Quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010 - 22h45
“... o Sr. Marcoy é, no fundo e sempre, o artista à procura de materiais para o pincel e o estudioso da humanidade observando tudo que há de novo e interessante nos costumes e no caráter das pessoas”. (Elihu Rich)
- Indígenas do Alto Rio Negro
Quando, ao término de minha descida pelo Rio Negro, aportei na praia do 2º Grupamento de Engenharia em Manaus, trazia gravado na retina, as belezas das praias e das quase duas mil ilhas do maior rio de águas pretas do mundo. Infelizmente, porém, trazia registrado na memória as imagens do desalento e da estagnação que cravara bem fundo suas garras nos corações e nas mentes das comunidades indígenas com as quais travei contato. A falta de perspectiva e a lassidão eram a tônica. As bolsas ‘esmolas’ (família e escola), oferecidas pelo ‘desgoverno companheiro’, atendem às suas necessidades fundamentais e além delas diversas comunidades ‘firmaram contratos’ mantidos com os não índios para explorar os recursos naturais de suas terras. Este desvio de conduta permiti-lhes abastecer os pequenos geradores ‘presenteados’ pelos exploradores e comprar a cachaça que já substitui, há muito, suas bebidas tradicionais.
As malditas bolsas poderiam ser oferecidas, sim, em troca de determinados serviços em prol das próprias comunidades. As frentes de trabalho, certamente, permitiriam melhorar as condições de vida sem atentar contra a dignidade do ser humano. A alienada FUNAI, só se preocupa com demarcações, como se elas fossem a solução para todas as questões que afligem os indígenas brasileiros.
A educação e a saúde, atualmente, são simplesmente uma piada de mau gosto. É necessário, a criação de Centros Integrados de Educação e Saúde e centralizados em comunidades maiores para a qual seriam transportadas diariamente as crianças do entorno em um barco escolar a motor. A centralização permitiria que se melhorasse a qualificação de professores que nos dias de hoje são totalmente despreparados. Reputamos que ao se planejar estes Centros Integrados de Educação e Saúde se projete, também, refeitórios para distribuição da merenda escolar, áreas desportivas e alojamento para professores e profissionais da saúde que inevitavelmente terão de ser recrutados nos municípios mais próximos. Os alunos retornariam, ao final do dia, às suas aldeias devidamente alimentados, monitorados pelos elementos de saúde e teriam à sua disposição uma educação que lhes permitiria alcançar o ensino do 2º e 3º grau. A educação bilíngüe recomendada pelo MEC terá de se adequar à realidade regional onde existem mais de vinte e duas etnias e seria impraticável atender à demanda de tal diversidade. Para que não se estabeleçam privilégios achamos que o ensino da língua geral, o ‘nheengatú’, seria recomendado permitindo estabelecer um laço de união entre os nativos da região que vem há séculos estabelecendo uma salutar integração racial.
- Amigos Ticunas
No ano passado, ao descer o Solimões, um grupo indígena, dentre outros, me impressionou por sua beleza física, empreendedorismo e, sobretudo, pela determinação e atitude de suas lideranças. Os Ticunas estão absorvendo com realismo as mudanças impostas à sua cultura e se preparam adequadamente para enfrentar estes desafios de igual para igual com os demais seguimentos da sociedade moderna. Recolhemos alguns fragmentos interessantes sobre esta maravilhosa gente, no livro ‘Viagem pelo rio amazonas’ de Paul Marcoy que tive a oportunidade de ler durante minha viagem exploratória pelo rio Negro.
- Paul Marcoy
O escritor francês que usava o pseudônimo de Paul Marcoy ou Paulo de Carmoy nasceu Laurent Saint-Cricq em Bordéus no ano de 1815. Por volta de 1840 partiu para a América do sul onde permaneceu até 1846, tendo conhecido o Chile, Bolívia e Peru onde realizou diversas incursões exploratórias.
