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Gente de Opinião

Hiram Reis e Silva

Assentamentos I


Assentamentos I - Gente de Opinião

Bagé, 15.03.2022

 

O Coronel de Engenharia Higino Veiga Macedo, meu Caro Amigo e Mentor (com letras maiúsculas mesmo), enviou-me um texto de sua autoria que faço questão de compartilhar com os eleitores.

Filmes Tristes dos Assentamentos

Texto do Coronel Eng Higino Veiga Macedo

Das coisas tristes que vi e participei, duas são realmente muito fortes. Implicou em intervenção minha sem que eu tivesse autoridade para tal. Mas eu era o Estado, naquele momento. Jamais poderia recuar.

Estava em Vilhena e sai bem cedo com intenção de chegar a Pimenta Bueno. Tínhamos um atoleiro em Marco Rondon com quase um quilômetro de comprimento. A pior coisa que tinha era atoleiro em aterro e depois atoleiro em corte. Ali combinamos os dois piores começava num corte e prosseguia num aterro. No corte chegou a ter uma mina d’água. Alguns quilômetros depois do local “aterro Grande”, cuja história dá um livro, havia uma família acampada mas depois do limite da faixa de domínio da BR. Desde que assumi a Residência Especial em Vilhena via ali uma morada, metade tapiri e metade lona preta. Logo em seguida uma entrada para uma fazenda que nunca soubemos de quem era e nem com identificação alguma.

Bom, já sete da manhã, vimos a casa pegando fogo: labaredas pra todos os lados e as crianças correndo sem saber para onde ir. Paramos a Picape e corremos pra lá: eu, o motorista e três soldados recrutas que voltavam para o trecho. Vi a mulher e perguntei pra ela se tinha alguém dentro da casa; ela com dois ou três filhos grudados em suas perna disse que não, mas se pudéssemos salvar suas roupas que estava em malas seria bom.

Entramos todos rápido, antes que tudo começasse a cair. Os soldados acharam as malas e as retiraram; eu achei uma máquina de costura, dessa com pedal. Abracei e corri pra fora. Deu ainda pra salvar mais coisas: material de cozinha e mais algumas caixas de madeira. Nada mais poderia ser feito a não assistir ao fogo consumir tudo. Perguntei do marido e ela me disse que tinha ido a Vilhena no dia anterior. Perguntei como começou o fogo, ela disse que foram os capanga do fazendeiro que botaram fogo pois o fazendeiro não os queriam ali com medo de invasão e posterior intervenção do INCRA, este minado de desonesto. E ela continuou:

Eles saíram pela estrada à pé... não devem estar longe. Pegamos a Picape e entramos. Há quinhentos metros estavam os dois jagunços descansando à beira do igarapé. Saquei meu revolver e mandei que ficassem de costas e mãos na cabeça. O motorista, velho e experiente, fez uma revista a rigor. Amarramos os caras com cordas deles. Depois de amarrados, perguntei por que botaram fogo na casa da senhora. Eles disseram que fora ordem do patrão e que fizeram isso contrariados. Desisti de ir a Marco Rondon. Coloquei os dois amarrados na carroceria da Picape, com um soldado com meu revólver. Em Vilhena entreguei-os ao delegado. Depois de uma semana, no posto de controle, me disseram que dois homens queriam falar comigo. Pedi que os mandassem até meu gabinete. Eram os presos. Disseram para eu ajudá-los a chegar a Cuiabá. Não iriam trabalhar mais com o fazendeiro. O delegado os soltou pois não tinha alimento para eles. Os soldados do Posto os despacharam no mesmo dia.

Outra situação difícil foi entre Pimenta Bueno e Cacoal. Havia um local chamado Castanhal. Ali era um lajeado de pedra que quando chovia, a água corria por dois ou três dias. Uma subida até suave, mas patinava como nunca. Nada de atrito. Subir só puxado por uma máquina pesada e com calibragem baixa do pneu para aumentar o atrito. Um casal com dois filhos em um corcel, da Ford, com tração dianteira. Ao patinar parecia uma lagartixa em areia quente. Nele, sem poder subir estava um homem de uns trinta anos quase em coma de febre de malária. Juntos, dois filhos e um muito febril, de malária. Queriam chegar a Cacoal para um hospital do japonês que até me socorreu em crise de ameba. Mas o carro não subia. Cheguei e vi a senhora abraçada ao capô, chorando. O motorista foi até lá e ela disse que se não chegasse a Cacoal perderia o marido e o filho. Ela mal sabia dirigir. Quem era o motorista da casa era o marido. Ela disse que, se não saísse dali, iria dar um jeito de suicidar-se.

