidade ou, quando
assustadas, fogem em gritos estridentes anunciando a chegada de forasteiros em
seus domínios.
A beleza contagiante dos momentos que vivenciei junto
a esses pequenos seres alados transportaram-me para um belo poema escrito pela
poetisa Regina de Nazaré Silva Falcão (Nagire) o qual reproduzo uma parte.
[...] a grandiosidade do espetáculo proporcionado
pelo Astro-Rei, em cumprimento ao labor divino do Supremo Arquiteto.
É nesse momento mágico, de tocante candura, quando
a Natureza me parece em prece ao Criador, que a gaivota amazônica surge dos
céus, no seu derradeiro voo do dia.
Com movimentos leves, graciosos, como se
acompanhassem o ritmo de uma valsa, ela desliza no ar desfilando sua plumagem
branco-acinzentada com invejável desenvoltura.
Escorrega brandamente naquele espaço iluminado,
planando, vencendo os ventos contrários em sua aprimorada acrobacia, deixando
em qualquer expectador um convite hipnótico para “viajar” nos desenhos sinuosos do seu voo. Nele se traduz em seu
sentido maior, a própria liberdade, liberdade tão ansiada por muitos.
A sensação de voar espelha esse sentimento de
liberdade absoluta, profundamente arraigado no ser humano, mas que jamais terá
condições de ser usufruído na íntegra.
Teto de Estrelas
A barraca foi
montada sem o toldo superior, para que eu pudesse olhar as estrelas. A Lua,
quase cheia, me acordou no meio da noite e pude contar seis estrelas cadentes
que cortaram o céu rumo Norte. As estrelas brilhavam com uma intensidade sem
par; não existiam as luzes das grandes metrópoles para ofuscá-las e elas
cintilavam sobre o manto escuro e aveludado da noite. O dia que se prenunciara
tenebroso se mostrou pleno de fraternidade, amor e beleza.
Amazônica
Hospitalidade
Acordei às
05h30, desmontei o acampamento e carreguei o caiaque depois de tomar um banho
no Rio. Dona Anésia convidou-me para tomar um café com bolinhos fritos de trigo
e embrulhou alguns para a viagem, que seriam muito bem-vindos caso não encontrasse
a minha equipe de apoio.
Despedi-me da
gentil senhora e de suas duas filhas e casal de netos antes de partir. Mais uma
vez eu fora contemplado com a amazônica hospitalidade e isso me enchia de
esperança na humanidade das pessoas.
É impressionante
verificar como o espírito cristão está presente nos corações e almas
ribeirinhos. A maneira afável como me acolheu dona Anésia e seus familiares é
uma demonstração eloquente dessa ternura infinda que está impregnada na alma
dos povos da floresta. Embora tenha recebido carinho análogo em minha descida
pelo Solimões, continuo a me emocionar cada vez que isto acontece.
Partida (02.01.2010)
Parti às 06h27
e, logo no início da jornada, avistei um enorme gafanhoto, ainda vivo, sobre as
águas. Já havia visto diversos deles voando ou mortos levados pela torrente.
Recolhi o grande inseto e o coloquei sobre o convés; ele se arrastou vagarosamente
e se postou sobre a proa, onde permaneceu imóvel durante todo o tempo. Depois
de 01h15 de navegação, acostei e levei meu parceiro até um arbusto da ilha, colocando-o
no galho mais forte.
Gostaria de
saber o que leva esses robustos animais a atravessar os enormes canais
arriscando a vida. Seria um apelo à sobrevivência dos mais fortes e capazes?
Instinto de reprodução? Não sei...
Aportei,
novamente, num enorme banco de areia e estava comparando o terreno com a rota
da Companhia de Embarcações do CMA; o trajeto nas cheias passava direto pelo
enorme areal e decidi contorná-lo pelo Sul. Quando estava manobrando o caiaque,
vinha chegando minha equipe de apoio. Foi uma visão reconfortante; ofereci uns
bolinhos preparados pela Dona Anésia e comi algumas frutas que eles tinham
colhido. O nosso piloto tinha pescado mais alguns peixes, garantindo a refeição
do dia. O Coronel Teixeira prometeu que dali por diante teriam mais cuidado com
o trajeto de maneira a não se afastar demais e me perder de vista. Paramos às
15h10, depois
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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