No livro Marcoy narra sua viagem de três mil e trezentos quilômetros percorridos, durante quatro meses, em meados de 1846 quando partiu do litoral peruano até a cidade de Belém do Pará. Regressando a Paris passou anos escrevendo seus relatos de viagem a partir de mapas, desenhos e aquarelas que havia levado consigo além de notável coleção de espécimes botânicos. O autor retornou outras vezes à América e em 1875 fixou residência em Bórdeus, onde dirigiu durante doze anos o Jardim Botânico da cidade e onde faleceu em 1888.
- Ticunas segundo Paul Marcoy
“... Esses nativos, pelo que me haviam informado, habitariam somente nas barrancas do rio principal, vivem, na realidade, às margens do Yacanga e do Yanayaquina, dois tributários daquele, respectivamente à margem direita e à esquerda.
Os primeiros Ticunas que encontramos causaram-me uma péssima impressão. Mal tínhamos começado a nossa viagem; eram sete da manhã e o sol estava nascendo. Os pontos mais altos da paisagem já brilhavam de luminosidade e mais embaixo tudo estava envolto numa leve neblina; os pássaros chilreavam enquanto enxugavam as penas ainda úmidas; as flores vivificadas pela frescura da manhã, começavam a exalar seus variados perfumes; gotas de orvalho escorriam das folhas e caiam uma a uma no rio. Reclinado sobre o flanco da canoa, eu estava indolentemente sonhando, ouvindo sem compreender e contemplando sem ver quando, de trás de um matagal que nos escondia uma curva do rio, apareceu de repente uma pequena canoa tripulada por dois Ticunas, um homem e uma mulher. O homem remava e a mulher guiava com um remo; no centro do seu barco, uma simples casca de noz, via-se um cacho de bananas e algumas raízes comestíveis meio cobertas por grandes folhas. O verde brilhante das folhas ainda cintilantes de orvalhos contrastava com o azul e o vermelho de uma arara mansa empoleirada sobre elas. Como eles vinham remando na nossa direção, pudemos observá-los à vontade.
A cor destes nativos lembra a do mogno velho. Uma grande e desordenada cabeleira cobria-lhes os ombros. O homem tinha as duas bochechas decoradas com marcas de tatuagem de um azul escuro, feita com o sumo da pseudo-Añil indigofera, cujo desenho assemelhava-se um pouco às letras chinesas das caixas de chá. Ele trazia ao pescoço um colar de três ou quatro voltas feito com dentes de macacos montados numa armação de vime; uma braçadeira de tecido de algodão, ornada com um maço de plumas amarelas e encimada por uma crista feita com as penas longas da arara, estava amarrada em cada braço logo abaixo do ombro; ligas de material semelhante, mas sem o pompom ou crista, cingiam suas pernas acima dos tornozelos e uma curiosa faixa ao redor da cintura completava o seu atavio. A mulher não tinha nem as marcas hieroglíficas na face nem as ligas nos braços. Usava um colar de contas vermelhas de vidro obtido por seu marido nas transações com os brasileiros. Uma faixa de tecido de algodão ornava a parte inferior de suas pernas e uma tira do mesmo material, não muito larga, cobria sua cintura.
Esse grupinho, apenas entrevisto nas sombras da quebrada, mas destacando-se do luxuriante fundo vegetal através do qual, aqui e ali o céu era visível, era um belo tema para um desenho que me apressei a começar. Tendo imobilizado a canoa, o meu companheiro entreteve os dois Ticunas enquanto eu os retratava. Intrigados com a minha ocupação tanto quanto a atenção que eu os olhava, os dois trocaram algumas observações num idioma que eu não compreendi e em cuja articulação mais pareciam usar a garganta do que a língua. As guturais do hebraico, as consoantes duplas do quíchua, o G o J e o X do castelhano soam como a mais suave melodia comparadas com os borbotões vocais desses Ticunas, cujas palavras, desistindo de escrevê-las em sílabas, tentei mais tarde expressar em notação musical. Como a maioria das tribos ribeirinhas, esses Ticunas compreendiam o dialeto Tupi e o falavam um pouco. Depois de algumas perguntas sobre esse inesperado encontro, os nossos homens entenderam que os nativos tinham ido até a sua roça para colher as bananas e a mandioca que estavam levando para casa. Essas provisões, dando o sustento para uma semana, lhes permitiam passar outros dias em ócio, balançando numa rede. Ao nos despedirmos demos ao homem alguns anzóis e à mulher uma tesoura gasta. Essa generosidade provocou no casal uma torrente de agradecimentos vinda das profundezas de suas gargantas e o presente de uma parte das bananas que haviam colhido.