Eis que vejo o valente “tanqueiro” (motorista de caminhão tanque, naquela região os mais experientes motoristas de atoleiros) que eu já havia encontrado pelos atoleiros da vida. Falei com ele:

  meu camarada, já nos conhecíamos, tenho uma grande missão para um grande motorista. Vais arrastar esse corcel até Cacoal e deixá-lo no hospital.

  Mas Tenente, eu vou ter que voltar até Cacoal?

  Vai. Se não voltar seremos eternos inimigos.

O motorista do BEC engatou o corcel com nosso cabo de aço no tanque... ensinou a senhora como dirigir com o caminhão tracionando. A distância era curta: vinte quilômetros. Um mês depois encontro o motorista do caminhão. Veio ele com um sorriso largo e disse:

  Tenente, missão cumprida. Salvamos aquela família. Deixei todos no hospital.

Senti que ele vestiu a camisa. Depois que soube do drama, passou a ser um grande aliado.

Agora, já 1979. Estava em Ji-paraná. A BR ainda era uma estrada de chão. Minha segunda passagem pelo 5° BEC. Tínhamos alguns problemas em Jaru. Voltando, perto das nove da noite, passamos por um ônibus de carreira até Ji-paraná quebrado.

O motorista nos pediu que acionasse a garagem para socorre-lo quando chegássemos na cidade. Ali todos eram parceiros. A dificuldade une tanto que gera aí o que o Cristo disse: “amai-vos uns aos outros”. Andamos mais uns vinte quilômetros e vi uma senhora desesperada abanando a mão. Ao passar por ela, vim um menino deitado no chão. Pedi ao motorista que parasse. Pela velocidade, paramos longe. Pelo retrovisor ela vinha correndo. O motorista, muito experiente, deu ré bem acelerada. Eu, estava de carona, e ela me abordou:

  Pelo amor de Deus, eu estou esperando o ônibus e meu filho está morre não morre com malária. O ônibus está demorando muito. Estou aqui desde três da tarde e nem carona consigo.

Mais uma marcha a ré até o menino. Colocamos ele e ela e mais as cacholas e seguimos. Ela agradeceu, glorificou, rezou, benzeu, desfiou a lista de todos os santos... fez tudo o que um desesperado faz na dificuldade. O Hospital em Ji-Paraná ficava no caminho de minha Companhia (na época 1ª Companhia do 5° BEC). O motorista, Soldado Ovídio, levou a senhora e o filho, já desmaiado e eu fui acionar a garagem do ônibus quebrado.

Depois de uns três dias, pedi ao motorista para ir ao hospital ver se o menino ainda estava por lá. Veio com o relatório. Estava bem. Ficou quase em coma por estar com os dois tipos de malária: vivax e falciparum. Dez dias depois foram se despedir de mim e do motorista, o menino já lépido e fagueiro como todos moleques de oito/dez anos. E a senhora sem para de agradecer. Como ruminei ([1]): tive a oportunidade de salvar mais um brasileiro. Não por favor, mas por obrigação. Naquele momento eu podia mais que eles. Hoje, não sei.

Como tive a oportunidade de ser útil. Penso que fui útil à humanidade como requer a arte real da qual sou um eterno praticante.

Solicito Publicação

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

·       Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

·       Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

·       Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

·       Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

·       Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

·       Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

·       Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

·       Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

·       Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

·       Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

·       Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

·       Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

·       Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

·       E-mail: hiramrsilva@gmail.com.



[1]    Ruminei: na terrinha é ficar quieto num lugar pensado em alguma coisa... como a vaca, deitada para ruminar o que foi pastado. (Higino Veiga Macedo)

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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