Paramos sucessivamente em diversas choças Ticuna onde, em troca de umas ninharias graciosamente distribuídas, comemos, bebemos, dormimos e coletamos flautas, tambores, colares, braceletes, grinaldas, pompons, cristas e outras bagatelas que constituem a riqueza do país e que teriam sido cobiçadas por um burguês parisiense para decorar as paredes de sua Villa em Asnières ou Pantin.
As informações que conseguimos sobre os costumes dos Ticunas limitam-se aos detalhes que são mencionados a seguir. Se não damos, como intróito, nenhuma notícia sobre os antecedentes desses nativos é porque o fio que une o seu presente ao seu passado é demasiado frágil para sustentar uma dissertação.
A nação Ticuna, da qual há referências desde o século XVII, ocupava, à época em que Pedro Teixeira subiu o rio, o trecho da margem esquerda do Amazonas compreendido entre os rios Ambiacu e Atacuary. Ao norte o seu território era limitado pelos índios Pevas e Yaguas; a leste pelos Juris do rio Iça e a oeste pelos Orejones do rio Napo. Esses limites territoriais permanecem até hoje, mas a grandeza numérica dos Ticunas já não é comparável à extensão do país que eles ocupavam antigamente. Várias vezes subjugados e sucessivamente catequizados por carmelitas portugueses e jesuítas espanhóis, que com base nas pretensões de seus governos invocavam a legitimidade do controle sobre os Ticunas e o disputavam pela força das armas, esses nativos, já enfraquecidos pelo impacto das duas forças que agiam sobre eles há meio século, foram repetidas vezes dizimados pela varíola, esse cólera dos peles-vermelhas que veio completar o trabalho da Propaganda Fide.
Congregação de Propaganda Fide: nasceu em 1622 para dirigir e coordenar toda a atividade missionária da Igreja, procurando torná-la independente da tutela sufocante das potências coloniais católicas da época, em particular Espanha e Portugal.
Tudo o que hoje resta da nação Ticuna (não aculturada) é uma população de uns cento e cinqüenta indivíduos que vivem nas margens do Atacuary e dos seus tributários.
Um curioso costume dos Ticunas é a maneira com que recebem pessoas de outras nações. Mal o visitante aparece na porta da sua choça, todos os Ticunas presentes agarram suas lanças e as apontam para ele, como a impedir a sua entrada. O visitante, sabendo que se trata somente de etiqueta, afasta com a mão as armas que lhe são apontadas, entra e vai-se sentar na rede mais próxima. A maioria das choças Ticuna, assim como as salas de visita brasileiras na província do Pará, são providas de três ou quatro redes penduradas uma defronte à outra. Quando os ocupantes começam a balançar suas redes, seja para afastar os mosquitos, seja para refrescar o ar, e todas balançam juntas num vaivém em que parecem desviar-se sem nunca colidir, tem-se a impressão de estar no meio de uma tecelagem olhando o movimento incessante dos teares.
O dono da choça dirige-se então ao estrangeiro e, no surdo ventriloquial dos Ticunas, pergunta - Quem és? De onde vens? És amigo ou inimigo? O que te traz aqui? - O estranho responde às perguntas uma após outra ou, mais comumente, se sua visita tem somente finalidades comerciais, limita-se a responder exibindo os artigos que trouxe e que deseja trocar com produtos dos Ticunas. As armas são postas de lado para se discutir o valor dos bens oferecidos e procurados. Como se pode imaginar, a discussão é entremeada de frequentes pedidos de caisuma. Os artigos produzidos pelos Ticunas são farinha de mandioca, sarabatanas, redes, veneno para caça e tecidos grosseiros de algodão.
Algumas meninas com o cabelo cortado muito curto que havíamos observado entre os Ticunas nos levaram a princípio a pensar que eles compartilhavam com os Yaguas o costume de tosquiar-se, mas as informações que obtivemos depois nos esclareceram a respeito. A cabeça raspada dessas meninas era o único sinal visível de que elas haviam chegado á puberdade, sendo esse o complemento da misteriosa prática que as tribos da planície de Sacramento, notadamente os Conibos, chamam de Schebianabiqui. Os Ticunas a denominam Ihieboah, expressão menos jocosa do que aquela e que pode ser traduzida por ‘mocinha’, de ihié, mulher, e boah, criança.
Depois de traduzir o nome, resta descrever o costume. Quando as senhoras percebem que a menina atingiu a puberdade, a levam consigo em procissão para uma choça existente para esse fim num lugar apartado; aqui providenciam alguma comida e água e a deixam trancada por 48 horas, mergulhada nas suas reflexões, ou tédio. Expirado esse prazo, as mulheres voltam a liberar a prisioneira, mas antes disso lhe esfregam a cabeça com o sumo leitoso de um fícus, o qual coagula imediatamente e, com movimento rotatório da palma das mãos, forma inúmeras bolinhas nas quais ficam embaraçados os cabelos da menina. Essas bolinhas que as mulheres arrancam uma a uma jocosamente levam consigo os cabelos e fazem a paciente chorar de dor. Dois músicos, de costas, para a entrada da choça, acompanham esse ritual tocando a flauta e o tamborim.
Quando a cabeça da vítima está completamente depilada, as mulheres a cobrem com uma touca de plumas amarelas que lembra um tipo de cogumelo (Boletus); no meio da touca é fixado um penacho feito com penas da cauda da arara. Assim ataviada, assustada e chorando, a menina é antes levada numa volta pela aldeia e depois pela margem do rio e pelo mato, sempre seguida pelas mulheres, que a fustigam com galhos verdes para torná-la resistente aos dissabores que ainda virão.
Depois de algumas horas perambulando dessa maneira e de um número indefinido de tragos de caisuma que a mocinha é obrigada a tomar, a introduzem numa choça onde uma rede nova foi estendida para o evento. Completamente prostrada pela fadiga, pela embriaguez e pelo açoitamento impiedoso, ela deita na rede e cai imediatamente num sono profundo. Enquanto isso o povo celebra reunido, com jogos acompanhados de um impressionante consumo de bebida fermentada, a festa de Ihieboah. Dançarinos, cujas cabeças estão escondidas em sacos que reproduzem figuras humanas, executam uma série de movimentos mais ou menos bem sucedidos de arte coreográfica.
Ao acordar na manhã seguinte, a menina encontra o piso da choça coberto de cinzas. Sem essa precaução, tomada por aquelas que a tosquiaram e bateram, no momento em que as plantas dos pés tocassem o solo, Mhohoh (o demônio) iria tomá-la para si ao longo do novo caminho que a natureza lhe traçou. Essa formalidade encerra a cerimônia e, depois das costumeiras abluções, a menina, novamente livre, espera sem muita ansiedade o dia em que, tendo crescido o seu cabelo, será entregue a um marido. Uma vez que as meninas Ticunas tornam-se assim desposáveis por volta dos dez anos e mais dois ou três são necessários para que o cabelo atinja um certo comprimento, conclui-se que aos doze ou treze anos elas estão em condições de serem postas sob o jugo de Himeneu, um termo clássico particularmente apropriado ao seu destino”.
Fonte: Marcoy, Paul – Viagem pelo rio Amazonas - Brasil, Amazonas, 2006 – Editora da Universidade Federal do Amazonas.
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